25 de maio de 2020

TRÊS CRISES E UMA TEMPESTADE MAIS QUE PERFEITA!

(José Serra – O Globo, 24) O artigo do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, sobre “Limites e responsabilidades”, publicado no último dia 14 no “Estado de S.Paulo”, vem em bom momento. Justamente quando nos encontramos em uma tempestade mais que perfeita, na qual limites constitucionais, morais, econômicos e de segurança sanitária estão sob intensa pressão. E também porque abre as portas para um diálogo de alto nível, quando uns poucos, infelizmente, fazem ouvidos moucos e se excedem em palavras loucas.

O general Mourão tem razão em apontar o caráter político da atual crise e o papel primordial que o Estado nela desempenha. Entretanto, não podemos ignorar que a dimensão política dessa crise multidimensional se desencadeou no início da atual administração, tendo contribuído para um PIB que vem marcando passo com crescimento em torno de 1% ao ano.

Com efeito, o programa de reformas econômicas foi mal conduzido, desperdiçando o período de boa vontade de que os novos mandatários costumam gozar. O governo federal não apresentou uma proposta de legislação coerente e bem definida, tampouco prioridades claras. E os negociadores do Planalto no Parlamento encontraram um campo minado devido ao empenho do presidente da República em tornar pública sua recusa a aceitar a legitimidade dos demais Poderes do Estado brasileiro. Resulta-se daí a queda na confiança de consumidores e investidores, sobretudo estrangeiros, o que, no primeiro trimestre deste ano, levou à retração de 1,95% do Índice de Atividade Econômica (IBC-BR), considerado uma prévia da variação do PIB. Como as decisões dos consumidores e dos investidores se baseiam em expectativas que, assim como as causas, vêm antes de seus efeitos, não se pode atribuir a crise econômica à pandemia, cujos efeitos sobre a atividade econômica vieram depois. A crise política levou à crise econômica, que foi exponenciada pela crise sanitária. O vice-presidente tem razão em destacar o papel nefasto da polarização. Ela não existe no vácuo, mas resulta de uma ação deliberada de radicalizar as diferenças entre ideias e valores na sociedade, de modo a dividi-la entre os extremos e excluir, assim, os moderados. Esse extremismo levou a um resultado incomum: no primeiro turno, os dois candidatos — Jair Bolsonaro (então PSL) e Fernando Haddad (PT) — receberam, respectivamente, votos de 33,4% e 21% dos eleitores aptos a votar.

No segundo turno, o presidente foi eleito com votos de 31% de eleitores aptos, com um aumento de ausências, votos brancos e nulos. O percentual de votos nulos no segundo turno chegou a 7,4% (8,6 milhões), o maior índice desde 1989, e um aumento de 60% em relação a 2014, quando 4,6% dos votos foram anulados. Um Executivo com esse grau de fragilidade, tanto no número de eleitores — que são os detentores originários da soberania — quanto em sua presença no Congresso, comete um erro fatal ao recusar o diálogo com os demais poderes constituídos. Sem diálogo e sem reconhecer a legitimidade dos interlocutores, não é possível convencê-los de que sua agenda é a melhor expressão do interesse da Nação. Insistindo em governar por decreto, virando as costas para os parlamentares, tratando-os com ofensas e acusações, um presidente presta um enorme desserviço, não apenas a si próprio, mas principalmente ao país.

A questão federativa está definida na Constituição brasileira, que é única e difere das demais federações. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas o fato de que são os estados que elegem o presidente, e não o voto popular direto, sugere que não devemos seguir cegamente um modelo estrangeiro. Trata-se de uma questão fundamental, que merece ser debatida, como também as relações entre os poderes. Depende apenas da disposição para o diálogo, o que é distinto da contabilidade de cargos e verbas à qual o Executivo parece estar inclinado a aderir.

22 de maio de 2020

A NOVA ROTA DA SEDA!

(Celso Ming – O Estado de S. Paulo, 21) Vem aí uma nova guerra fria, advertem os analistas, desta vez entre Estados Unidos e China. O protagonismo do gigante asiático irrita e preocupa os Estados Unidos. E uma das manifestações do avanço geopolítico da China é o megaprojeto da Nova Rota da Seda, uma rede de estradas, pontes, ferrovias e portos que se expande para o interior da Ásia, embora não se limite a ela.

O embaixador Luiz Augusto de Castro Neves, presidente do Conselho Empresarial Brasil-China, explica que a “Belt and Road Initiative” (Iniciativa do Cinturão e Rota, em tradução livre) deve ser entendida como o equivalente chinês do Plano Marshall, colocado em prática pelos Estados Unidos em 1948 para reconstruir a Europa devastada pela 2.ª Grande Guerra. Seu principal objetivo macropolítico foi afastar a influência soviética sobre o território europeu. E o econômico, criar um imenso mercado para os produtos americanos.

O plano de Pequim nasceu em outro contexto. A crise financeira de 2008 interrompeu o ciclo de crescimento econômico do mundo e teve forte impacto sobre os negócios da China, que crescia ao ritmo de dois dígitos por ano – o pico foi em 2007, quando houve avanço do PIB de 14,2%. Para compensar a menor velocidade de expansão do seu comércio exterior, o governo da China tratou de expandir o crédito e os investimentos no mercado interno, mas não a ponto de compensar a grande ociosidade das indústrias locais. O projeto da Nova Rota da Seda veio para multiplicar encomendas para a sua indústria, diz o embaixador.

Além de sua natureza econômica, a BRI, como os anglófonos a chamam, é um programa de vários objetivos políticos. Expande a influência da China pelo mundo, aumenta a popularidade interna do líder Xi Jinping e, na medida em que compartilha investimentos pelos parceiros da Ásia, fomenta o multilateralismo, no momento em que, depois de 80 anos, os Estados Unidos dão uma guinada radical em direção ao fortalecimento de suas relações unilaterais.

Para o embaixador Castro Neves, é um equívoco interpretar a estratégia da China como tentativa de alijar os Estados Unidos de sua posição hegemônica no mundo. A China apenas ocupa o vácuo que se acentuou em 2016, quando o presidente Trump determinou que os interesses dos Estados Unidos vinham em primeiro lugar. O jogo mudou: “Antes da covid-19, uma nova ordem global já estava em formação. A pandemia não muda a situação, apenas a acelera”. A China antevia as mudanças e antecipou suas jogadas no tabuleiro.

Arthur Guimarães, gerente do escritório de Xangai da Câmara Chinesa de Comércio do Brasil, acentua que a BRI beneficia não só os países envolvidos pelas novas rotas marítimas e terrestres, mas também o próprio território chinês. As rotas passarão por áreas pouco urbanizadas do país. E, também, a nova estrutura de escoamento de commodities e de manufaturados derrubará os custos de importações e de exportações.O Brasil será beneficiado, na medida em que a melhora da infraestrutura asiática facilitará a criação de mercados para os produtos daqui.

Guimarães acrescenta que compõe esse projeto o avanço de tecnologias nas áreas de conexão (5G), internet das coisas, robótica e inteligência artificial. Nessa área, a China tem um plano com nome e data: o Made in China 2025, que em cinco anos lhe dará independência tecnológica.

20 de maio de 2020

UM NOVO MOMENTO DEMANDA NOVAS COMPETÊNCIAS DE LIDERANÇA!

(Pedro Coutinho – Folha de S.Paulo, 19) Neste artigo falo sobre um dos desafios que estamos vivenciando: a gestão do trabalho remoto. Essa realidade, que já vinha sendo parte da nossa dinâmica, foi acelerada com a pandemia e com o isolamento social.

Em pouco tempo tivemos que aprender a trabalhar, se relacionar, comunicar e, principalmente, liderar a distância. Com isso estamos enfrentando alguns novos desafios, entre eles: como reestabelecer a confiança num momento de tantas incertezas? Como motivar os times trabalhando de casa? Como conciliar o inesperado do home office às atividades normais de uma casa com crianças, animais e as questões rotineiras? Como manter uma cultura sem contar com as interações do dia a dia?

Ao longo da minha carreira participei e compartilhei minha experiência em aulas sobre liderança. Posso garantir que nenhum aprendizado foi tão intenso quanto este que estamos vivenciando, o que nos provoca a refletir sobre novas formas de liderar.

Fazendo um breve balanço, o trabalho a distância, com essa frequência, nos trouxe várias experiências. Uma delas é ter a possibilidade de um tempo maior com a família e, também, alguns dias de muita criatividade e outros de dificuldade de adaptação. Também abrimos mão de exigências das estruturas físicas, estamos buscando manter alinhamentos constantes e soluções rápidas.

Em termos de resultados, o home office apresenta saldo positivo para a empresa, com aumento de produtividade e de responsabilidade e empoderamento dos times. Por outro lado, potencializa a percepção de isolamento, a necessidade de implementar novos controles ou administrar problemas estruturais quando implementado muito rápido ou sem critérios.

Não podemos deixar de lado que nunca foi tão difícil cuidar da gestão do tempo, planejar as atividades, coordenar as agendas e garantir a entrega dos resultados. E, fazer tudo isso com tal intensidade, é um desafio para líderes e liderados.

Sob o ponto de vista tecnológico, esse período nos permitiu testar a qualidade de nossas ferramentas para conexões, porém devemos refletir se estamos cuidando da qualidade de nossas conversas em todos os níveis.

Como base para essa mudança, destaco que a comunicação nunca foi tão fundamental como forma de interação genuína com as pessoas. Aprendemos nesse período que o líder deve adequar a frequência e a forma de comunicar, respeitando as necessidades individuais de seu time, considerando um esforço maior de contextualizar e garantir uma clareza de propósito.

Isso significa que as nossas conversas, sejam escritas, por áudio ou webcam, devem transmitir maior energia —temos que ser mais diretos, praticar a escuta, fazer perguntas. Como líderes, demonstrar que também somos vulneráveis, pedir feedbacks, evitar os monólogos e incentivar a participação de todos.

Faz parte da nossa cultura essa capacidade de se adaptar rapidamente; porém, o segredo está em eliminar algumas barreiras. Não se trata apenas de aprender esse novo modo de trabalhar, mas de entender o que realmente funciona e o que precisa ser adaptado. Lembrando que o sucesso de trabalhar em casa ou nos escritórios depende de como estamos organizados, como nos comunicamos e como acompanhamos.

Quanto maior a nossa capacidade de entender as dificuldades do outro, dar autonomia e corrigir os erros rapidamente, maior será a relação de confiança, e evoluiremos com uma equipe de alta performance.

19 de maio de 2020

DEPOIS DA COVID, A DÍVIDA PÚBLICA!

(Claudio Adilson Gonçalez – O Estado de S. Paulo, 18) Os danos para a economia e para as finanças públicas brasileiras provocados pelo surto da covid-19 serão gigantescos. Meu modelo de projeção, baseado em hipóteses relativamente otimistas para o cenário internacional e supondo saída gradual do isolamento social, que só terminaria completamente no segundo trimestre de 2021, indica que o PIB terá contração de 5,0% em 2020. O déficit primário da União, no corrente ano, deverá alcançar R$ 650 bilhões (cerca de 9% do PIB).

De acordo com esse cenário, a dívida bruta do governo geral (DBGG), em 2021, será de 102% do PIB (conceito FMI), ou 90% do PIB (conceito governo brasileiro). A diferença entre essas duas métricas é que, ao contrário do que faz o FMI, o governo brasileiro exclui da DBGG os títulos de emissão do Tesouro Nacional que estão fora do mercado, na carteira do Banco Central (BC). Por razões técnicas, prefiro e adotarei aqui o conceito do FMI, até porque é o utilizado em comparações internacionais. Para ter uma ideia do estrago, no final de 2019 a DBGG era de 89% do PIB, ou seja, em dois anos crescerá cerca de 13% do PIB.

Isso significa que o Brasil caminha para a insolvência ou que entrará na chamada dominância fiscal, possibilidade admitida recentemente pelo economista Samuel Pessôa? Não necessariamente, pois nos restam alternativas para lidar com o problema.

O primeiro ponto a lembrar é que, para um dado resultado primário, a dinâmica da dívida depende do diferencial entre a taxa real de juro (r) ea taxa real de crescimento da economia (g). Tudo indica que r-g, ao menos nos próximos dois a três anos, tenderá a ser nulo ou até mesmo negativo, o que ajudará a conter, ou até mesmo a reduzir, a relação dívida/PIB. Duas razões dão suporte a essa previsão: uma de natureza externa, outra doméstica.

A razão externa é que os juros nominais nos países desenvolvidos serão mantidos em patamares muito baixos, até mesmo negativos, não só pela inexistência de quaisquer sinais de inflação no futuro visível, como também para tentar estimular a recuperação da atividade econômica e evitar a deflagração de forte crise de inadimplência de devedores, tanto empresas como pessoas físicas. Para os interessados, sugiro a leitura de um importante artigo do consagrado economista Kenneth Rogoff, em que propõe taxa de juros básica de até -3% ao ano nos EUA: https://www.project-syndicate.org/commentary/advanced-economies-need-dee ply-negative-interest-rates-by-kennethrogoff-2020-05.

A razão doméstica é que, no que pese ser provável modesta retomada do crescimento da economia a partir de 2021, o PIB efetivo deverá continuar abaixo do potencial (hiato do produto negativo) pelo menos até o final de 2022, o que possibilitará ao BC manter a taxa real básica de juro em patamar muito baixo, provavelmente aquém da taxa de crescimento do PIB, sem ameaçar o cumprimento da meta de inflação.

Apesar disso, a solução da crise fiscal não virá sem sacrifícios. A reforma administrativa, muito mais severa do que a que se pensou antes da epidemia, e uma reforma tributária que inclua não só a excelente proposta contida na PEC 45, que cria o Imposto sobre Bens e Serviços, como também drástica redução dos privilégios tributários da população mais rica, como os hoje concedidos no sistema de lucro presumido e nas vultosas desonerações e renúncias fiscais, serão instrumentos importantes para o ajuste das contas públicas e para o aumento de produtividade da economia.

Mas não é só isso. O governo ainda possui estatais valiosas que podem e devem ser privatizadas, e necessita retomar o programa de concessões. Essas medidas não só melhorarão as finanças públicas, como impulsionarão a produtividade e o crescimento econômico.

Como se vê, a questão é mais política do que técnica, e aí é que mora o maior perigo.

18 de maio de 2020

SOBREVIVÊNCIA PESSOAL!

(Albert Fishlow – O Estado de S. Paulo, 17) Todos os lugares do globo foram atingidos pelo coronavírus. Com o número de mortes chegando a mais de 300 mil e os casos positivos a mais de 4,5 milhões, as pessoas estão cada vez mais abatidas. De um lado, a ciência real toma consciência da complexidade do vírus e os seus efeitos abrangentes sobre jovens e adultos. E levará tempo para uma vacina eficaz ser testada e produzida de modo adequado.

Por outro lado, as pessoas começam a se cansar da falta de acesso ao seu trabalho e lazer. E há um impacto notável e possivelmente permanente sobre os pobres. Eles são os únicos que necessitam trabalhar e não podem viver separados de outras pessoas e não têm condições de educar seus filhos. Os ricos aproveitam e usam as reuniões pelo Zoom, têm acesso a todo tipo de entretenimento, da ópera ao cinema e à política pública.

Ao mesmo tempo, o desemprego disparou e a renda nacional dos países despencou. O comércio internacional encolheu e o G-20 não pode depender da OMC em busca de uma política e uma estratégia coerentes.

Inversamente, a política parece estar se dirigindo, como ocorreu durante a Grande Depressão, no sentido de um aumento de tarifas e cotas, dando menor atenção a um bem maior. Os países se tornam cada vez mais nacionalistas, populistas, autocráticos e sensíveis à torrente de notícias falsas na internet.

Estratégias alternativas vêm sendo adotadas por alguns países, uma vez que a pressão para uma abertura exige ação governamental. Em muitos casos a pressão surge depois de meses de um fechamento praticamente total e uma circulação muito limitada das pessoas. E quase todos eles continuaram a realizar testes generalizados como parte fundamental do processo de abertura.

No caso de outros países, como EUA e Brasil, a política pública tem sido diferente. Decisões para abrir o comércio em geral têm sido dominadas com vista às próximas eleições, a se realizarem em questão de meses, e a necessidade de ênfase na produção econômica, mais do que qualquer preocupação ética pelas vidas que vêm sendo perdidas.

A campanha de Trump para sua reeleição não ajuda diante da sua preferência pelos comícios e sua capacidade peculiar de adulterar toda e qualquer opinião contrária à dele. Ele descartou as afirmações do Dr. Anthony Fauci, que tem tido um papel crucial na promoção de uma visão mais racional do problema, e inversamente, declarou vitória imediata contra o coronavírus.

Agora, Estados e municípios americanos precisam controlar o vírus sem mais ajuda federal. E eles necessitam de pequenos subsídios para fazer frente a circunstâncias inesperadas. Hoje, operar enormes déficits requer compensações. Se são unidades da federação governadas por democratas, nada mais será feito. Se republicanos estiverem envolvidos nesses governos, a situação de alguma maneira será ajustada.

As políticas de Bolsonaro são ainda piores. Já no início ele negou a existência do coronavírus. O Brasil, infelizmente, continua a sofrer. Na última contagem, os números oficiais eram de 218 mil casos com 14,8 mil mortes. Esses dados não são confiáveis. No Reino Unido a proporção é duas vezes maior. Mas mostram que o Brasil vem se equiparando aos EUA em número de mortes, um dado espantoso.

Com a renúncia do ministro da Justiça, Sergio Moro, as críticas ao governo aumentaram. Provas parciais de vídeos de conversas sugerem que a imunidade dos filhos de Bolsonaro teve mais a ver com a saída do ministro do que outra coisa. E especialmente desagradável é o total desinteresse do presidente pelos números de mortos em meio a uma escassez total de equipamentos de saúde.

O que vemos nesses casos é uma maior preocupação com a sobrevivência pessoal do que um foco nas políticas nacional e econômica. Nos EUA, pelo menos, a próxima eleição demonstrará se uma estratégia de longo prazo mais racional vai emergir, concentrada num maior acesso à assistência médica, impostos mais altos para os mais ricos e um foco aumentado na educação. No Brasil, a derrota de candidatos de direita nas prefeituras para políticos ávidos para reconstruir um Brasil próspero e democrático a partir do centro servirá como primeiro sinal de uma recuperação e de um avanço mais rápido.

15 de maio de 2020

SOBRE FILAS E DESCOMPASSO NA URGÊNCIA SOCIAL!

(José Serra, senador – O Estado de S. Paulo, 14) As filas, enormes e anárquicas, que a população brasileira tem enfrentado para receber um benefício social emergencial contrariam as normas sanitárias e o bom senso. De forma precipitada, mas previsível, o dedo acusador é endereçado ao ente pagador, a Caixa Econômica. O descompasso entre a urgência social (a emergência sanitária) e o martírio dos longos períodos na espera de atendimento – muitas vezes infrutíferos – pode ser manifestação da ineficiência e ineficácia da corporação. Mas também, e mais provavelmente, é a expressão de um desenho legal e institucional inadequado para responder a uma situação que o mundo está vivendo e nos pegou a todos de surpresa. A atual pandemia pode não ser um cisne negro, mas seu tamanho, tal como se mostrou, com extensão e virulência inéditas na História recente da humanidade, era improvável.

No Brasil, o caso específico do pagamento do auxílio emergencial se reproduz, com outras singularidades, nas mais diversas dimensões sociais, políticas, econômicas e mesmo científicas. Os protocolos usuais para criar, testar e aprovar medicamentos parecem estar em conflito com as demandas por respostas sanitárias quase imediatas ao flagelo. Toda a formatação institucional, legal e organizacional, que parecia ser funcional em tempos “normais”, está sendo submetida a um estresse que induz, pela ineficiência que revela neste momento de crise, a desrespeitar o seu cumprimento. Metas fiscais como as contempladas no Tratado de Maastricht, no caso europeu, são abertamente ignoradas. Se alguma vez puderam ser consideradas um arcabouço para disciplinar potenciais irresponsabilidades na gestão da política econômica, hoje parecem completamente disfuncionais.

Que lições podemos colher do atual choque? Parece óbvio: a resposta dependerá do futuro pós-pandemia. Se assumimos uma perspectiva otimista e presumimos um rápido retorno ao “antigo normal”, as tarefas para o futuro serão desafiadoras; essencialmente, consistirão em administrar a “ressaca” no tempo – como as dívidas públicas que serão deixadas de herança. Alguns ajustes serão feitos nas diversas áreas, principalmente na sanitária, mas, basicamente, instituições, marcos legais e formatações organizacionais permanecerão.

Nessa perspectiva, a atual crise seria entendida como um evento transitório, talvez produto da “má sorte”, um episódio que dificilmente se reproduziria no futuro e que, com os ajustes pertinentes, na eventualidade de uma réplica, as sociedades – especialmente as modernas democracias liberais – seriam capazes de administrar. Transformar o período pré-coronavírus em nova utopia a ser perseguida apequena os corolários da atual crise.

Afora aspectos muito específicos, a recomendação que podemos extrair da análise da atual conjuntura diz respeito à necessidade de assumirmos o futuro em que o normal é formular respostas flexíveis para a incerteza e a dubiedade, com o desenho de marcos de regulação institucional, legal e organizacional propensos a rápidas adaptações. Estruturas rígidas, centralizadas, muito hierarquizadas, nas quais prevalecem lentos processos burocráticos de decisão, aprofundarão custos dos imprevisíveis choques negativos no futuro. A única certeza que podemos ter é a imprevisibilidade e a ela temos de nos adaptar.

A estrutura da Caixa não parece ser a mais adequada para oferecer uma resposta urgente à situação atual de emergência social. Não apenas não oferece solução eficiente, como aprofunda os desdobramentos negativos, com as filas e aglomerações.

Outras formas organizacionais, como as atuais fintechs, devem ser avaliadas e experimentadas. Em termos de marcos legais, não é razoável imaginar que um benefício emergencial possa deixar de ser pago porque o CPF do potencial beneficiário foi bloqueado por pendência com a Justiça Eleitoral. Isso deveria ter sido considerado antes do anúncio dos pagamentos, e não após as aglomerações e confusões amplamente noticiadas.

Em matéria sanitária temos situações similares. Uma resposta inadequada ou insuficiente seria a formação futura de amplos recursos humanos na área de médicos “urgentistas”. Todavia não sabemos onde e como se manifestará a próxima crise sanitária. A prioridade deve ser formar recursos humanos nas diferentes áreas da saúde com flexibilidade para serem alocados com rapidez onde a carências se manifestarem.

O mundo moderno é assemelhado a uma enorme rede. A sua complexidade e a interconectividade têm inúmeras vantagens, mas apresentam enormes riscos, sendo um deles a possibilidade de choques que provoquem processos centrífugos de desintegração. Em outros termos, as sociedades contemporâneas podem ser comparadas a sistemas dinâmicos em que as possibilidades de uma trajetória caótica são sempre factíveis. Não podemos retroceder na complexidade atual das interações dos países e tampouco prever a integralidade dos choques. A alternativa será desenvolver marcos institucionais, legais e organizacionais que tenham flexibilidade suficiente para evitarmos cenários de caos e desintegração.

14 de maio de 2020

QUEBRA-CABEÇAS ‘COVID’!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 09) Auric Goldfinger, vilão do romance batizado em seu nome, cita a James Bond um vívido aforismo de Chicago: “Se acontece uma vez, é o acaso; duas, coincidência; se acontece três vezes, trata-se de atividade inimiga”.

Até 2002, a ciência médica conhecia um punhado de formas de coronavírus que infectavam os humanos e nenhuma delas provocava doença grave. Então, em 2002, um vírus hoje conhecido como SarsCoV surgiu na província chinesa de Guangdong. A subsequente epidemia de síndrome respiratória aguda grave (Sars, em inglês) matou 774 pessoas em todo o mundo, antes de ser controlada. Em 2012, outra doença nova, a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers), anunciou a chegada do Mers-CoV, que ainda não foi eliminada, mesmo sem se disseminar com o mesmo alcance da Sars (com exceção de uma excursão à Coreia do Sul). Já são mais de 858 mortos até o momento, o mais recente óbito ocorrendo em 4 de fevereiro.

Na terceira vez, foi o Sars-CoV-2, agora responsável por 225 mil mortes decorrentes da covid-19. Tanto o Sars-CoV quanto o Mers-CoV são próximos dos tipos de coronavírus encontrados em morcegos. No caso do Sars-CoV, a narrativa aceita diz que o vírus se espalhou de morcegos em uma caverna na província de Yunnan para as civetas, que são vendidas nos mercados de Guangdong. No caso do Mers-CoV, o vírus se espalhou dos morcegos para os camelos. Agora, é transmitido habitualmente dos camelos para os humanos, o que o torna difícil de eliminar, mas só é contraído por pessoas em condição de extrema proximidade, o que o torna administrável.

A hipótese de uma origem entre os morcegos parece a mais provável também para o Sars-CoV-2. Mas ainda não identificamos a trajetória do vírus do morcego até o ser humano. Se, como no caso do Mers-CoV, o vírus ainda circula em algum tipo de reservatório animal, pode haver novas epidemias no futuro. Caso contrário, outros vírus certamente tentarão algo parecido. Peter Ben Embarek, especialista em zoonoses – doenças transmitidas dos animais para as pessoas – da Organização Mundial da Saúde (OMS), diz que esse tipo de contágio está se tornando mais comum conforme os humanos e os animais da pecuária invadem novas áreas onde ficam em contato mais frequente com animais silvestres. É importante compreender como ocorrem esses contágios para que possamos aprender a impedi-los.

Mas, para alguns, fica na consciência a possibilidade de atividade inimiga envolvendo algo menos impessoal do que um vírus. Com o advento da engenharia genética nos anos 1970, os teóricos das mais variadas conspirações apontaram para praticamente todas as novas doenças infecciosas (aids, ebola, Mers, doença de Lyme, Sars, zika…) como resultado da interferência humana, possivelmente maligna. As dinâmicas políticas da pandemia da covid-19 significam que, dessa vez, esse tipo de teoria parece ainda mais sedutor do que o habitual. A pandemia teve início na China, onde o governo se dedicou a acobertar o problema antes de adotar medidas que poderiam ter limitado sua disseminação. O maior estrago foi causado nos Estados Unidos, onde o número de mortos pela covid-19 já ultrapassa a quantidade de nomes no Memorial da Guerra do Vietnã, em Washington.

Esses fatos teriam levado a acusações de um lado ao outro do Pacífico independentemente de qualquer outro detalhe. O que piora a situação é a suspeita de alguns segundo a qual o Sars-CoV-2 poderia de alguma forma estar ligado à pesquisa viral chinesa, e o fato de dizê-lo alterar a distribuição das responsabilidades. Não há nada que corrobore essa acusação. Especialistas ocidentais dizem categoricamente que o sequenciamento do genoma do novo vírus – logo publicado de maneira precisa pelos cientistas chineses, com total abertura – não apresentava nenhum dos habituais indícios de manipulação genética. Mas o fato é que, em Wuhan, onde o surto da covid-19 foi descoberto, há um laboratório onde, no passado, cientistas fizeram tentativas deliberadas de tornar o coronavírus mais patogênico.

Pesquisas desse tipo são realizadas em laboratórios de todo o mundo. Para os defensores desses projetos, trata-se de uma maneira vital de estudar uma questão que a covid-19 trouxe cruelmente para o centro das atenções: como um vírus se transforma no tipo de coisa que dá início a uma pandemia? Parece quase certo que o fato de parte dessa pesquisa ter ocorrido no Instituto de Virologia de Wuhan (WIV) é apenas uma coincidência. Mas, na ausência de uma narrativa convincente e completa explicando a origem da doença, resta espaço para dúvidas.

A origem do vírus por trás da epidemia de Sars de 2003 – “Sars clássica”, como alguns virólogos passaram a chamá-la – foi revelada em grande parte pela pesquisadora Shi Zhengli, do WIV, a quem às vezes a mídia chinesa chama de “Tia dos Morcegos”. Ao longo dos anos, ela e sua equipe visitaram sítios remotos em todo o país na busca por um parente próximo do Sars-CoV nos morcegos ou no seu guano (um substrato natural vindo das fezes do morcego). Encontraram um em uma caverna cheia de morcegos-de-ferradura em Yunnan.

É na coleta de genomas virais reunidos durante esses estudos que os cientistas identificaram agora o vírus de morcego mais semelhante ao SarsCoV-2. Uma cepa chamada RaTG13 coletada na mesma caverna de Yunnan compartilha 96% de sua sequência genética com o novo vírus. O RaTG13 não é o ancestral do nosso vírus, e sim algo mais parecido com um primo. O virólogo Edward Holmes, da Universidade de Sydney, estima que os 4% de diferença entre os dois representem pelo menos 20 anos (provavelmente algo mais perto de 50 anos) de divergência evolutiva, a partir de um ancestral em comum.

Ainda que, em teoria, os morcegos possam ter transmitido um vírus descendente desse ancestral diretamente para os humanos, os especialistas consideram essa hipótese pouco provável. O vírus dos morcegos tem uma diferença específica em relação ao SarsCoV-2. No caso do Sars-CoV-2, a proteína
protuberante na superfície da partícula viral apresenta um domínio de ligação ao receptor (RBD) particularmente capaz de se ligar a uma molécula na superfície da célula humana infectada pelo vírus. O RBD no coronavírus dos morcegos não é o mesmo.

Um estudo recente indica que o Sars-CoV-2 seria produto de uma recombinação genômica natural. Diferentes tipos de coronavírus infectando o mesmo hospedeiro se mostram dispostos a trocar partes do seu genoma entre si. Se um vírus de morcego semelhante ao RaTG13 chegasse a um animal já infectado com um coronavírus equipado com um RBD mais adequado para infectar humanos, é possível pensar no surgimento de um vírus de morcego com RBD melhor sintonizado aos humanos. É isso que o Sars-CoV-2 aparenta ser.

Futuro. Muitos cientistas acreditam que, com tantos biólogos caçando ativamente os vírus de morcegos, e as pesquisas de ganho de função se tornando mais comuns, o mundo está diante de um risco cada vez maior de uma pandemia nascida de um laboratório. Atualmente há cerca de 70 instalações de biossegurança do tipo BSL-4 em 30 países. Planeja-se a construção de mais instalações dessa categoria. Mas, novamente, é necessário pensar no desconhecido. Todos os anos há milhares de casos fatais de doenças respiratórias em todo o mundo cuja causa é misteriosa. Algumas podem ser resultado de zoonoses não identificadas. É necessário dar atenção à questão desse possível elo e do número dessas mortes. Para tanto, são necessários laboratórios. É necessário também um grau de cooperação aberta que os EUA estão agora enfraquecendo com suas acusações e recusa em oferecer financiamento, e que a China tentou suprimir nas origens. Essa supressão em nada ajudou o país. Ao contrário: ao fomentar a especulação, seu resultado pode ter sido negativo.

13 de maio de 2020

SINUCA DE BICO!

(Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal – O Estado de S. Paulo, 12) A forma como o Brasil vem tratando da crise do coronavírus – seja no controle das contaminações, seja de seus impactos econômicos – é bastante preocupante.

Por um lado, a falta de coordenação e de profissionalismo na gestão do isolamento social (com especial destaque para a atitude negacionista do presidente da República) tem conduzido a um ritmo crescente de contaminações e mortes após quase dois meses de confinamento. Neste cenário, a retomada da atividade econômica, ainda que parcial, tende a ser postergada, seja pelo acirramento das medidas de distanciamento social, seja pelo próprio temor da população.

Por outro lado, o espaço fiscal para medidas de compensação dos efeitos da crise está cada vez mais estreito. Além de partir de um patamar elevado de dívida pública, o custo fiscal das medidas já anunciadas de combate à crise tem sido extremamente elevado. Segundo estimativas elaboradas por uma equipe coordenada por Marcos Lisboa, o custo fiscal da crise em 2020 tende a ser de, pelo menos, R$ 597 bilhões. Tal custo já dificulta bastante a contenção do crescimento da dívida pública sem um aumento da carga tributária, que teria impactos muito negativos para o crescimento do País.

A conjunção desses dois elementos é explosiva. De um lado, a má gestão da política de isolamento social torna difícil a sua flexibilização e a retomada da atividade econômica. De outro, o custo das medidas econômicas adotadas já é muito elevado – provavelmente maior do que precisaria ser –e o espaço fiscal para sua prorrogação é cada vez menor. É uma sinuca de bico que provavelmente levará a que tanto as mortes quanto o custo social e econômico da crise sejam mais elevados no Brasil do que em outros países.

Se a política de isolamento social e a política econômica tivessem sido bem conduzidas, o ritmo de contaminação já teria caído, o confinamento estaria sendo progressivamente afrouxado e as medidas horizontais de garantia de renda das famílias e de garantia do emprego estariam sendo substituídas por políticas focalizadas e de menor custo para o governo.

Não dá para voltar atrás e refazer a trajetória dos últimos dois meses. Mas ainda é tempo de tentar minimizar o custo humano, social e econômico da crise nos próximos meses. Para tanto, precisamos de profissionalismo, de planejamento e de coordenação – entre os Poderes da República e entre os entes da Federação.

Em primeiro lugar, é preciso ter uma estratégia inteligente e coordenada de distanciamento social, de uso de equipamentos de proteção individual e de testagem da população – a qual, se não puder ser a mais ampla possível, pelo menos tem de ser a mais racional possível. Essa é a condição indispensável para que a atividade econômica seja retomada, ainda que parcialmente, no menor prazo possível.

Em segundo lugar, é preciso reavaliar as medidas de garantia da renda, do emprego e da liquidez das empresas, planejando a transição das medidas horizontais adotadas no início da crise para medidas focalizadas e com menor custo fiscal. Para tanto, é preciso uma avaliação rápida e detalhada das providências que já foram adotadas.

Por fim, é preciso avançar na estruturação de uma agenda de aumento da produtividade e de reforma do Estado, para que, na saída da crise, o crescimento da economia seja o maior possível e a expansão das despesas públicas seja controlada, contribuindo para uma trajetória sustentável da dívida pública. Trata-se de parte central da agenda de financiamento do custo fiscal da crise. Talvez ainda não seja o momento de avançar no debate dessa agenda no Legislativo, mas é importante que ela esteja o mais madura possível para quando esse debate se iniciar.

Sei que é difícil de avançar no sentido do profissionalismo e da coordenação, até porque o chefe do Poder Executivo federal não parece ter o menor interesse nessa agenda. Mas alguém precisa fazê-lo, sob risco de perdermos muito mais vidas e de termos um custo econômico muito maior do que o inevitável.

12 de maio de 2020

OS BASTIDORES DA CIÊNCIA!

(Claudio de Moura Castro, pesquisador em educação – O Estado de S. Paulo, 11) Para promover suas agendas, políticos e oportunistas de todos os matizes reivindicam ser verdade científica o que dizem.

Apesar de maltratada por autoridades e “orçamenteiros”, com a epidemia do novo coronavírus a ciência está indo à forra. De fato, dependemos quase servilmente dela. Porém desacordos e trocas de farpas sugerem que virou balbúrdia. Será?

Sempre tentei mostrar a meus alunos o esplendoroso edifício da ciência, uma construção onde vai um tijolo sobre o outro. Tem cumulatividade e produz resultados sólidos. Há um imperativo de buscar erro em tudo. Sendo assim, o que sobrevive merece confiança. Pode demorar, mas os desencontros e as controvérsias acabam sendo resolvidos. Valores pessoais são progressivamente banidos. E toma água sanitária nas contaminações ideológicas!

Entra ano, sai ano, a máquina do método científico vai esmerilhando arestas e esmagando estultices – por mais promissoras que parecessem. No seu ritmo pachorrento, vai desbastando o entulho.

De repente, vem o coronavírus! O palavrório e as colisões fragorosas dão a impressão de que o método científico está sendo defenestrado. Pesquisadores proclamam com ferocidade suas ideias e versões. E quase sempre se chocam com as verdades de outra prima-dona. Soçobrou a ciência?

Há hoje um real e inevitável choque entre os cientistas mais ortodoxos e os que estão na linha de frente, geralmente, os médicos. Os primeiros passaram a vida proclamando os rigores do método científico. Por que agora seria diferente?

Tradicionalmente, a medicina ampara-se na ciência. Porém a ciência só chega até certo ponto. Daí para a frente, o campo é pantanoso. E os médicos sempre conviveram com essa penumbra do que é apenas parcialmente iluminado pela ciência. Entra em cena o conhecimento tácito, o “olho clínico”. E a decisão não pode esperar os testes, demorados e caros. Diante do médico está o paciente. A inação não é uma escolha.

Arrisco dizer que jamais um fármaco foi objeto de batalhas tão virulentas como a hidroxicloroquina. Ademais, virou cavalo de batalha de políticos.

Os chineses usaram a hidroxicloroquina e não concluíram nada. Os italianos, tampouco. Um médico francês, meio bizarro, garante que funciona. Outro de Nova York afirma o mesmo. Até agora os resultados são inconclusivos. Para a ciência, estamos na estaca zero.

No furor da batalha, os minuciosos e arcanos protocolos da ciência parecem estar sendo esquartejados. O edifício da ciência se esboroa? O público, atônito, percebe as guerras encarniçadas e dilacerantes entre os cientistas. Entram também em cena os que entendem alguma coisa e mais os que não entendem nada. Em geral, estes são os mais pródigos em palpites definitivos.

Pior, para promover suas agendas, políticos e oportunistas de todos os matizes reivindicam ser verdade científica o que dizem. Às vezes parece que existe uma ciência de esquerda e uma de direita. Não obstante, como os médicos, os dirigentes têm de tomar decisões.

E aí, além de vidas, o coronavírus está destruindo o delicado tecido com que se constrói a ciência? A hipótese deste ensaio é pela negativa.

Tudo segue muito parecido, segue como sempre foi. O que mudou foi o ritmo em que, diante da crise, passou a operar a ciência. E, também, a maior transparência pública das controvérsias, com as redes sociais tornando tudo escancarado.

Mas parece-me que, no que conta, muda apenas a velocidade. A ciência tradicional anda em câmera lenta, em comparação com o ritmo frenético de hoje.

Tradicionalmente, impunha-se a sobriedade gélida das pesquisas. Ela ia limpando o campo. Sobrava espaço apenas para os sobreviventes (simplificando um pouco).

Antes das pesquisas sólidas, a brigalhada sempre existiu. Ainda assim, tudo se passava longe, mesmo dos cidadãos mais bem-educados. Não por sigilo, mas pela aridez do tema ou pela incapacidade de penetrar na sua linguagem hermética.

Os egos transbordavam, monumentalmente. Newton nutria por Leibnitz um ódio doentio. Galileu duelou ferozmente com o Vaticano. A maioria das desavenças não comoveu os leigos. É o caso das discordâncias de Einstein com seus colegas. Ou Edison com Tesla. Outras polarizaram mais do que a hidroxicloroquina. Darwin buliu num vespeiro.

Mas são brigas que se diluem ao longo dos séculos. Em contraste, agora se compactam em semanas e têm como espectador ansioso o grande público. Este apenas vê as colisões espetaculosas, não percebendo que, alguma hora, a poeira baixa e os resultados não admitem mais desacordos.

De janeiro para cá, circularam 7.500 novas pesquisas no mundo científico. Boa parte nem merecerá publicação nos periódicos sérios. Das publicadas, pouquíssimas chegarão a ser citadas. Como sempre, sobra apenas um punhadinho.

Um estudioso dos processos da ciência verá o coronavírus criando um cenário que encurta em meses o que levava décadas para acontecer, discretamente. E oferece à sociedade uma amostra distorcida de como funciona a pesquisa, pois a urgência comprime em semanas as conflagrações. Mas é questão de tempo, o limpa-trilhos do método científico funcionará. Virão as respostas! E poucos ainda creem haver alguma fonte alternativa.

Com o coronavírus, há choque entre cientistas mais ortodoxos e os que estão na linha de frente.

11 de maio de 2020

EM BUSCA DE DINHEIRO PRIVADO, GOVERNO VÊ MAIOR PPP, NO RIO, AFUNDAR!

(Italo Nogueira  – Folha de S.Paulo, 10) Enquanto o ministro da Economia, Paulo Guedes, aposta em investimentos privados para a retomada da economia após a pandemia do novo coronavírus, a maior parceria público-privada do país corre o risco de afundar.

A PPP de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro passa por novo impasse para a manutenção das atividades da concessionária Porto Novo na região. A parceria envolve, além da empresa, um fundo imobiliário da Caixa Econômica Federal e a Prefeitura do Rio de Janeiro.

O ambicioso projeto de obras e serviços públicos iniciado em 2011, com custo total estimado em R$ 10 bilhões em 15 anos, já foi desidratado. Atualmente, envolve apenas a manutenção de dois complexos de túneis na área.

O investimento anual que girava em torno de R$ 400 milhões se resume desde setembro ao gasto de R$ 4,3 milhões mensais. Ainda assim, pode acabar neste mês.

As negociações entre a prefeitura, a Caixa e a concessionária para a manutenção dos túneis da região portuária e sua sinalização ainda não foram concluídas, apesar de o contrato se encerrar no próximo dia 15. Caso não haja acordo, o município deverá se encarregar do serviço.

Na sexta-feira (8), a Porto Novo emitiu nota afirmando que encerrará suas atividades no dia 5 de junho. Ela classifica o cenário de negociação atual como um “impasse” e lamentou a ausência de um acordo.

“Esperava-se nesses últimos oito meses que a Cdurp [Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária, da prefeitura] e a Caixa reunissem esforços para obter recursos financeiros e, assim, viabilizar a emissão de uma nova ordem de início apta a permitir a retomada, se não de todas as atividades previstas na PPP do Porto Maravilha, ao menos das que estão em curso. No entanto, até o momento, isso não ocorreu”, diz a empresa na nota.

O lento fim da maior PPP do país se arrasta desde 2015, causado pelo encalhe dos títulos imobiliários (chamados Cepacs) que autorizam a construção de prédios altos na região.

Há nove anos, o fundo imobiliário da Caixa comprou os 6,4 milhões de Cepacs e 400 mil metros quadrados de terrenos na zona portuária. Ele pagou à vista R$ 3,5 bilhões, com dinheiro do FGTS, e se comprometeu a repassar outros R$ 6,5 bilhões —em valores atualizados— por 15 anos.

Era com a revenda desses terrenos e papéis que o banco manteria o cronograma de repasse acertado com o município até 2026. Porém, com a crise econômica afetando o setor imobiliário, menos de 10% dos Cepacs foram vendidos.

O problema é que esse dinheiro é usado pela prefeitura para pagar à concessionária Porto Novo, responsável pelas obras e serviços básicos previstos para a região, como limpeza e gerenciamento de trânsito.

Em 2015, o FGTS teve de aportar mais R$ 1,5 bilhão para manter o cronograma das obras. Em 2016, nova engenharia financeira teve de ser feita. Desta vez, o município emprestou R$ 198 milhões para o fundo gerido para a Caixa, e a concessionária aceitou outros R$ 725 milhões em Cepacs como garantia de pagamento.

Todas essas negociações, feitas na gestão Eduardo Paes (hoje DEM, à época no MDB), tiveram como objetivo não atrasar a conclusão das principais obras, como a nova praça Mauá e o Museu do Amanhã, para a Olimpíada do Rio, em 2016.

Após o início da gestão Marcelo Crivella (Republicanos), a prefeitura voltou a exigir que o fundo da Caixa aportasse os valores devidos.

Com o impasse, nos últimos três anos houve interrupções momentâneas do serviço pela Porto Novo por falta de pagamento. Negociações foram feitas, e as atividades, retomadas.

No ano passado, a concessionária ameaçou parar mais uma vez os trabalhos. Um acordo foi fechado para que o fundo da Caixa bancasse apenas a manutenção de dois túneis da região, que exigem uma complexa estrutura de engenharia ao custo de R$ 4,3 milhões mensais. A prefeitura assumiu os serviços básicos, e as obras novas foram interrompidas.

O caso da PPP coincide com a intenção de Paulo Guedes de usar a retomada de investimentos privados para a recuperação da economia após o controle da transmissão do novo coronavírus.

O ministro defendeu a estratégia após o ministro da Casa Civil, general Braga Netto, anunciar o programa Pró-Brasil, que prevê um conjunto de medidas que incluem a retomada de gastos públicos para a recuperação de empregos.

Guedes criticou a possibilidade do governo usar dinheiro público para forçar a recuperação da atividade. Para a retomada, o ministro defende reformas estruturantes e a reformulação de marcos regulatórios, como os de saneamento e de energia, para atrair investimento privado.

Em nota, a Cdurp (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro), órgão da prefeitura, afirmou que há negociação em andamento com o objetivo de dar continuidade à manutenção dos túneis.

“Em relação à retomada da operação urbana consorciada Porto Maravilha, a Cdurp prossegue em tratativas com o Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha [gerido pela Caixa] na expectativa de normalizar os pagamentos das obras e serviços da parceria público-privada”, diz a nota da Cdurp.A Caixa Econômica Federal não se manifestou.

08 de maio de 2020

CORTE MAIS FUNDO NOS JUROS. E A INFLAÇÃO MERGULHA!

(Celso Ming – O Estado de S. Paulo, 07) O BC já antecipou que terá de continuar a cortar juros. Mas ninguém se iluda: não serão os juros no andar térreo que vão reativar a economia.

Nesta quarta-feira, o Banco Central cortou os juros básicos (Selic) mais do que o esperado: cortou 0,75 ponto porcentual. Estão agora em inéditos 3,0% ao ano, mas, em seu comunicado, admite mais um corte adicional de até 0,75 ponto porcentual na próxima reunião do Copom, agendada para 16 de junho.
Movimento igualmente importante do Banco Central é o reconhecimento de que a inflação esperada para todo o ano passa a ser de 2,0%, bem abaixo dos 3,0% indicados na reunião anterior do Copom e dos 4,0% em que está fixada a meta de inflação deste ano.

Mas vamos primeiramente aos juros. Como das outras vezes, sempre haverá quem entenda que, nas circunstâncias, o Banco Central devesse ser até mais agressivo e cortar a Selic mais fundo, de maneira a irrigar a economia com mais dinheiro. Pode ser, mas, também nas circunstâncias, seria improvável que maior redução da Selic ajudasse a reativar a atividade econômica, o emprego e a renda, porque a política monetária perdeu tração.

Não é por falta de crédito que a economia está rodando em marcha a ré. Está andando para trás porque o consumo despencou e a população está (mais ou menos) entocada para se defender do vírus. E, se tudo seguir de acordo com o presumível, o consumo deve cair ainda mais, porque o desemprego é alto e em crescimento, e o poder aquisitivo encolheu.

Os bancos continuam relutantes nas suas operações de empréstimo, porque o risco aumentou substancialmente. Grande número de endividados, tanto pessoas físicas como empresas, não terá como honrar seus compromissos e o melhor que poderá fazer é tentar renegociar os termos do seu passivo. Como mostrou a divulgação dos balanços nas últimas duas semanas, no final do primeiro trimestre deste ano, somente três bancos privados (Itaú Unibanco, Bradesco e Santander) amontoaram provisões (reservas) de R$ 21,7 bilhões para enfrentar calotes e atrasos no pagamento de dívidas de seus clientes.

Ou seja, não é falta de crédito nem escassez de moeda na economia que estão derrubando a atividade econômica e o consumo. Ainda assim, o momento pede dinheiro mais farto e mais fácil ou, como avisou o Banco Central no seu comunicado, “a conjuntura econômica prescreve estímulo monetário extremamente elevado”.

A inflação também está vindo abaixo. Nesta sexta-feira, o IBGE divulgará o IPCA, a medida do custo de vida, de abril. A expectativa é a de que virá um número fortemente negativo. O último Boletim Focus, divulgado semanalmente pelo Banco Central, mostrou que 119 líderes do mercado financeiro projetam para 2020 uma inflação média de 1,97%. Nas próximas semanas, essa estimativa deverá voltar a ser rebaixada. A probabilidade de que a evolução do IPCA afunde mais para o terreno negativo parece aumentar. Esse deslizamento embute certas distorções, já expostas nesta Coluna há algumas semanas. (Apenas resumindo, o IBGE, organismo encarregado do levantamento constante dos preços vigentes no mercado, opera agora com grandes limitações. A cesta de consumo sofreu alterações relevantes, especialmente nos segmentos de combustíveis, serviços pessoais, alimentação fora de casa e transporte público. Além disso, com o comércio fechado, ficou mais difícil aferir os preços praticados.)

Independentemente disso, o consumo caiu. Basta conferir como se reduziram as despesas feitas pelo cartão de crédito do consumidor de classe média. E este parece ser fator suficiente para continuar a derrubar os preços, como simples resultado da lei da oferta e da procura. Como a probabilidade de deflação ou de uma queda constante de preços é cada vez maior, o Banco Central não poderá dar os trâmites por findos em sua política monetária. Terá de continuar a cortar os juros, como já antecipou. A pergunta que segue é: até onde e até quando? Quem tem resposta firme para ela ou está mal informado ou está se enganando. Mas ninguém se iluda: não serão os juros no andar térreo que vão reativar a economia.

Também será preciso saber se o Banco Central está pronto para emitir moeda, seja pela recompra de títulos no mercado secundário, prevista no Projeto de Emenda da Constituição 10/20, seja simplesmente ajudando o Tesouro a enfrentar suas despesas.

07 de maio de 2020

DEPOIS DA DOENÇA, A DÍVIDA!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 04) Líderes nacionais gostam de falar da luta contra a covid-19 como uma guerra. Trata-se mais de uma figura de retórica, mas sob um aspecto eles estão certos. O endividamento público no mundo rico deve disparar para níveis vistos pela última vez em meio aos escombros e à fumaça de 1945. Enquanto a economia se despedaça, os governos vêm destinando bilhões a famílias e empresas para ajudá-las a sobreviver ao confinamento. Ao mesmo tempo, com fábricas, lojas e escritórios fechados, as receitas fiscais entram em colapso. Muito tempo depois de os hospitais cheios por causa da covid-19 se esvaziarem, os países ainda viverão as consequências da doença.

Uma extraordinária deterioração das finanças públicas está em curso. O governo dos Estados Unidos deverá contabilizar um déficit de 15% do Produto Interno Bruto (PIB) este ano, porcentagem que deverá aumentar caso mais estímulos sejam necessários. Por todo o mundo rico, segundo previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI), a dívida governamental bruta subirá de US$ 6 trilhões para US$ 66 trilhões no fim do ano, ou de 105% do PIB para 122% – aumento jamais visto em nenhum ano durante a crise financeira global. Se o confinamento persistir, a carga será muito maior. Administrar essas dívidas colossais sobrecarregará as sociedades ocidentais por décadas futuras.

Alguns assuntos no campo econômico despertam mais alarme do que a dívida governamental. O relógio da dívida do país perto da Times Square, em Nova York, já vem alertando para o iminente Armageddon fiscal desde 1989. Na verdade, a dívida pública de um país não é como o saldo do cartão de crédito de uma família. Quando a dívida nacional é detida pelos cidadãos, um país na verdade deve dinheiro a si mesmo. A dívida pode ser alta, mas o que importa é o custo do serviço dela. Enquanto eles forem baixos, esse serviço ainda é barato. Em 2019, os EUA gastaram 1,8% do PIB no pagamento de juros, menos do que há 20 anos.

Em 2019, a dívida pública bruta do Japão já correspondia a quase 240% do PIB do país, mas havia poucos sinais de que não poderia ser sustentada. Em países que imprimem o próprio dinheiro, os bancos centrais conseguem manter os juros baixos comprando títulos, como foi feito nas últimas semanas numa escala sem precedentes (o banco central americano comprou mais títulos do Tesouro em cinco semanas do que emitiu no ano até março).

No momento, não existe nenhum risco de inflação, especialmente por causa do colapso dos preços do petróleo. Muitos economistas se preocupam menos com as tomadas de empréstimos irrefreáveis dos governos e mais com sua maior timidez por causa de um medo irracional de elevar a dívida pública. Hoje, um suporte fiscal inadequado pode colocar a economia numa espiral de declínio.

Ao mesmo tempo que gastar livremente agora para evitar um colapso maior é o único caminho sensato, as tomadas de empréstimo trarão problemas. Os EUA têm fortes defesas contra uma crise financeira porque o dólar é a moeda de reserva do mundo e os países estrangeiros querem possuir seus títulos. Mas outros países ricos não têm essa chance. A dívida gigantesca da Itália e a sua participação na zona do euro condenam o país a viver com a ameaça perene de um pânico financeiro se o Banco Central Europeu (BCE) deixar de comprar seus títulos.

A boa notícia é que os mercados financeiros sinalizam que as taxas permanecerão baixas por décadas. Mas tanta coisa ainda é desconhecida no caso do vírus e seus efeitos que, neste momento, os investidores não conseguem ver claramente o futuro. Alguns economistas se preocupam de que, uma vez dominado o vírus, ocorra uma espiral de juros e preços à medida que uma explosão da demanda dê de encontro com redes de fornecimento destroçadas pela pandemia.

Caminho traiçoeiro. Os governos terão de trilhar um caminho traiçoeiro entre estímulo hoje e prudência amanhã. O sucesso não está garantido. Depois da Segunda Guerra Mundial, os países reduziram suas dívidas no curso de décadas, mas somente utilizando uma combinação de juros altos sobre o capital, repressão financeira (forçando investidores domésticos a manterem a dívida a juros artificialmente baixos) e inflação, que corrói o valor real das dívidas no decorrer do tempo.

Um baby boom e níveis de educação que rapidamente se elevaram tornaram mais fácil para as economias crescerem e saírem do endividamento. O Japão não enfrenta uma crise no mercado de títulos desde os anos 1990, mas o índice de endividamento em relação ao PIB continua a aumentar. Após a crise financeira em 2007-2009, alguns países europeus decidiram realizar cortes no orçamento para reduzir a dívida, com resultados controversos e uma forte reação política contrária.

A política de redução do déficit será tóxica. A pandemia deverá intensificar os apelos por gastos generosos e nenhum aperto de cinto, especialmente no campo dos serviços médicos.

Uma população que envelhece indica que a demanda por aposentadorias e gastos com saúde aumentará nas décadas de 2030 e 2040. Ficará mais caro manter os serviços públicos, sem falar em melhorias. Os políticos que reduzirem benefícios para pensionistas serão punidos por legiões de eleitores mais velhos. Haverá menos dinheiro poupado para combater crises futuras, como a climática, ou outras eventuais pandemias.

Diante dessa assustadora realidade, os governos do mundo rico cometerão um enorme erro se sucumbirem a preocupações prematuras e excessivas com os orçamentos. Embora estejam vivendo a agonia da pandemia, uma retirada de ajuda de emergência será contraproducente.

Uma inflação modestamente mais alta ajudaria, estimulando a taxa de crescimento nominal da economia. Quando esta excede o juro, as dívidas existentes com o tempo encolhem com relação ao PIB. Infelizmente os bancos centrais recentemente não atingiram suas metas de inflação. Nos últimos dez anos, o déficit cumulativo nos Estados Unidos e na zona do euro ficou em torno de 5 a 6%. Os bancos centrais deveriam se comprometer a criar um déficit que empate com inflação no futuro. O que diminuiria o peso da dívida sem romper com promessas passadas de se aterem às metas inflacionárias.

E os governos têm de se preparar para a tarefa de equilibrar os orçamentos mais para o fim da década. Feito corretamente, isso será mais justo e mais eficiente do que manter os juros baixos e permitir que a inflação dê uma arrancada, o que iria transferir a riqueza de maneira regressiva e arbitrária, por exemplo, reduzindo as dívidas de empresas, companhias e proprietários de imóveis imprudentemente alavancadas. O melhor é elevar os impostos sobre a terra, herança, emissões de carbono e, nos Estados Unidos, sobre o consumo – e pelo menos tentar reduzir os gastos no caso dos idosos.

Serviço da dívida pública. Talvez os juros realmente continuem baixos, ao passo que o crescimento pode se restabelecer e a inflação subir apenas ligeiramente, aliviando o peso da dívida. Conviver com dívidas enormes, provavelmente, será mais penoso e estressante. A elaboração de orçamentos implicará também encarar isso como um desafio definidor do mundo pós-covid-19 – um desafio que, hoje, os políticos nem mesmo começaram a confrontar.

06 de maio de 2020

COVID-19 E A ECONOMIA BRASILEIRA!

(Antonio Corrêa de Lacerda, presidente do Cofecon, Conselho Federal de Economia – O Estado de S. Paulo, 05) A pandemia de covid-19, além de imenso flagelo humano e social para o mundo todo, também traz consequências gravíssimas para a economia mundial, gerando uma recessão cuja profundidade vai depender da extensão e da magnitude dos seus efeitos.

O impacto na atividade econômica no Brasil deverá implicar uma contração do Produto Interno Bruto (PIB) da ordem de pelo menos 5%. Tudo vai depender, além da extensão da pandemia, principalmente, da ousadia, agilidade e eficácia na adoção de políticas e medidas em contraponto à crise.

Nesse sentido, alguns aspectos devem ser considerados, especialmente que bem antes da situação recente a nossa economia já vinha apresentando um quadro continuado de estagnação. No acumulado 2017-2019, o PIB per capita não cresceu mais do que apenas 0,3% ao ano, depois da queda de 6% acumulada em 2015-2016. E os investimentos, medidos pela Formação Bruta de Capital Fixo, estão num nível cerca de 25% inferior ao de 2014.

O aumento da nossa dependência de produção e exportação de commodities, ou de produtos de baixa complexidade e valor agregado, nos pega em cheio na atual crise, porque há não só uma queda da demanda internacional, mas também dos preços. Especialmente petróleo bruto, minério de ferro e produtos siderúrgicos experimentam fortes quedas de cotações.

Além disso, também nos tornamos dependentes de partes e componentes produzidos em regiões da China que têm sido fortemente afetadas, prejudicando a produção brasileira. O aumento da incerteza exacerba a volatilidade dos mercados, com impactos nos juros, no câmbio e nas bolsas. A crise também vem provocando queda de receita das empresas exportadoras. Esses efeitos combinados promovem uma postergação ou mesmo cancelamento de novos projetos, investimentos e contratações, aprofundando a contração.

Diante deste quadro, a adoção de um conjunto de políticas e medidas anticíclicas pelo Estado se mostra imprescindível. Para o Brasil, especialmente, por causa da nossa extrema desigualdade regional e de renda, além da vulnerabilidade de milhões de cidadãos, essas medidas são ainda mais cruciais.

O primeiro aspecto é que é preciso garantir recursos para ampliar a capacidade de atendimento da saúde. O avanço da pandemia nos exigirá um esforço extraordinário para reduzir a mortalidade.

Também é fundamental que o programa complementar de renda básica chegue rapidamente à parcela da nossa população mais exposta, como os em situação de rua, os trabalhadores informais e os desempregados num sentido amplo.

Há espaço para redução adicional da taxa básica de juros da economia (Selic). A reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) que ocorre hoje e amanhã deveria aproveitar a oportunidade e promover uma redução substancial.

Torna-se, ainda, fundamental ampliar o crédito e o financiamento para as empresas e famílias, mas em condições bem mais favoráveis que as atuais.

As políticas a serem adotadas implicam um custo da ordem de R$ 700 bilhões (10% do PIB) ao ano. Não há, obviamente, espaço para isso no Orçamento, e será preciso ampliar a emissão monetária e a dívida pública para fazer frente aos gastos. É um montante expressivo, mas não fazê-lo significaria um custo econômico e social muito mais alto, por causa do aprofundamento da depressão e seus efeitos, como a quebra de empresas, aumento do desemprego e colapso da renda e, também, da arrecadação tributária, gerando forte impacto fiscal negativo.

Enfrentar a crise exige romper paradigmas, o que, junto com uma boa gestão, será determinante para amenizar os seus efeitos. A oportunidade que se apresenta é aproveitar a desvalorização do real para criar programas de estímulo à reindustrialização/reconversão produtiva para suprir nossas necessidades e também criar mais oportunidades de emprego e renda.

05 de maio de 2020

A PANDEMIA NA AMÉRICA LATINA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 04) Crise traz oportunidades para a democracia, mas também para a demagogia.

O coronavírus atingiu a região mais desigual do mundo em plena turbulência política e social. Em 2019, a estagnação econômica, a corrupção, o desemprego e a precariedade dos serviços públicos já haviam deflagrado protestos violentos no Chile, Equador, Bolívia e Peru. Mas “a crise não pode ser uma desculpa para enfraquecer nossas democracias”, alerta o manifesto Imperativos éticos e econômicos da luta contra a Covid-19, redigido para a reunião de primavera do FMI por diversas autoridades, entre as quais quatro ex-presidentes – Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Lagos (Chile), Juan Manuel Santos (Colômbia) e Ernesto Zedillo Ponce de León (México). “Em vez disso, é preciso aproveitar a oportunidade para fortalecer a democracia na América Latina e mostrar que ela pode produzir os resultados prometidos aos cidadãos.”

O manifesto adverte que a redução da mortalidade e a canalização de recursos para os sistemas de saúde devem ser a principal prioridade. Já as recomendações econômicas seguem o receituário que vem sendo proposto pelas principais organizações internacionais para sustentar a renda familiar, empregos e empresas.

Isso implica o fornecimento de transferências monetárias para os vulneráveis; subsídios para as empresas a fim de sustentar empregos e evitar falências que levariam à crise do sistema bancário; garantias de crédito pelos governos; recursos fiscais extraordinários com ajustes orçamentários em áreas de baixa prioridade; e um compromisso dos Poderes constitucionais de que as medidas serão temporárias e acompanhadas de um esforço para corrigir o déficit fiscal crônico. Em tudo isso, adverte o documento, a cooperação e o apoio internacional serão indispensáveis. De um modo geral, essas medidas estão sendo tomadas, “mas as respostas políticas em nossa região não foram uniformes”, diz o manifesto.

Muitos líderes aproveitaram a oportunidade para congregar a população atemorizada e promover uma espécie de redenção. No Peru, o presidente Martín Vizcarra – cujos dois anos no poder foram marcados por atritos que culminaram com o fechamento do Congresso e novas eleições legislativas – foi o primeiro a impor o confinamento. Os peruanos apoiaram a medida, e, segundo o instituto Ipsos, sua aprovação subiu de 52% para 87%.

Assim como ele, outros presidentes da centro-direita pragmática reagiram rapidamente e foram respaldados pela população. Foi assim na Colômbia, e mesmo no Chile o combalido Sebastian Piñera viu sua popularidade subir de 10% para 21%. Este tem sido o padrão na América Latina. Na Argentina, a popularidade do esquerdista Alberto Fernández saltou para mais de 80% após a imposição da quarentena.

Tal como nos ataques de 11 de Setembro e a crise financeira de 2008, a pandemia é a hora do Executivo. Mas é também o momento ideal para populistas e autoritários. Como apontou o articulista do Estado e ex-ministro venezuelano Moisés Naím, no campo político o coronavírus deve exacerbar três tendências latino-americanas: o populismo, a polarização e as narrativas pós-verdade.

Embora não sejam nomeados no manifesto, é a Jair Bolsonaro e Manuel López Obrador, do México, que os signatários do manifesto dirigem a reprovação por “minimizar os riscos da pandemia, desinformar os cidadãos e desconsiderar as evidências científicas”, adotando “políticas populistas e divisivas no meio desta tragédia”.

A conduta de ambos mostra que o vírus do populismo não faz distinções entre esquerda e direita, mas também que brasileiros e mexicanos têm algum grau de imunidade: os dois presidentes estão entre os poucos líderes mundiais que sofreram quedas de popularidade na pandemia. Numa situação excepcional, as instituições republicanas em ambos os países não têm como não autorizar medidas excepcionais – mas nunca ditatoriais. E precisam garantir que elas não se tornarão permanentes. Além disso, têm o dever de provar, como diz o manifesto, que “confiança mútua, transparência e razão – não populismo ou demagogia – continuam sendo as melhores diretrizes nestes tempos de incerteza”.

04 de maio de 2020

A VIDA DEPOIS DA QUARENTENA!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 02) Em muitas situações, 90% é um resultado bom; no caso de uma economia, isso é péssimo, e a China mostra por quê. O país começou a suspender sua quarentena em fevereiro. As fábricas estão ocupadas e as ruas não estão mais vazias. O resultado é a economia a 90%. É melhor do que uma paralisação severa, mas está longe da normalidade. As partes ausentes incluem elementos substanciais do cotidiano. O uso do metrô e dos voos domésticos teve queda de um terço. O gasto do consumidor com supérfluos, como restaurantes, teve queda de 40%, e a ocupação dos hotéis é um terço da habitual. As pessoas se veem pressionadas pela dificuldade econômica e o medo de uma segunda onda da covid-19. O número de recuperações judiciais está aumentando e, de acordo com um corretor, o desemprego é três vezes maior que os números oficiais, na casa de 20%.

Se o mundo desenvolvido chegar a uma versão própria da economia a 90%, a vida será difícil – ao menos até que uma vacina ou tratamento sejam encontrados. Uma queda no PIB americano da ordem de 10% seria a maior desde a 2.ª Guerra Mundial. Quanto maior o sofrimento causado pela covid-19, mais profundos e duradouros devem ser seus efeitos econômicos, sociais e políticos.

O processo de relaxamento da quarentena em si afetará a escala do estrago econômico. O cálculo do custo-benefício aponta para uma reabertura que começa pelas escolas. Mas, por mais que seja racional a suspensão das restrições, haverá forças poderosas retardando a economia.

Para começar, o fim da quarentena é um processo. Mesmo quando o pior passar, o número de casos cai lentamente. Um mês depois de a Itália alcançar o pico das mortes – 900 por dia –, a mortalidade diária ainda está acima de 300. Com a presença do vírus, algumas medidas de distanciamento social são mantidas.

Outro motivo é a incerteza. Após a quarentena acabar, há muito a respeito da doença que ainda não saberemos, incluindo as chances de um segundo pico, a questão da imunidade entre curados e a perspectiva de uma vacina ou cura. Isso inibe aqueles que têm medo da doença. Mesmo enquanto alguns Estados relaxam as medidas de distanciamento social, um terço dos americanos diz que não se sentiria à vontade visitando um shopping center. Quando a Alemanha permitiu que as lojas menores abrissem na semana passada, os clientes não apareceram. Os dinamarqueses em quarentena reduziram em 80% os gastos com viagens e entretenimento. Os economistas dinamarqueses calculam que os habitantes da vizinha Suécia, onde não foi declarada quarentena, cortaram os gastos na mesma proporção.

Caixa baixo. Muitas empresas emergirão da quarentena com problemas de caixa e balanço patrimonial no limite, encontrando uma situação de baixa demanda. Em levantamento do Goldman Sachs, quase dois terços dos proprietários de pequenas empresas nos EUA disseram que seu dinheiro acabará em menos de três meses. Na Grã-Bretanha, o número de inquilinos comerciais que atrasaram o pagamento do aluguel teve alta de 30 pontos porcentuais. Essa semana o diretor da Boeing alertou que as viagens aéreas não devem retornar ao patamar de 2019 em menos de dois ou três anos. O investimento, que responde por aproximadamente um quarto do PIB, vai cair, porque é muito difícil determinar o preço do risco (um dos motivos para acreditar que a recuperação recente no mercado de ações tenha bases fracas).

As empresas em dificuldade vão aprofundar as preocupações financeiras das pessoas. Mais de um terço dos americanos disseram à Pew Research que, se perderem sua principal fonte de renda, sua poupança, o acesso ao crédito e a venda de bens poderia sustentá-los por até três meses. Como as indústrias mais atingidas em uma economia a 90% empregam muitas pessoas de salário baixo, o desemprego será alto e os trabalhos casuais, raros. Mesmo agora, nas cinco maiores economias da Europa, mais de 30 milhões de trabalhadores, um quinto da força de trabalho, estão incluídos em esquemas especiais nos quais o governo paga seus salários. Esses benefícios podem ser generosos, mas não se sabe quanto vão durar.

A economia também deve ficar com cicatrizes. As empresas que se adaptarem à covid-19 cortando custos e encontrando novas maneiras de trabalhar podem aumentar sua produtividade. Mas, se as pessoas se misturarem menos após a suspensão da quarentena ou se passarem meses no ócio, acabarão afastadas das redes profissionais e podem perder habilidades. Os desempregados americanos podem se ver diante de uma década perdida. Programas do governo devem salvar as empresas no curto prazo, o que é ótimo. Mas os programas voltados à manutenção dos empregos correm o risco de criar empresas zumbis que nem prosperam e nem precisam de recuperação judicial, atrasando a reciclagem do capital e da força de trabalho.

Recuperação lenta. Quanto mais o mundo tiver de suportar uma economia a 90%, menor a probabilidade de recuperação após a pandemia. Depois da gripe espanhola, um século atrás, e da Sars, há quase duas décadas, o desejo de todos era que a vida voltasse ao normal. Mas nenhuma dessas crises teve o impacto econômico tão grande quanto o da covid-19 e, em 1918, a expectativa dos cidadãos em relação ao governo modesta.

Uma recessão longa e profunda vai fomentar a raiva, pois a pandemia apontou para as sociedades ricas um espelho nada elogioso. Lares para idosos mal administrados, alta mortalidade entre minorias, as demandas adicionais que restringem as trabalhadoras e, especialmente nos EUA, um sistema de saúde inacessível para muitos, são pontos que levarão a pedidos de reforma. O mesmo pode ocorrer quando as pessoas perceberem que um fardo desproporcional foi jogado nas costas das pessoas comuns. Os americanos que ganham menos de US$ 20 mil por ano têm duas vezes mais probabilidade de terem perdido o emprego por causa da covid-19 do que uma pessoa que ganha mais de US$ 80 mil. Muito vai depender da velocidade da sua recontratação.

A demanda popular por mudanças pode radicalizar a política ainda mais rapidamente do que o observado após a crise financeira de 2007-09. Para aqueles que acreditam em mercados abertos e governo limitado, o desafio será garantir que essa energia seja canalizada para o tipo certo de mudança. Se a pandemia facilitar as reformas, teremos uma rara oportunidade de redefinir o contrato social para favorecer os excluídos e recuperar por meio dos impostos, da educação e da regulamentação parte do excedente daqueles que hoje gozam de privilégios inabaláveis. Talvez a pandemia fomente a solidariedade. Talvez o sucesso de países como Alemanha e Taiwan, que enfrentaram com relativo sucesso a doença graças à força de suas instituições, contraste com lugares onde populistas gastaram seu tempo fazendo pouco do saber técnico.

Mas tudo isso pode ser uma esperança vã. Nos próximos 18 meses, todos aqueles com seu discurso pronto argumentarão que a pandemia comprova seu ponto de vista. Após a crise de 2007-09, os políticos fracassaram em lidar com as queixas das pessoas, e a demanda por mudanças levou ao populismo. A economia a 90% ameaça criar sofrimento ainda maior. A raiva que decorrerá disso pode alimentar o protecionismo, a xenofobia e a interferência governamental em níveis que não vemos há décadas. Se esse é um resultado indesejável, é preciso propor algo melhor.