31 de agosto de 2022

IRÃ FECHA FRONTEIRA COM IRAQUE APÓS CONFRONTOS POR RENÚNCIA DE CLÉRIGO!

(O Estado de SP, 31) O Irã determinou ontem o fechamento de sua fronteira com o Iraque e pediu que seus cidadãos deixem o país vizinho enquanto durarem os violentos protestos que se seguiram ao anúncio de aposentadoria do clérigo xiita Moqtada al-sadr. O número de mortos nas manifestações aumentou para 22 – mais de 250 pessoas ficaram feridas.

Na segunda-feira, grupos ligados a Sadr invadiram a Zona Verde de Bagdá, área que concentra ministérios e missões estrangeiras, após o anúncio da aposentadoria do clérigo xiita e do fechamento dos escritórios de seu partido.

O Iraque vive uma crise política desde as eleições de outubro, vencidas pelo partido do clérigo xiita. Nenhuma força foi capaz de costurar uma maioria no Parlamento.

Dentro da Zona Verde, o grupo leal a Sadr entrou em confronto com grupos xiitas pró-irã, rivais na política nacional. Diante da invasão, as forças de segurança intervieram com violência. O Exército decretou um toque de recolher no país todo. CRISE POLÍTICA. A tensão foi reduzida ontem após Sadr pedir a seus apoiadores que se retirem da Zona Verde e anunciar uma greve de fome até que os confrontos terminem.

Antes conhecido por seu papel na resistência contra o regime de Saddam Hussein e pelos sermões inflamados, nos quais afirmava ser dever sagrado dos xiitas atacar as forças dos EUA, Sadr passou por uma transformação de imagem ao entrar na política iraquiana pós-ocupação.

30 de agosto de 2022

ATAQUE NAZISTA MATOU MAIS DE 600 PESSOAS E FEZ ARACAJU VIVER 2ª GUERRA!

(UOL, 27) Era uma noite agradável de sábado, dia 15 de agosto de 1942. Os moradores de Aracaju, como os de todas as cidades brasileiras, apenas ouviam de longe as notícias sobre a Segunda Guerra Mundial, que à época devastava Europa, Ásia e até a África. Mas essa realidade mudaria naquele mesmo dia.

Três navios brasileiros a menos de 10 km do continente foram atacados e afundados pelo submarino nazista U-507. A ação da temida Kriegsmarine (a Marinha de Adolf Hitler) deixou cerca de 600 mortos —o número exato nunca foi calculado.

Submergiram naquele fim de semana as embarcações Baependy, Araraquara e Aníbal Benévolo. O navio com mais mortos foi o Baependy, que tinha 323 pessoas e levava filhos de oficiais do 7º Grupo de Artilharia de Dorso —nenhum deles escapou com vida.

“Os afundamentos foram o estopim para a declaração de guerra do Brasil à Alemanha e à Itália, naquele que foi descrito como o nosso próprio ‘Pearl Harbor'”, contam em artigo os historiadores Andreza Maynard e Dilton Maynard, pesquisadores do Grupo de Estudos do Tempo Presente da UFS (Universidade Federal de Sergipe).

Pela primeira vez, os ataques em águas sergipanas trouxeram o conflito para o Brasil e foram repudiados por vários países do continente, como os EUA.

À época, o governo brasileiro havia emitido um comunicado oficial:

O inominável atentado contra indefesas unidades da Marinha de um país pacífico, cuja vida se desenrola à margem e distante da guerra, foi praticado com desconhecimento dos mais elementares princípios de direito e humanidade.”

A ação dos nazistas revoltou o presidente Getúlio Vargas, que declarou guerra contra o Eixo, formado por Alemanha, Itália e Japão. O resto da história é mais conhecida fora de Sergipe: o Brasil montou a FEB (Força Expedicionária Brasileira) e foi lutar na Itália contra tropas fascistas e nazistas.

Oitenta anos depois, Aracaju, única capital brasileira a viver a guerra de perto, relembra o episódio, que causou grande comoção, indignação e medo.

Nos dias seguintes ao ataque, cadáveres e destroços chegaram ao mar de Aracaju e em algumas praias da região sul de Sergipe.

Contam os jornais à época que corpos nus, mutilados e até comidos pelos peixes boiaram até a costa. O combustível dos navios destruídos também manchou as águas. As notícias levaram a população a exigir vingança por parte das autoridades.

“Para termos dimensão do ataque, até ali haviam morrido 135 pessoas nos afundamentos de 11 navios brasileiros vítimas de ataques durante a guerra, iniciada em setembro de 1939”, compara Dilton Maynard, que é professor de história contemporânea na UFS.

O episódio também matou mais brasileiros do que na guerra na Itália —dos 20.573 enviados, 467 morreram nos combates na Europa.

Àquela época do atentado, o Brasil já tinha deixado a neutralidade na guerra. Em janeiro de 1942, o Brasil havia sediado a 3ª Conferência de Chanceleres do continente americano, quando o governo declarou apoio aos aliados.

“A partir de então, navios brasileiros passaram a ser alvo de ataques de submarinos do Eixo em águas internacionais. Vargas registrou em seu diário pessoal o descontentamento com a decisão. Mas o Brasil só declarou guerra após os torpedeamentos”, ressalta Andreza Maynard, que é professora do Colégio Aplicação da UFS.

Entretanto, ela afirma que os ataques fizeram a população viver sob forte tensão e temer novos ataques —inclusive aéreos.

Com cerca de 60 mil habitantes à época, Aracaju não estava preparada para uma tragédia daquela magnitude. Os trabalhos de resgate de corpos e destroços levaram dias e foram precários. “A área não era de fácil acesso. O aparecimento de corpos e destroços em praias do litoral durou dias. Tudo teve que ser improvisado”, conta Dilton Maynard.

Na realização das autópsias, é possível ver entre as fotos muitos corpos jogados ao chão. “Já os sobreviventes que chegaram a Aracaju foram espalhados pelos hotéis da cidade, residências e mesmo as instalações do quartel do Exército na cidade também foram utilizadas”, relata.

Aracaju também foi invadida por boatos. A polícia passou a investigar a presença de apoiadores ou mesmo infiltrados no Eixo na cidade. A população, revoltada com os ataques, também pressionava por respostas das autoridades.

Os relatórios policiais apontaram para um pequeno grupo identificado com possíveis atividades oposicionistas ao apoio aos aliados.

Eram dois blocos: o primeiro formado basicamente por brasileiros do movimento integralista (conhecido também como o fascismo brasileiro) e um segundo de estrangeiros que moravam em Aracaju e cidades próximas.

Entre os estrangeiros, dois chamaram a atenção da polícia: Nicola Mandarino (italiano) e Herbert Merby (alemão), sendo que o primeiro estava com armamento e explosivos em sua propriedade.

“Não bastasse o retrato de Hitler, o italiano teve dificuldades para explicar a origem e a finalidade do material apreendido: 456 cartuchos de guerra ogivais, 1.402 balas de rifles, 75 cartuchos de guerra pontiagudos, além de 19 bananas de dinamite”, detalham os historiadores em artigo.

Do episódio, Aracaju tem lembranças até hoje. A exposição “Aracaju: A Capital que Viu a Guerra” vai até outubro no Centro Cultural de Aracaju e conta como a cidade viveu aqueles momentos.

“Ficou na nossa história um fato tão chocante que ocorreu dentro do nosso território e com tantas embarcações. Lembre que Pearl Harbor não fica na plataforma continental dos EUA, mas a mais de 3.000 quilômetros da costa dos EUA. No nosso caso, os ataques ocorreram próximo à costa. O submarino estava a poucas milhas do nosso litoral”, diz Dilton Maynard.

29 de agosto de 2022

CHILE ESQUENTA CLIMA PARA PLEBISCITO DE NOVA CONSTITUIÇÃO COM MANIFESTAÇÕES!

(Sylvia Colombo – Folha de SP, 27) A uma semana da votação em que os chilenos decidirão se aprovam ou rejeitam a nova Constituição, as ruas das principais cidades do país tornaram-se palco de manifestações. São esperados 15 milhões de votos no plebiscito, no qual a participação é obrigatória.

Com a população dividida —porém inclinada a votar contra a proposta, segundo as pesquisas mais recentes—, o que se vê nos atos são grupos focados em discutir questões pontuais do novo texto. Nos últimos dias, por exemplo, milhares foram às ruas de Santiago pedindo o “sim” para a Carta pela garantia de acesso à habitação.

Foram realizadas marchas de mulheres defendendo os artigos da nova Constituição que preveem acesso ao aborto e a paridade de gênero na administração pública. Estudantes e indígenas se organizaram em passeatas em apoio à cláusula que define o Chile como um Estado plurinacional e intercultural e reconhece a soberania das nações indígenas —os povos nativos correspondem a 12% da população, mas nem sequer são mencionados na Constituição vigente, herdada da ditadura de Augusto Pinochet.

Grupos de ambientalistas se manifestaram andando de bicicleta, e muitos portavam bandeiras defendendo a aprovação do texto, com reivindicações de pautas ecológicas e símbolos dos mapuches, o grupo indígena mais numeroso do país. A redação da nova Carta preconiza que “a natureza tem direitos” e que “o Estado e a sociedade têm o dever de protegê-los e respeitá-los”.

Os que afirmam rejeitar a proposta também fazem campanha nas ruas do Chile. Em Puente Alto, um dos bairros mais pobres de Santiago, um grupo de mulheres carregou faixas em que se liam frases contra o texto.

“Nossa vontade não está expressa na Carta”, afirma Marcela Sepúlveda, líder da Corporação de Mulheres e das Tradições Chilenas. “Não aprovamos as novas leis de gênero e queremos deixar isso claro, queremos nossas tradições respeitadas.”

O texto que pode se tornar a nova Constituição também encontra forte oposição no sul do país, onde há conflitos violentos entre grupos mapuches e proprietários de terra. As marchas na região marcam posição contra artigos relacionados à soberania indígena, acesso à educação nos idiomas originários e a Justiça indígena, que permitiria a grupos nativos manter sistemas jurídicos ligados a tradição ancestral de cada tribo —modelo semelhante ao adotado na Bolívia, por exemplo.

Para a cientista política Claudia Heiss, há um descompasso entre o “sim” e o “não” no que tange à maneira como essas pautas são apresentadas à opinião pública.

“A campanha pela aprovação carece de verbas, há poucas doações e pouca propaganda pública, mas isso está sendo compensado pelas manifestações nas ruas, pela ação de organizações civis e estudantis, que estão promovendo eventos culturais e de conscientização.” Já o movimento pela rejeição, segundo Heiss, conta com forte apelo de propaganda nas ruas e nos meios de comunicação.

Esse pode ser um dos fatores que explicam a mudança nas intenções de voto nos últimos meses. Em janeiro, 56% dos chilenos diziam que votariam a favor da nova Carta, ante 33% que votariam contra, de acordo com pesquisa do instituto Cadem. A diferença foi diminuindo e, desde abril, o cenário se inverteu, com o “não” em vantagem sobre o “sim” —o último levantamento permitido pela legislação eleitoral aponta 46% contra, 37% a favor e 17% indecisos.

Há nuances, porém, de ambos os lados. Entre os eleitores que querem enterrar de vez a Constituição da era Pinochet, há grupos defendendo que, depois da promulgação do novo texto, alguns pontos sejam reformados. Movimento semelhante se dá também no outro campo: parte dos que devem votar pela rejeição não se opõe a todas as cláusulas, de modo que há uma intersecção entre os dois extremos.

“A rejeição deve ganhar, não para que se enterre todo o esforço, mas para que voltem a ser debatidos temas que foram colocados no texto às pressas, quase como um rascunho”, diz Carol Brown, legisladora que pertence ao partido de direita UDI.

O governo do esquerdista Gabriel Boric, que se posiciona a favor da proposta, foi forçado a pensar em um plano B diante da potencial rejeição. Uma vez que a Constituição atualmente em vigor já foi reprovada no plebiscito de 2020, o mandatário afirma que há espaço para negociar uma nova redação do texto —movimento que já recebeu o aval dos principais partidos da direita chilena.

Quem vem explicando como será o plano é o secretário da Presidência, Giorgio Jackson. “Teremos de chegar a um consenso, por meio do Congresso, para estabelecer o mecanismo para a renegociação dos artigos que causam rejeição, além de um novo sistema de aprovação. Haverá ajustes necessários que devem ser debatidos e aprovados pelas vias institucionais”, afirmou.

25 de agosto de 2022

MODELO PERONISTA SE ESGOTOU’, DIZ HISTORIADOR ARGENTINO!

(O Estado de S. Paulo, 25) O historiador e jornalista argentino Carlos Pagni, comentarista político do diário La Nación e do Canal 13, é um crítico do peronismo e do modelo implementado por Néstor Kirchner (2003-2007), morto em 2010, e pela mulher dele Cristina (2007-2015), concentrado na ampliação de subsídios e de programas sociais sem lastro orçamentário.

Pagni vê na tentativa de recriar os tempos de bonança vividos durante o governo do caudilho Juan Domingo Perón (1946-1955), no pós-guerra, parte da explicação para as crises inflacionárias cíclicas da Argentina e para a perda de relevância econômica do país na América Latina.

Nesta entrevista, que faz parte de uma série de reportagens especiais lançada pelo Estadão sobre a ascensão da esquerda na região, feita num café no bairro de Retiro, Pagni também analisa a provável derrota dos peronistas nas eleições de 2023. “O modelo peronista se esgotou”, afirma.

Qual o papel do peronismo nas crises cíclicas vividas pela Argentina?

Simplificando, eu citaria a obra de Tulio Halperin, um grande historiador argentino. A tese dele é que, nos anos 1940, Perón produziu uma espécie de revolução social, beneficiado pelas condições excepcionais do pós-guerra, quando a Argentina era credora da Inglaterra. Perón percebeu que esse modelo era insustentável, mas em 1955 “fizeram o favor” de tirá-lo do poder. Aí, essa experiência peronista, que gerou uma bonança que marcou a história argentina, virou um mito possível.

De que forma o kirchnerismo se encaixa nisso?

Todos os governos posteriores tentaram recriar esse mito. Quando chega o ciclo das commodities, entre 2003 e 2013, e o crescimento da China inunda a América Latina de dólares, Néstor e Cristina (hoje vice-presidente) dizem: “É a nossa chance de reconstruir aquele mundo do Perón”. Essa ilusão é a essência do kirchnerismo em matéria econômica. Só que isso é insustentável. Halperin tinha razão. O modelo da Argentina peronista se esgotou.

Até que ponto é possível dizer que essas crises se devem à questão cambial?

O dólar na Argentina teria de ser mais caro do que o valor estabelecido pelos governos peronistas. Mas, pela forma como a sociedade argentina se acostumou a viver, uma grande desvalorização do peso levaria qualquer um à derrota eleitoral.

Que estilo de vida é esse?

Aqui na Argentina, todos querem viajar para Miami, ter um carro importado e viver acima das possibilidades. É para satisfazer as necessidades de consumo da sociedade argentina, sobretudo nos setores médios, que os governos sobrevalorizam o peso. É esse atraso cambial que gera crises cíclicas. Desvalorização. Pobreza. E começa tudo de novo. É isto que está acontecendo hoje no governo de Alberto Fernández.

O que difere Fernández de Gustavo Petro, na Colômbia, e Gabriel Boric, do Chile?

A diferença é que é impossível hoje na Argentina chegar ao equilíbrio fiscal subindo impostos, algo que Boric e Petro até podem conseguir no Chile e na Colômbia. O governo argentino precisa cortar gastos com urgência. É essa a discussão que o governo Fernández tem pavor de fazer. Isso acaba criando uma paralisia, porque Cristina não aceita fazer isso de jeito nenhum. Ela não entendeu que as condições da economia mudaram.

Com uma inflação batendo quase 90% ao ano, qual seu prognóstico para as eleições de 2023?

Bom, a coalizão Juntos por El Cambio (opositora) é favorita. Mas não sei se (o ex-presidente) Mauricio Macri (2015-2019) tem chance. Ele tem um problema de rejeição muito alto. O nome mais competitivo da centro-direita é o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta. A ex-ministra Patricia Bullrich também está bem cotada. A briga dentro da coalizão vai ser grande.

Por que Macri não conseguiu deixar o peronismo para trás?

Se você olhar a trajetória econômica do governo dele, o ajuste fiscal que ele precisava fazer era quase impossível de ser feito. Macri precisaria de um capital político enorme. Só que ele não tinha isso. Um ajuste fiscal numa recessão é duro, porque agrava o problema.

Isso prejudicou também outros governos de direita e centro-direita?

Sim. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Paulo Guedes, no Brasil. Os ministros ortodoxos da “direita neoliberal” são excelentes num ciclo expansivo. O (ex-presidente) Lula está pensando que vai encontrar o mesmo mundo feliz de quando era presidente, mas terá uma dura surpresa se for eleito.

24 de agosto de 2022

SOBRE DITADORES E SUPERÁVITS COMERCIAIS!

(Paul Krugman – The New York Times/O Estado de S. Paulo, 24) Segundo nova pesquisa NBC News, os americanos agora consideram “ameaças à democracia” o problema mais importante que o país enfrenta, o que é tanto perturbador quanto um sinal bem-vindo de que as pessoas andam mais atentas. Também vale notar que não se trata apenas de um problema dos EUA. A democracia está se erodindo em todo o mundo – segundo a Economist Intelligence Unit, existem hoje 59 regimes totalmente autoritários por aí, abrigando 37% da população mundial.

Mas, desses 59 regimes, apenas 2 – China e Rússia – são poderosos o suficiente para representar desafios maiores para a ordem internacional. As duas nações são, evidentemente, muito diferentes. A China é uma superpotência autêntica, cuja economia superou, segundo algumas medidas, a dos

EUA. A Rússia é uma potência menor em termos econômicos, e os eventos ocorridos desde 24 de fevereiro sugerem que suas forças militares são menos poderosas do que a maioria dos observadores imaginava. Mas os russos possuem armas nucleares.

EXCEDENTES. Uma coisa que China e Rússia têm em comum é que administram enormes superávits comerciais. Esses excedentes são sinais de força? São provas de que autocracias funcionam? Não, em ambos os casos, são sinais de fraqueza. E a atual situação oferece um corretivo útil à noção comum – defendida, entre outros, por Donald Trump – de que um país que vende mais do que compra é “vencedor”.

Comecemos com a Rússia, cujo excedente comercial inflou desde que Vladimir Putin invadiu a Ucrânia. O que será que aconteceu? A resposta é que isso resulta, em grande medida, das sanções econômicas do Ocidente, que têm sido surpreendentemente eficazes – apesar de que não da maneira que muitos esperaram.

Quando a invasão começou, houve chamados generalizados

Há um problema peculiar das ditaduras – não se pode dizer ao líder que ele está errado

por embargos às exportações russas de petróleo e gás natural. Mas a Rússia conseguiu facilmente manter suas exportações de petróleo – o país está vendendo o insumo com desconto, mas os preços globais elevados resultam em bastante dinheiro entrando.

E, ainda que tenha havido uma acentuada queda nas exportações russas de gás natural para a Europa, isso é reflexo dos esforços do regime de Putin para colocar pressão sobre o Ocidente, não o contrário.

As sanções, por sua vez, minaram a capacidade de a Rússia importar, especialmente sua capacidade de comprar produtos cruciais para a indústria.

Portanto, o superávit comercial da Rússia é, na realidade, má notícia para Putin, um sinal de que seu país enfrenta problemas para conseguir usar o dinheiro que tem para comprar as mercadorias de que necessita para manter seu esforço de guerra.

O problema da China é diferente: seu superávit comercial é resultado de problemas internos antigos que podem, finalmente, estar tomando a frente. Observadores notam há muito que uma parte pequena demais da receita nacional chega ao público, tanto que o gasto da população em consumo tem permanecido baixo, apesar do rápido crescimento econômico.

Em vez disso, a nação tem mantido aproximadamente o pleno-emprego canalizando crédito barato para um investimento cada vez mais improdutivo, principalmente um mercado imobiliário habitacional inflado, sustentado pela sempre crescente dívida privada.

IMPORTAÇÕES. Neste momento, o mercado imobiliário habitacional chinês parece estar ruindo, e a demanda dos consumidores parece estar despencando. Esse fenômeno diminui o fluxo de importações – o que faz o superávit comercial aumentar. Repito, um excedente pode ser sinal de alguma fraqueza, em vez de força.

Outros dois pontos em relação à China: primeiro, sua economia também está sofrendo com a recusa do governo em revisar sua fracassada estratégia em relação à covid, dependendo de vacinas produzidas domesticamente, relativamente pouco eficazes, e impondo lockdowns draconianos para conter a pandemia. Segundo, sob as atuais condições, a fraca demanda chinesa é um trunfo para o restante do mundo. INFLAÇÃO. Dez anos atrás, a economia mundial sofria de uma demanda inadequada, e os superávits da China pioraram o problema ao sugar o poder de compra do restante do planeta. Hoje, porém, a economia mundial sofre de uma oferta inadequada, o que ocasionou inflação em muitos países.

Nesse contexto, a fraqueza chinesa é, na realidade, boa para todos os demais: a demanda chinesa em queda está colocando um limite sobre os preços do petróleo e de outras commodities, reduzindo a pressão inflacionária global.

Então o que podemos aprender com ditadores e superávits comerciais? Como afirmei, estamos diante de uma prova de que exportar mais do que importar não significa que você está vencendo – de maneiras distintas, os superávits de Rússia e China representam fracassos.

Em nível mais amplo, testemunhamos o problema peculiar das ditaduras, nas quais ninguém pode dizer ao líder que ele está errado. Putin parece ter invadido a Ucrânia porque todos estavam assustados demais para alertá-lo a respeito das limitações do poderio militar russo.

E a resposta da China contra a covid passou de modelo exemplar a alerta, porque ninguém ousa dizer a Xi Jinping que as políticas com a sua assinatura não estão funcionando. Portanto, a autocracia pode estar em marcha, mas não porque funciona melhor que a democracia.

23 de agosto de 2022

BORIC ENFRENTA ‘CHOQUE DE REALIDADE’ APÓS CINCO MESES DE PODER NO CHILE!

(Luiz Raatz – O Estado de S. Paulo, 21) Ele não é apenas um dos grandes apoiadores da nova Carta, considerada radical pela maioria dos chilenos, segundo as sondagens de opinião, mas um defensor inflamado de seus pontos mais polêmicos, que são caros à sua base de apoio, como a transformação do Chile num Estado plurinacional, formado por diversas etnias, o pluralismo jurídico, que prevê um sistema exclusivo para cada etnia, e a extinção do Senado.

Por sua identificação com as propostas de mudança nos pilares da república chilena, Boric personaliza, de certa forma, o projeto que será apresentado à apreciação popular, finalizado em julho, depois de um ano de debates na Assembleia Constituinte. A rejeição da nova Constituição, portanto, deverá representar para o novo presidente do Chile uma derrota pessoal, de alto custo político.

“É inevitável que a vitória do ‘não’ seja vista como uma derrota para ele”, diz Claudia Heiss, doutora em ciência política e professora da Faculdade de Governo da Universidad de Chile. “O Boric e os Constituintes superestimaram o apoio que teriam para promover as reformas que defendem. Eles receberam apoio da população para certo tipo de reforma, mas levaram isso muito mais longe do que as pessoas queriam”, afirma Nicolás Saldías, analista para a América Latina e o Caribe da Economist Intelligence Unit (EIU), ligada ao grupo que publica a revista britânica The Economist.

Diante da perspectiva de rejeição da nova Constituição, Boric chegou a dizer que, se isso se confirmasse, haveria um novo processo constituinte. Mas, com a reação desencadeada contra a proposta, ele teve de recuar e buscar uma saída negociada para a questão.

ACORDO. Na semana passada, numa tentativa de viabilizar a aprovação do projeto no referendo, o governo fechou um acordo com uma parte dos parlamentares se comprometendo a alterar os pontos mais polêmicos do texto, que são justamente aqueles defendidos com mais entusiasmo por Boric. Só que, como a possibilidade de vitória do “sim” parece remota no momento, o acordo provavelmente nem será colocado em prática.

Esta reportagem, dedicada à análise das dificuldades que Boric terá para governar e cumprir as promessas de campanha, faz parte de uma série lançada pelo Estadão sobre o crescimento da esquerda na América Latina, que aborda casos de diferentes países em que o grupo assumiu o poder nos últimos anos e discute os riscos que isso poderá representar para o futuro.

Chefe de Estado mais jovem da América Latina, Boric, de 36 anos, representa uma face “pós-moderna” da esquerda, nas palavras do escritor Alvaro Vargas Llosa, coautor dos livros Manual do Perfeito Idiota Latino-americano e A volta do idiota, nos quais ironiza a atuação e a mentalidade do grupo.

POLÍTICAS IDENTITÁRIAS.

Além de apoiar as ideias tradicionais da esquerda, como maior intervenção do Estado na economia, aumento dos gastos públicos, elevação de impostos e ampliação de programas sociais, Boric incorporou a defesa do meio ambiente e de políticas identitárias em sua agenda política.

Com isso, obteve o apoio da parcela dos chamados millenials que se identifica ideologicamente com a esquerda e esteve à frente dos violentos protestos realizados em 2019 no Chile. Até agora, ele tem adotado também uma postura crítica em relação às ditaduras de Cuba, Venezuela e Nicarágua, o que reforça, aparentemente, as suas diferenças com a maioria dos líderes da esquerda na América Latina.

Boric, porém, está enfrentando um choque de realidade no governo. Sua popularidade está caindo rapidamente, no mesmo ritmo ou até de forma mais acelerada do que a sua ascensão no cenário político chileno. Eleito com 56% dos votos válidos, com apoio do centro, que se distanciou do candidato da direita José Antonio Kast, especialmente depois de ele defender a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), Boric se tornou em tempo recorde um dos governantes com a menor taxa de aprovação na América Latina.

Segundo um levantamento da consultoria Cadem divulgado há uma semana, apenas 38% dos chilenos aprovam a sua atuação – uma queda de quase 20 pontos em relação ao resultado que ele obteve nas urnas em dezembro do ano passado.

Embora seu apoio à nova Constituição explique, em boa medida, a baixa aprovação popular, seus problemas vão muito além disso. Sem maioria no Congresso, onde os partidos tradicionais dos dois lados do espectro político ainda detêm grande influência, Boric terá, provavelmente, de ceder em muitas de suas propostas, como a elevação de impostos e a taxação das grandes fortunas, para conseguir governar. “Ele precisa dos votos do centro e da direita moderada para fazer alguma reforma”, avalia Claudia Heiss.

EFEITOS COLATERAIS. Na Câmara, de um total de 155 deputados, Boric tem 44, enquanto os partidos tradicionais de centro-direita e a direita têm 53. A centro-esquerda, que nem sempre vota com o governo, conta com 37 assentos, e as demais cadeiras estão nas mãos de partidos nanicos, que podem ser o fiel da balança nas votações mais importantes. No Senado, a oposição de direita tem metade das vagas.

“O Boric tem um problema sério no Congresso. Lá, as forças políticas são muito distintas do que o seu governo representa”, observa Claudia. “Ele não tem votos nem para alterar dispositivos constitucionais no varejo nem para aprovar leis que impliquem em mudanças mais radicais.”

Mesmo que Boric consiga apoio para transformar em realidade ao menos parte de seus planos, as mudanças deverão produzir efeitos colaterais que acabarão por complicar ainda mais o quadro atual. “Quando você coloca propostas de aumento de gastos públicos e elevação agressiva de tributos, a desconfiança do setor privado cresce, exacerbando as dificuldades políticas”, afirma o cientista político Christopher Garman, diretor-executivo para as Américas da Eurasia, uma consultoria internacional especializada em avaliação de riscos.

Numa perspectiva histórica, as propostas de Boric para a economia colocam em xeque o bem-sucedido modelo econômico chileno, que transformou o país numa ilha de prosperidade na América Latina.

PODER DE COMPRA. Nos últimos 50 anos, desde a queda do governo socialista de Salvador Allende (1970-1973), o Chile cresceu bem acima da média da América do Sul (veja o quadro). A renda per capita, ajustada pela paridade do poder de compra, chegou a US$ 29,1 mil em 2021, a mais alta da região e quase o dobro da média da América Latina. O Chile também tem, hoje, o maior grau de liberdade econômica entre os países lati

Mãos atadas Sem maioria no Congresso, Boric terá de ceder em muitas propostas de campanha para governar

no-americanos, segundo o ranking elaborado pela Heritage Foundation, dos Estados Unidos.

“O Chile alcançou um grande progresso econômico, em termos de PIB (Produto Interno Bruto) per capita e também de outros indicadores, nas últimas décadas”, afirma o historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann, autor do livro O capitalismo não é o problema, é a solução, lançado recentemente no Brasil. “Mas as pessoas votaram num candidato socialista. Elas esqueceram a razão que levou o país a ser bem-sucedido.”

As propostas de aumento de gastos públicos e de impostos, defendidas pelo novo presidente chileno, chocam-se com as medidas necessárias para combater a alta da inflação, que atingiu 13,1% nos últimos 12 meses, a maior taxa em 28 anos. Apesar de não ter criado o problema, decorrente da desorganização das cadeias produtivas e da alta dos combustíveis e dos alimentos causadas pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, Boric terá de lidar com ele.

Para conter a escalada inflacionária, que também tem uma influência significativa em seus índices de aprovação popular, o Banco Central chileno terá provavelmente de subir mais os juros, que já estão em 9% ao ano, a taxa mais alta em duas décadas, como está ocorrendo no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países. Isso vai encarecer o crédito, aumentar as despesas do governo com a rolagem da dívida pública e desacelerar ainda mais a economia, que deverá crescer apenas 1,5% em 2022, conforme as previsões do FMI.

CRIMINALIDADE. Neste cenário já tão complicado, aumentar impostos para engordar o caixa do governo, como defende Boric, só vai potencializar o efeito perverso da alta dos juros, sufocando ainda mais o setor privado e os cidadãos. Além disso, se o Banco Central aumentar os juros para esfriar a economia de um lado e o governo abrir os cofres para cumprir as promessas de campanha de outro, uma coisa acabará anulando a outra e a inflação continuará alta, com prejuízos maiores para os mais vulneráveis.

Como se tudo isso não bastasse, Boric ainda terá de lidar com o aumento considerável da criminalidade no país. Embora o Chile ainda tenha índices bem menores do que outros países latino-americanos neste quesito, a segurança pública se tornou, de acordo com uma pesquisa do Instituto Ipsos, a principal preocupação da população nos últimos anos. As próprias autoridades dizem que o país vive hoje sua pior crise na área desde o retorno à democracia, em 1990.

Isso significa que Boric terá de dar uma atenção especial a uma questão que, muitas vezes, é deixada de lado pela esquerda, sob os argumentos de que se trata de uma questão social que tem de ser resolvida com a melhoria das condições de vida dos mais pobres e de que a polícia atua de forma seletiva, discriminando certos estratos da sociedade.

No entanto, para melhorar a percepção de segurança por parte dos cidadãos, é provável que Boric tenha de aumentar os investimentos em equipamentos e pessoal, em detrimento de outros áreas. Para isso, como afirma Alvaro Vargas Llosa, terá de deixar de lado suas convicções ideológicas e lidar com o problema de forma pragmática. “Isso pode acontecer”, diz Vargas Llosa. “Nós já vimos pessoas da esquerda traírem suas ideias”, diz. Agora, só o tempo dirá se Boric seguirá por este caminho.

22 de agosto de 2022

STALINGRADO, VERSÕES DE UMA BATALHA!

(Demétrio Magnoli, sociólogo, doutor em geografia humana pela USP – Folha de SP, 19) No 23 de agosto de 1942, 80 anos atrás, começou a Batalha de Stalingrado, ponto de inflexão da guerra mundial no teatro europeu. Desde 2013, Volgogrado reverte a seu antigo nome nos aniversários da batalha crucial. O culto a Stalingrado descortina a evolução do nacionalismo russo, de Stálin a Putin.

A primeira versão sobre a batalha fixou-se em 1943, na Conferência de Teerã, quando Churchill passou às mãos de Stálin a Espada de Stalingrado, oferenda do rei George 6º à cidade heroica. Originalmente, a URSS traduziu a vitória como marco da unidade das potências aliadas contra o nazifascismo.

Durou pouco. Desde 1947, Stálin ergueu uma segunda versão, adaptada à nova rivalidade da Guerra Fria. Os antigos aliados foram reinterpretados como herdeiros do nazifascismo e a batalha transformou-se na certidão de batismo da Grande Rússia soviética. Duas décadas depois, numa cidade já renomeada, Kruschev inaugurou A Pátria Convoca, a estátua de 85 metros de altura, no estilo do realismo socialista, de uma mulher guerreira empunhando uma espada.

Putin, que qualificou a implosão da URSS como “a maior catástrofe geopolítica do século 20”, conserva a versão grão-russa sobre a batalha, mas a recobre com uma tintura especial. A sua Grande Rússia substitui as referências comunistas por uma pasta ideológica inspirada no fascismo. No salto, ocupa lugar destacado o filósofo político cristão Ivan Illyn (1883-1954).

Illyn foi expulso da Rússia soviética em 1922. No exílio, em Berlim e depois na Suíça, conectou-se aos emigrados russos contrarrevolucionários e abraçou o pensamento fascista. Em 1950, escreveu um ensaio que viria a ser repetidamente citado por Putin. Nele, identificava um “experimento hostil”, urdido pelas potências ocidentais, de fragmentação da Rússia num “gigantesco Bálcãs”, que seria “enganosamente exibido como supremo triunfo da ‘liberdade’ e da ‘democracia’…”.

“A propaganda alemã investe dinheiro e esforço singulares no separatismo ucraniano”, alertava Illyn. Em 2005, ano do primeiro levante popular ucraniano contra um governo pró-russo, Putin obteve a transferência dos restos mortais do pensador fascista para a Rússia e, quatro anos mais tarde, depositou flores em sua tumba, no monastério Donskoy. Em 2013, o Kremlin indicou o livro “Nossas Tarefas”, no qual encontra-se o ensaio, como leitura fundamental para os altos funcionários russos.

Segundo Illyn, Hitler cometera o equívoco fatal do ateísmo. As impurezas da modernidade –isto é, o pluralismo e o advento da sociedade civil– teriam exilado Deus e precisariam ser purgadas pela restauração do mundo antigo. A missão redentora caberia a uma nação justa (a Rússia) disposta a seguir um líder descomunal engajado na criação de uma nova totalidade política. Putin tem bons motivos para recomendar a seus cortesãos o estudo da obra de Illyn.

Otan? O pretexto inicial para a invasão da Ucrânia sobrevive apenas no discurso do “anti-imperialismo” ocidental. As vozes ligadas ao Kremlin empregam a linguagem exterminista típica do fascismo. Margarita Simonyan, chefe da rede estatal RT, explica que “a Ucrânia não pode continuar a existir. O ex-presidente Dmitri Medvedev refere-se aos ucranianos como “bastardos e degenerados”. Vladimir Soloviov, âncora de TV premiado por Putin, prefere a palavra “vermes”: “Quando um veterinário desparasita um gato, para ele é uma operação especial, para os vermes é uma guerra e para o gato é uma limpeza”.

A versão antiocidental da Batalha de Stalingrado contada por Stálin celebrava uma Grande Rússia destinada pela história a ser a URSS. A retificação emanada de Putin glorifica uma Grande Rússia eterna: a espada purificadora que Deus cravará num mundo pecaminoso. A adoração devotada pela extrema direita a Putin é normal. Já a simpatia da esquerda solicita investigação.

18 de agosto de 2022

A ESQUERDA ESTÁ DE MÃOS ATADAS NA AMÉRICA LATINA’!

(José Fucs – O Estado de S. Paulo, 18) O cientista político Christopher Garman, não “compra” a ideia de que o avanço da esquerda na América Latina se deve a uma guinada ideológica dos eleitores, como dizem por aí políticos e militantes do grupo. Segundo ele, o que está levando a esquerda a vitórias em série na região é “um profundo sentimento desencanto com o sistema e de revolta contra o status quo”. Nesta entrevista, que faz parte da série sobre o avanço das esquerdas na América Latina lançada pelo Estadão, ele afirma também que, no atual cenário regional e global, os governantes do grupo na região “estão de mãos atadas” e terão dificuldade para cumprir as promessas de campanha.

Como o sr. analisa a atual onda de governos de esquerda na América Latina? O que está levando a esta guinada para a esquerda na região? Isto não está acontecendo por causa de uma predisposição em favor de plataformas de esquerda. É um movimento de revolta contra o status quo. Quando a gente olha as pesquisas, a América Latina aparece no topo do ranking global de desencanto. A geologia da opinião pública está podre. Estamos vivendo um ambiente de insatisfação muito grande com a qualidade dos serviços públicos, com falta de confiança no sistema de forma mais ampla. A confiança nas lideranças políticas, nos partidos, no Judiciário, na mídia, está num nível muito baixo.

Na sua visão, a que se deve este alto grau de desencanto? É fruto de uma expansão brutal da classe média no período de alta dos preços das commodities, do início dos anos 2000 até 2011, 2012. Milhões de famílias saíram da miséria. Isso levou a uma mudança nas demandas eleitorais. A preocupação passou a ser mais segurança, saúde, educação. O eleitor associou a corrupção à má qualidade dos serviços públicos. Antes da pandemia, a corrupção havia se tornado o primeiro ou o segundo tema mais relevante no Brasil, no Chile, na Colômbia, no México, no Peru, e houve esse descrédito total no sistema. No fundo, o que a gente está vendo é uma combinação deste choque de falta de confiança com novas demandas de uma classe média emergente que são difíceis de entregar num contexto de crescimento econômico mais baixo.

Como a pandemia se encaixa neste cenário?

A pandemia pegou a América Latina, em termos epidemiológicos, com mais força do que outras regiões. Então, houve uma queda mais acentuada do PIB (Produto Interno Bruto), a desigualdade aumentou e a capacidade de os governos atenderem a essas demandas caiu. Isso exacerbou esse mal estar. Para completar, veio o choque de inflação global que reforçou a queda de renda das famílias mais pobres. Este é o caldeirão de revolta que está elegendo a esquerda na região. Como mais governos de direita e de centro estavam no poder, eles estão sentindo mais. A esquerda estava mais bem posicionada para navegar nesta onda.

Em que medida esta nova onda de esquerda é diferente da que se propagou pela América Latina do início dos anos 2000 até meados da década passada?

O quadro atual é muito diferente. A primeira onda aconteceu em meio ao boom das commodities e a um superciclo econômico e político que proporcionou uma abundância de recursos e levou a taxas de aprovação muito altas dos governantes. Agora, este ambiente de desencanto vai impactar a esquerda politicamente. Os governantes vão ter uma lua de mel curta e uma taxa de aprovação estruturalmente baixa. A capacidade de os governantes se reelegerem também deve diminuir estruturalmente.

Agora, hoje também está ocorrendo uma alta das commodities. Isto também não pode ter um impacto positivo para os atuais governantes latino-americanos? Sim, isto ajuda o governo do lado da arrecadação. Mas, em termos de trocas, não está ajudando muito, porque o valor das importações, dos insumos, também subiu muito. Os preços das commodities estão elevados, mas a renda caiu no Brasil e em outros países. A sensação de bem estar não está acompanhando este ciclo. Os ganhos políticos, portanto, não são os mesmos que os da primeira onda. Além disso, há um cenário de recessão nos Estados Unidos, na Europa, e de desaceleração na China. Isso deverá conter esta alta das commodities. Todos os países da América Latina aumentaram os juros para tentar controlar a inflação. A conta vai chegar nos próximos 12 meses.

Que efeito isso deve ter? Os mesmos fatores que estão levando líderes da esquerda a ganhar as eleições vão dificultar seus governos e colocar restrições no que podem entregar e fazer. Por isso, o potencial de estrago da esquerda hoje está mais limitado, porque eles não vão ter capacidade de se reeleger, de encaminhar medidas mais ambiciosas, até porque muitas vezes não têm apoio parlamentar e terão de compor com o centro. Então, os governos de esquerda estão com as mãos atadas.

12 de agosto de 2022

OS DEMOCRATAS SALVARAM A CIVILIZAÇÃO?!

(Paul Krugman – The New York Times/O Estado de S. Paulo, 12) Eles realmente conseguiram. A Lei de Redução da Inflação – que é principalmente um projeto legislativo destinado a combater as mudanças climáticas, com um aspecto que favorece uma reforma na saúde – foi aprovada pelo Senado, no domingo; e, segundo todos os cálculos, será facilmente aprovada na Câmara dos Deputados e se tornará lei.

Isso é realmente muito importante. A lei, em si, não é suficiente para evitar o desastre climático. Mas é um passo enorme na direção certa e prepara o cenário para mais ações nos próximos anos. A legislação catalisará progresso em tecnologia verde. Seus benefícios econômicos facilitarão a aprovação de mais leis. Ela dá aos EUA a credibilidade de que o país precisa para liderar um esforço global para limitar as emissões de gases de efeito estufa.

DIFAMAÇÃO. Há, evidentemente, cínicos ávidos para difamar essa conquista. Alguns na esquerda se apressaram em desprezar o projeto de lei, qualificando-o como um prêmio para a indústria de combustíveis fósseis com pose de ação ambiental. Mais importante, os republicanos – que se opuseram à legislação de maneira unânime – estão berrando o que sempre berram: Gastos altos! Inflação!

Mas verdadeiros especialistas em energia e meio ambiente estão exultantes com o que foi alcançado, e economistas sérios não estão preocupados com o efeito sobre a inflação.

Comecemos com o lado ambiental. Muitas pessoas com quem converso acreditam que a agenda ambiental do presidente Joe Biden, conforme definida em sua proposta original do pacote Build Back Better, deva ter sido em grande parte diluída na legislação aprovada.

Afinal, os democratas não tiveram de abrir grandes concessões para ganhar o voto do senador Joe Manchin? E não estão previstos importantes benefícios para os interesses do setor de combustíveis fósseis, como ajuda para um controvertido gasoduto?

GANHOS. Mas analistas da indústria de energia acreditam que qualquer efeito climático adverso decorrente dessas concessões será obliterado pelos ganhos de créditos fiscais para a energia limpa. O Repeat Project, compilado pelo Zero Lab, de Princeton, produziu uma comparação lado a lado dos cortes de emissão sob a Lei de Redução da Inflação (LRI) e sob a versão mais branda do Build Back Better (BBB).

Até 2035 a LRI, estimam os pesquisadores, terá ocasionado mais de 90% das reduções de emissões que o BBB teria alcançado. Depois daquele drama legislativo, a política ambiental de Biden emergiu essencialmente intacta.

Como isso foi possível? Logo em seu início, o governo Biden decidiu que sua política ambiental seria movida a cenouras, em vez de chicotes – isso proveria incentivos para fazer a coisa certa, não penalidades por fazer a coisa errada.

Essa estratégia, esperava-se, se provaria factível politicamente de uma maneira que, digamos, impostos sobre emissões de carbono não seriam capazes. E essa esperança foi reivindicada.

DIVIDENDOS. Além disso, tratase de uma estratégia que, aparentemente, renderá dividendos políticos no futuro. Um novo estudo, de E. Mark Curtis e Ioana Marinescu, constata que “o crescimento da energia renovável leva à criação de empregos relativamente bem remunerados, que são com bastante frequência localizados em áreas que têm a perder com o declínio dos empregos na extração de combustíveis fósseis”.

Então, o que o governo Biden perdeu? Infelizmente, grande parte do gasto social que o BBB original previa – créditos fiscais em benefício de crianças, creches públicas universais e mais – foi cortada. Isso é trágico, apesar de o aumento nos subsídios para seguro-saúde – que ajudaram a produzir uma redução recorde no número de americanos não segurados – ter sido estendido. Mas os democratas cumpriram quase todas as suas promessas em relação ao meio ambiente.

INFLAÇÃO. E o que diz a crítica da direita? Além da patética tentativa de retratar a LRI como uma grande escalada nos impostos da classe média, republicanos como Mitt Romney estão tentando associar a legislação com o Plano de Resgate Americano, do ano passado, que, afirmam eles, causou aumento na inflação.

Não importa se essa alegação é verdadeira ou não. Importante é fazer a conta. A Lei de Redução da Inflação prevê gastos inferiores a US$ 500 bilhões ao longo de uma década, e o Plano de Resgate Americano determinou o gasto de US$ 1,9 trilhão em um único ano – e na realidade reduzirá o déficit. É por isso que analistas independentes consideram que a LRI influenciará pouco a inflação.

Mas se o gasto não é tão grande, como é capaz de surtir tamanho impacto? A resposta é que, neste momento, estamos numa espécie de limiar. A tecnologia em energia renovável fez um progresso revolucionário, e fontes renováveis já são mais baratas do que combustíveis fósseis em muitas áreas.

Um estímulo moderado da política pública basta para ocasionar a transição para uma economia muito mais verde. E a Lei de Redução de Inflação vai dar esse empurrão.

IGNORÂNCIA. Mas, diante tudo isso, por que todos os senadores republicanos votaram contra a LRI? Nem todos eles são ignorantes e alguns sabem fazer contas – estou bem certo que Romney, por exemplo, sabe que está falando besteira.

Diferenças ideológicas também não podem ser facilmente invocadas. O esforço ambiental da LRI depende principalmente de créditos fiscais – e os próprios republicanos usaram créditos fiscais para cumprir metas sociais, como os (tão abusados) créditos em Zonas de Oportunidade previstos no corte de impostos aplicado por Donald Trump em 2017.

Quase certamente, o que vemos agora é a política do despeito. Todos os senadores republicanos se mostraram dispostos a acabar com nossa melhor chance de evitar um desastre climático simplesmente para negar uma vitória ao governo Biden.

A boa notícia é que a lei foi aprovada a despeito de seu despeito. E o mundo se tornou um lugar com mais esperança do que era semanas atrás.

10 de agosto de 2022

A GUERRA FAZ A CLAREZA!

(Alastair Crooke, ex-diplomata britânico – Les Crises) O acidente de trem é esperado há tanto tempo que nos tornamos confortáveis ​​vivendo sob sua sombra. A vida continuou; os mercados estavam otimistas de que o subsídio ao estilo de vida de mercado fornecido pelos Bancos Centrais continuaria inabalável. E não sem uma boa razão também: qualquer decepção do trader com a ação do Banco Central, qualquer queda nos mercados, provocava um chilique coletivo no mercado que geralmente forçava os Bancos Centrais a um apaziguamento imediato. Fomos pressionados a imaginar de forma diferente.

Agora, no entanto, estamos em uma nova era, de muitas maneiras. O Ocidente entrou em guerra com a Rússia e a China. O Ocidente, no entanto, não fez sua lição de casa primeiro, e agora está descobrindo que a ‘guerra’ está revelando cruelmente a rigidez estrutural e as falhas inerentes ao seu próprio sistema econômico, em vez de explorar as fraquezas de seus rivais.

Por que essa nova era é tão grave? Em primeiro lugar, por causa do que está ‘debaixo das pedras’. Essas contradições estruturais vêm se acumulando ao longo de décadas, espreitando no lado escuro e úmido das pedras. Mantidos escondidos da vista pelo resultado econômico fortuito (para os EUA) da Segunda Guerra Mundial, e a combinação igualmente fortuita de fatores que mantiveram a inflação baixa (tão baixa que os economistas ocidentais acreditavam ter encontrado o ‘santo graal’ da ‘flexibilização’ monetária – eles baniu as recessões para sempre). Tão simples, realmente, basta ligar a impressora de dinheiro!

Salvar o navio, é claro, é imperativo. Assim, a América decidiu cuidar ‘dos ​​seus’. O plano de Davos-Bruxelas de eventualmente transformar os bancos comerciais europeus superendividados em uma única moeda digital controlada por Bruxelas de repente é visto – como se escamas tivessem caído dos olhos – como potencialmente ameaçando furar o casco abaixo da linha d’água .

O que isso revela é que o ‘jogo dólar forte-dólar fraco’ – em conjunto com as sanções do Tesouro – não foi ‘tão ruim’ para os grandes bancos de NY! Por que deixar os europeus recolherem todos esses ativos em dificuldades que surgem em tempos de crise? Por que permitir que a grande esfera bancária dos EUA se dissolva em um mundo de aplicativos fin-tech? Por que privar o primeiro de seus direitos históricos de invasão? Por que parar agora porque os europeus querem ‘Davos’.

Assim, os grandes bancos dos EUA estão pensando, deixe o BCE – e por extensão a Zona do Euro – ‘cair sob o ônibus’. De qualquer forma, coordenar a política com o BCE amarrou as mãos do Fed para administrar os assuntos em seu próprio benefício.

É a guerra, estúpido (para citar erroneamente o presidente Clinton). Se você levar um martelo de sanções a uma rede de fornecimento complexa e frágil ‘just in time’, você terá bloqueios de fornecimento – e a inflação de custos é inevitável . Abrir a torneira do dinheiro quando você enfrentar a inflação gerada pela oferta apenas retornará a dinâmica inflacionária ao sistema. O que o Fed está tentando fazer é manter intactos alguns benefícios de uma moeda de reserva, em um momento em que o valor da mercadoria como meio de negociação chama a atenção do mundo.

O que isso pode significar em termos de política prática? Bem, as crises de custo de vida já estão aqui, assim como o início das ruínas políticas que se seguiram. O BCE anunciou na semana passada o fim das compras de ativos e não colocou mais nada no lugar. Tudo o que o BCE disse foi que trabalharia em um ‘instrumento de emergência’.

Então, claramente, há uma emergência – mas não há um novo instrumento e não haverá um. O BCE pode usar uma ferramenta de QE existente para comprar uma quantidade ilimitada de títulos soberanos ou não. É uma escolha, não uma ferramenta nova.

O Euro é apenas um derivado do dólar (que em si é um derivado da garantia subjacente). O Euro-sistema (para usar uma metáfora militar) foi construído para proteger as linhas defensivas estáticas existentes: não é uma força militar expedicionária móvel e itinerante.

A base sistêmica para a zona do euro tem sido o compromisso absoluto do BCE de manter o Bund alemão de 10 anos com um prêmio gerenciado sobre os títulos do Tesouro dos EUA de 10 anos (estes são, respectivamente, as duas ‘âncoras de valor’ que sustentam o funcionamento da zona do euro) .

E, à medida que as taxas de juros sobem nos EUA, isso deve ser refletido no Bund (para preservar seu ‘valor’) – pois os títulos soberanos representam a garantia altamente alavancada sobre a qual está (ou não) o edifício bancário europeu. Se o valor, digamos, das garantias italianas cair, um ciclo de destruição financeira se instala – como aconteceu em 2012. Em uma palavra, a Zona do Euro potencialmente entraria em colapso.

Com uma inflação de 2%, os títulos soberanos europeus poderiam ser mantidos mais ou menos alinhados. Em 8% eles não podem. E o mercado de títulos está se fragmentando. Os spreads entre os títulos dos estados dispararam nas últimas semanas. Como paliativo, o BCE parece estar vendendo bunds alemães para comprar dívida italiana.

O que isso prenuncia para o futuro? Uma dica do que pode estar por vir foi quando Christine Lagarde não deixou dúvidas de que o BCE pelo menos tentará resistir. Ela disse durante uma conversa na London School of Economics que o BCE não se sujeitaria ao domínio financeiro. O domínio financeiro é um conceito mais amplo do que o de ‘domínio fiscal’ porque inclui o resgate de bancos e outras instituições financeiras, bem como as necessidades de empréstimos do governo.

Isso efetivamente poderia, pelo menos, salvar um núcleo para o ‘projeto’ do euro, eliminando os estados mais fracos e reservando o euro para as economias do norte menos endividadas. A consequência seria uma Europa imitando o que Wall Street fez com a Rússia durante a era Yeltsin: ou seja, imagine-a como a Itália, com seus ativos ‘privatizados’ e vendidos por US$ 1 (como Draghi fez uma vez com o Banco Popular, que ele ‘ assumiu’ como chefe do BCE e depois vendeu ao Santander por 1 euro).

Nos EUA, já existem indícios de tais ações armadas decorrentes de fragmentos do movimento pró-aborto, mas na Europa (e particularmente na Alemanha), podemos ver a raiva derivada de ativistas climáticos radicais, furiosos ao descobrir que é o Transição de energia que será jogada sob o ônibus, enquanto os estados lutam para fazer o melhor possível para manter um sistema à tona, o mais barato possível. A auto-sobrevivência invariavelmente tem prioridade, deixando outros interesses de lado.

Um livro do acadêmico e ativista climático sueco Andreas Malm, observou Wolfgang Münchau , traz o título “ Como explodir um oleoduto” . Sua mensagem mais importante foi um grito de guerra para os ativistas climáticos queimarem e destruirem todas as máquinas emissoras de CO2. Também invocou a declaração mais famosa de Meinhof – que era hora de uma transição da oposição para a resistência.

09 de agosto de 2022

SEGURANÇA DO CELULAR: AS DICAS VÃO DO NÍVEL BÁSICO ATÉ O AVANÇADO!

(O Estado de S. Paulo, 07)

Nível básico •

1) Use senhas alfanuméricas (incluindo símbolos e combinando letras minúsculas e maiúsculas) diferentes para cada cadastro;

2) Use sequências numéricas aleatórias em instituições financeiras, como senhas de cartões ou credenciais em aplicativos bancários;

3) Ative a verificação em duas etapas por celular ou e-mail; 4) Coloque senha no chip (SIM) da operadora, o que irá impedir que ladrões insiram o cartão em outro aparelho e tenham acesso ao seu número; 5) Não clique em links duvidosos ou dê informações pessoais, mesmo que o pedido seja de um contato conhecido; 6) Ative todas as biometrias do seu aparelho, como leitores de digitais e de rosto, que criam camadas a mais de segurança.

Nível intermediário •

1) Tenha senhas aleatórias, complexas e impossíveis de decorar: use apps específicos (1Password, Last Password) ou ferramentas de navegadores (Google Chrome e Safari) que criam senhas e as colocam em um “cofre” na nuvem;

2) Ative senhas de uso único como outra etapa de verificação. São números aleatórios que funcionam como segundo código. São criadas por apps próprios (Google Authenticator, Microsoft Authenticator, Authy, 1Password);

3) Entre em contato com a instituição financeira e diminua limites diários de transferência (DOC, TED e Pix), saques e empréstimo pré-aprovado; 4) Considere incluir um contato de confiança em sua família iCloud (Apple), permitindo que familiares possam apagar o dispositivo a distância em caso de roubo – Android (Google) não tem o recurso.

• Nível avançado

1) Comprar uma chave de segurança física para recuperação de senha e logins, como Titan (do Google), Yubico e OnlyKey — os preços, no entanto, podem ultrapassar a faixa dos R$ 800. Esses objetos são pequenos e podem ser guardados em chaveiros, por exemplo;

2) Gere e imprima códigos de backup alternativos, senhas criadas automaticamente pelo próprio cadastro dos serviços. Devem ser guardados em casa em local seguro; 3) Caso tenha adotado um app gerador de senhas, apague as senhas salvas dos navegadores para evitar brechas; 4) Crie um “e-mail secreto” a que só você tem acesso: essa conta não pode estar salva em nenhum dispositivo do cotidiano, deve ter senhas fortes e autenticação em dois fatores ativada. Por esse e-mail, você fará recuperação das contas mais importantes;

5) Deixe um dispositivo em casa (como um tablet ou celular velho) para ser o local por onde você acessa seu e-mail “secreto”, apps próprios de senhas ou até de instituições financeiras menos utilizadas.

08 de agosto de 2022

CRIANÇAS E ADOLESCENTES NUM PAÍS FAMINTO!

(Raquel Franzim e Ana Claudia Cifali respectivamente, diretora de educação e culturas infantis do Instituto Alana e coordenadora jurídica do Instituto Alana – O Estado de S. Paulo, 07) Ao longo dos primeiros 18 anos de vida, a criança e o adolescente vivem transformações físicas, cognitivas e emocionais que estruturam os anos que seguem e a vida adulta. Esse período, que é breve, produz efeitos duradouros. É por isso que o dado revelado de que o número de pessoas passando fome dobrou do final de 2020 para o começo de 2022 em lares do País com crianças de até 18 anos (25,7% das famílias) é o anúncio da tragédia humanitária que vivemos no presente com potencial de arruinar uma geração inteira no futuro. Durante as férias escolares, com a interrupção da oferta de merenda escolar, este quadro se agrava ainda mais.

Apenas 26% das crianças de 2 anos a 9 anos no Brasil fazem três refeições por dia. Famílias negras e chefiadas por mulheres são as mais impactadas, escancarando como a raça e o gênero são características decisivas para uma vida de privações e para a desigualdade na garantia de direitos em nosso país. A alimentação é o direito social mais básico da vida humana. A interrupção do acesso regular e permanente à alimentação de qualidade e em quantidade suficiente gera um efeito cascata nos demais direitos, impactando o desenvolvimento e freando a autonomia humana, essencial para um Estado Democrático de Direito.

Uma criança que passa fome não deveria preocupar apenas sua família: é a demonstração de que toda a responsabilidade compartilhada prevista no artigo 227 da Constituição federal falhou. Falhamos nós, sociedade e suas instituições, e falham os governos, que deveriam protegê-la acima de tudo, em primeiríssimo lugar, de toda ordem de violência e crueldade que a fome provoca.

Entre os direitos sociais mais afetados ao passar fome encontra-se o direito à educação. Tanto não há condições para aprender, participar e se desenvolver integralmente que o País criou ainda em 1954 o consolidado Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Posteriormente, foi incorporado como direito na Constituição federal de 1988 nos artigos 205 e 208 como um programa suplementar, ou seja, fundamental na garantia de qualidade na educação.

Responsável por garantir 15% das necessidades nutricionais básicas da vida, o programa é uma política pública baseada em evidências que comprovam que, do ponto de vista cognitivo, a desnutrição infantil prejudica o desenvolvimento da atenção, a memória, a leitura e a aprendizagem de linguagens como um todo.

A equação é simples: com menos energia e nutrientes, a performance ao participar da vida escolar diminui e as dificuldades de aprendizagem aparecem. Importante destacar que a fome provoca efeitos sistêmicos no desenvolvimento da criança, desde o crescimento neuromotor abaixo do esperado até, também, prejuízos em habilidades socioemocionais como iniciativa e tomada de decisão. Além disso, permanecer na escola nessas condições se mostra difícil, em alguns casos gerando o abandono escolar para busca de trabalho na tentativa de ampliar a renda familiar, como aponta relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 2020.

Por isso, uma boa alimentação escolar é fundamental, inclusive no período de férias, com programas próprios e específicos para alcançar as crianças e adolescentes que passam fome. Ainda que não responda a todo o problema da fome e da pobreza, a alimentação escolar faz parte da adoção de uma estratégia multidimensional, que inclui a elevação da agenda como prioridade política, com programas consistentes de redistribuição de recursos, assistência, renda e trabalho, sobretudo para as famílias mais afetadas. Infelizmente, dados revelam que o País não apenas deixou de apresentar essas soluções, como, em virtude das escolhas políticas recentes do governo federal, empurrou mais pessoas para a privação alimentar.

Com baixa competência técnica do Ministério da Educação (MEC) para resolver os problemas estruturais do setor durante a pandemia de covid-19, o governo federal tem priorizado questões irrelevantes para a população, entre elas o ensino domiciliar, e passa a escrever, agora, mais um capítulo desesperador. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão técnico vinculado ao MEC, palco recente de disputas políticas, vem nos últimos anos reduzindo a previsão e a execução orçamentárias do Pnae. Segundo dados do próprio governo federal no Portal da Transparência, a tendência é de diminuição de recursos destinados à alimentação escolar. Tudo isso em meio ao agravamento do cenário da fome.

Em outubro, o País passará por eleições para os governos federal, estaduais e para o Legislativo. Sem ter os direitos de todas as crianças e os adolescentes (especialmente os que passam fome) priorizados hoje, no centro do debate e das políticas públicas, o amanhã pode ser tarde demais para eles e para todos nós como sociedade e país.

02 de agosto de 2022

O BUMERANGUE FISCAL!

(O Estado de S. Paulo, 01) O Maranhão deu a largada para uma reação mais do que esperada dos governadores contra a perda de receitas imposta à força pelo presidente Jair Bolsonaro. O Estado foi o primeiro a pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender o pagamento de dívidas garantidas pela União. Ao analisar o caso, o ministro Alexandre de Moraes concordou com os argumentos do Estado e considerou que as leis que impuseram um teto para o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de combustíveis e mudaram a base de cálculo do tributo devem acarretar “um profundo desequilíbrio na conta dos entes da federação”. Com um pedido semelhante, Alagoas também obteve uma liminar, e é questão de tempo para que outros Estados também apelem ao Supremo. É a crônica de um desastre anunciado, que certamente vai custar muito caro para o País.

O aumento da arrecadação dos Estados não é algo estrutural – está relacionado a efeitos temporários, caso do aumento dos preços do petróleo e derivados em razão da guerra na Ucrânia. Qualquer presidente responsável e dotado de articulação política veria nesse contexto uma oportunidade para liderar esforços pela aprovação de uma ampla reforma para simplificar e unificar impostos, eliminar regimes especiais e garantir uma tributação progressiva com vistas a impulsionar o crescimento econômico. Por óbvio, as negociações são difíceis, mas é mais fácil chegar a um acordo quando as partes envolvidas estão com o caixa cheio. O governo federal, no entanto, fez exatamente o contrário. Usou os combustíveis como pretexto para iniciar uma campanha difamatória contra os governadores, jogou Câmara e Senado contra os Estados e optou pela chantagem pública. Encurralados pela disputa eleitoral, os governadores não quiseram correr o risco de serem vistos como inimigos. De forma irresponsável, decidiram se antecipar e arcar com as perdas. Agora que a conta começou a chegar, recorreram ao socorro do STF.

São várias as consequências desse improviso tributário generalizado. Para começar, suas consequências são definitivas: tanto a imposição do teto de 17% quanto a mudança na base de incidência do ICMS continuarão a vigorar mesmo que os preços do petróleo eventualmente despenquem de uma hora para outra. Muitos Estados que iriam encerrar o ano com as contas no azul já projetam um déficit, e investimentos em saúde e educação, que fazem diferença na vida da população mais carente, terão de ser reduzidos. Os municípios, que historicamente têm contas mais ordenadas, podem em breve se tornar uma nova fonte de problemas financeiros, já que uma parte da arrecadação de ICMS fica com os prefeitos. Após anos de negociação para aderir a planos de recuperação fiscal, os Estados mais endividados, como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul,

Goiás e Minas Gerais, dificilmente conseguirão atingir uma trajetória de equilíbrio das contas públicas no médio prazo. O fato de que os acordos foram fechados considerando receitas que não mais se realizarão abre margem para que as contrapartidas com as quais eles haviam se comprometido tampouco sejam cumpridas, como o veto a reajustes de servidores, a aprovação de reformas e a privatização de estatais.

Ainda que sejam tratados como inimigos por Bolsonaro, Estados e municípios são parte da Federação. Sem autorização para emitir dívida, eles não têm muitas alternativas para arrecadar receitas a não ser a cobrança de impostos – como vinham fazendo por meio do ICMS sobre bens essenciais – ou com empréstimos em instituições financeiras públicas e multilaterais. Essas operações, no entanto, precisam do aval do Tesouro Nacional, e, em caso de calote, quem herda a conta é a União. É o que deve ocorrer se todos os Estados que apelarem ao STF tiverem sucesso em seus pleitos. É, portanto, um despropósito que Bolsonaro tenha atuado para corroer as finanças de Estados e municípios quando sabe (ou deveria saber) que o custo dessa política recairá sobre o próprio governo federal. O desastre fiscal dos entes federativos é, em última instância, a ruína do País.

01 de agosto de 2022

BIDEN MOSTRA QUE SE PODE GOVERNAR DO CENTRO!

(Fareed Zakaria – Washington Post/O Estado de S. Paulo, 30) Se o compromisso alcançado na quarta-feira entre o líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, democrata de Nova York, e o senador Joe Manchin, democrata de Virgínia Ocidental, for aprovado, acarretará no maior investimento no combate às mudanças climáticas já realizado pelo governo federal e será o maior pacote de redução de déficit em uma década.

O acordo – obtido após a aprovação da Lei para Chips e Ciência, que prevê investimentos massivos e pesquisa de base em tecnologias cruciais – se seguiu à aprovação da primeira legislação bipartidária para controle de armas de fogo em uma geração. E isso foi precedido pela aprovação do pacote trilionário de infraestrutura, uma das promessas mais emblemáticas da campanha de Donald Trump.

CENTRISMO. No mundo atual, governar a partir do centro parece muito diferente do que foi no passado. Quando o Congresso se uniu, nas décadas de 80 e 90, para aprovar grandes pacotes bipartidários, salvando o sistema de bem-estar social, reformulando impostos, ajudando americanos com deficiências e reduzindo a poluição atmosférica, os autores dos projetos com frequência foram idolatrados pela mídia e dentro de próprios partidos.

Hoje, o mote no Congresso americano é jamais abrir concessões. Resistir ao outro partido, que não é considerado apenas oposição, mas inimigo, é uma distinção de honra. É isso que permite aos congressistas levantar financiamentos com os elementos mais radicais de cada lado do espectro. Um grande esforço bipartidário de empreender uma reforma migratória empacou no início dos anos 2000, ferozmente atacada pelos extremos de ambos os partidos.

REVOLUÇÃO. O Dream Act teve apoio dos dois dos senadores mais opostos ideologicamente, Edward Kennedy, democrata de Massachusetts, e Orrin Hatch, republicano de Utah, que também eram bons amigos.

Eles estavam entre os mais antigos membros do Senado e talvez encarnassem uma antiga maneira de governar, desalinhada em relação a tempos em transformação. A revolução Gingrich (de Newt Gingrich, republicano ex-presidente da Câmara), dos anos 90, tinha transformado o Partido Republicano e,

Os democratas têm mais chances do que os republicanos de se tornarem um grande partido guarda-chuva

posteriormente, a própria Washington. Abrir concessões era considerado se vender – ou até uma traição.

Ao tentar ressuscitar aquele antigo modelo de governo, Biden está remando contra a maré. Mas, surpreendentemente, de maneiras modestas, mas significativas, ele está vencendo. Se mais projetos de lei bipartidários forem aprovados e se os legisladores não forem punidos por cooperar através das linhas partidárias – ou forem recompensados por isso –, esse movimento poderá começar a transformar alguns motes e reduzir a toxicidade em Washington.

Para os democratas, há um real lado positivo aqui. Eles estão mais bem posicionados do que os republicanos para se tornar um grande partido guardachuva. Conforme mostrou um notável estudo Brookings, em 2020, “a vitória de Biden veio dos subúrbios”, e esses eleitores são presumivelmente mais moderados e centristas do que, digamos, a base do Partido Democrata.

LEGISLATIVO. Eleitores dos subúrbios parecem cada vez mais insatisfeitos com as posições dos republicanos sobre temas como aborto e armas de fogo. Após a Suprema Corte reverter Roe versus Wade, a disputa da eleição de meio de mandato para o Congresso deixou de favorecer os republicanos para virar, essencialmente, um empate.

Ser um grande partido guarda-chuva é difícil. Significa manter coalizões unidas, incluindo pessoas que você discorda diametralmente. Mas em um país enorme e diverso, com mais de 330 milhões de habitantes, esta é a única maneira de formar maiorias eficientes. Algumas das maiores realizações dos democratas foram alcançadas com esse espírito.

Franklin Roosevelt postergou ações sobre direitos civis para conseguir aprovar o New Deal. Lyndon Johnson convenceu o Sul segregacionista a apoiar grande parte de seus programas da Grande Sociedade.

Bill Clinton teve de governar durante a maior parte de seu mandato com um Congresso controlado pelos republicanos. E, quando Barack Obama teve maioria no Congresso, ele escolheu priorizar assistência de saúde universal em detrimento de muitas outras questões sociais, incluindo casamento entre pessoas do mesmo sexo.

CONCESSÕES. Às vezes, fazer concessões pode levar a desfechos melhores. Por exemplo, o projeto de lei sobre imigração era um plano melhor do que qualquer dos partidos poderia ter aprovado independentemente, porque ambos os lados possuíam preocupações legítimas e argumentos válidos que foram representados.

Alguns dos argumentos de Manchin no passado, de maneira similar, foram críveis. Ele argumentou, por exemplo, contra fazer os pacotes parecerem baratos, prevendo vários programas, mas os financiando apenas por um ano, na esperança de que eles sejam estendidos anualmente.

Sobre o meio ambiente, a visão dele de que não devemos parar de usar combustíveis fósseis antes de termos tecnologias verdes suficientes e em escala para substituí-los pode até servir a interesses egoístas do senador da Virgínia Ocidental, mas também resulta de uma leitura precisa do momento que vivemos atualmente. REVIRAVOLTA. Mais importante, se lembre, por favor, que Manchin representa um Estado em que Trump venceu por cerca de 40 pontos porcentuais em 2020. A surpresa é Manchin estar disposto a chegar até onde já chegou até agora. Pense nele como um teste decisivo.

Se os democratas conseguem manter Manchin do seu lado, por definição, eles estão construindo um grande guarda-chuva, com capacidade de abrigar a maioria dos americanos.