16 de março de 2021

GUERRA NA SÍRIA COMPLETA 10 ANOS E DESTRÓI PERSPECTIVAS DE UMA GERAÇÃO!

(Folha de S.Paulo, 14) O estopim para a guerra da Síria foi uma pichação. Nos muros de um colégio, estudantes escreveram “queremos a queda do regime” e “sua hora vai chegar, doutor”. O doutor era Bashar Al-Assad, ditador do país, e a resposta do governo foi prender e torturar cerca de 15 menores de idade.

Naquele março de 2011, época de Primavera Árabe, a prisão dos jovens gerou uma onda de protestos que clamava por mais direitos e menos autoritarismo. À medida que as manifestações foram se espalhando, a repressão ficava mais brutal. O governo sitiou cidades onde os atos eram mais fortes, e, nos meses seguintes, militares deixaram o Exército para formar milícias contra o governo.

Quinze de março, considerado o dia do início dos protestos, marca o aniversário do conflito. As estimativas de mortos variam. O Observatório Sírio de Direitos Humanos confirmou a morte de ao menos 380 mil pessoas, mas calcula que o número pode ser ainda maior e chegar a quase 600 mil.

Ainda que a situação tenha sido considerada uma guerra civil em 2012, o conflito mexeu com a comunidade internacional. Ao lado de Assad, ficaram Rússia e Irã. Com os opositores, que se dividem em diversos grupos e alimentam disputas internas, Arábia Saudita, Qatar e Turquia.

Para complicar, a partir de 2013 a facção terrorista Estado Islâmico (EI) conseguiu emergir e conquistar uma grande faixa do território sírio, o que atraiu potências do Ocidente para o conflito: uma coalizão liderada pelos EUA fez ataques massivos e apoiou rebeldes, derrotando o grupo jihadista no país.

Assad quase perdeu a guerra, mas a Rússia impediu que sua hora chegasse ao combater os opositores. Hoje, o ditador controla cerca de 60% do território. O conflito esfriou, mas não acabou.

“Nos últimos três anos, houve uma estabilização, mas o país está longe de parar em pé e não tem nem sinal de autoridade efetiva”, avalia Karabekir Akkoyunlu, professor de Relações Internacionais da FGV. “A Síria deixou de ser uma tragédia aguda para ser uma tragédia crônica.”

David Kaelin, coordenador do programa de água e habitação do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) na Síria, afirma que a situação está mais calma no centro e no sul do país, mas os combates seguem ocorrendo no norte. Os desafios humanitários, diz ele, continuam enormes.

Engenheiro, Kaelin trabalha na reconstrução de escolas e redes de água e energia. Ele conta que a infraestrutura do país sofreu com falta de manutenção mesmo onde não houve bombardeios e, “se for tratada assim por mais anos, chegará a um ponto em que não teremos como recuperá-la”.

A falta de profissionais especializados dificulta a reconstrução. Muitos deles deixaram o país, e a guerra atrapalhou a formação de uma geração. Os garotos que picharam o muro em 2011 tinham entre 10 e 15 anos. Os jovens que estão hoje na faixa dos 20 anos viveram seus anos de estudo em meio ao conflito.

“É comum que os refugiados já tenham sido forçados a mudar de lugar quatro ou cinco vezes”, comenta Joel Ghazi, coordenador de operações da ONG Médicos Sem Fronteiras para o noroeste da Síria. “E sem poder estudar direito, como estes jovens vão poder reconstruir o país no futuro?”

A situação também pouco os motiva a ficar. Kaelin, da Cruz Vermelha, diz que conseguir um trabalho em empresas locais é muito difícil, e os engenheiros recém-formados com quem trabalhou querem imigrar.

Levantamento feito pelo instituto Ipsos ouviu 1.400 jovens na Síria, no Líbano e na Alemanha. Deles, 62% tiveram de deixar suas casas devido à guerra, 55% tiveram a formação escolar interrompida e 42% perderam um familiar ou amigo próximo.

Anas Obaid, 32, deixou o país após ser capturado pelo EI e veio morar no Brasil em 2015. Jornalista, trabalhou em São Paulo lavando pratos e, depois, fabricando e vendendo perfumes. A pandemia de Covid-19 atrapalhou seus negócios, mas, para ele, tudo parece mais do mesmo. “É como se estivéssemos há dez anos em quarentena. Sempre há perigo, risco de perder o trabalho e falta de dinheiro”, afirma.

Obaid, que trabalhou em um campo de refugiados no Líbano, usa o tempo de confinamento no Brasil para estudar e escrever um livro sobre sua experiência com a guerra e o refúgio. “Tenho orgulho do nosso povo. Temos o pensamento de não deixar o passado atrapalhar nosso presente. Os jovens sírios chegam com muita vontade de trabalhar e de reconstruir a vida.”

Para os jovens ouvidos pela pesquisa da Ipsos, o maior desejo é o de estabilidade, opção escolhida por 65% dos entrevistados. Planos como formar uma família e voltar a estudar são bem menos citados.

Segundo a ONU, há 6,6 milhões de refugiados sírios espalhados em 130 países, embora a maioria tenha ido para nações vizinhas. Além disso, há mais 6,7 milhões de pessoas deslocadas dentro do próprio país.

De acordo com o Acnur, órgão da ONU para refugiados, cerca de 70% dos que deixam a Síria vivem na pobreza, e há alto risco de que descambem para o trabalho infantil. O casamento de meninas menores de 18 anos também tem crescido. A estimativa da agência é de que sejam necessários US$ 5,8 bilhões para cobrir as carências mínimas dos refugiados em 2021, somando os gastos das organizações que lá atuam.

Em 2020, no entanto, apenas pouco mais da metade do orçamento projetado foi atingido.

“Nessa situação, priorizam-se as coisas mais básicas, como saúde, alimentação e abrigo, e as ações para educação e geração de renda ficam para trás”, diz Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Acnur no Brasil.

Com as dificuldades de viver como refugiado, muitos tentam voltar para casa, apesar dos riscos. Os pais de Obaid fizeram esse caminho e reencontraram a casa da família, nos arredores de Damasco, destruída.

“Meu pai ficou 40 anos melhorando a casa —e perdeu tudo. Roubaram até o piso. Agora, aos 74 anos, precisa recomeçar. Eles abriram uma loja e estão se virando. Mas meu pai mudou totalmente. Está sempre incomodado, preocupado, com medo de perder tudo de novo”, conta. “Ainda tem um conflito aqui ou ali, alguns morrem, alguns são torturados.”

No último ano, a guerra na Síria teve poucos movimentos significativos além de embates no norte do país, que cessaram após um acordo entre Turquia e Rússia em março de 2020, dias antes de a pandemia paralisar o mundo. Não há números confiáveis, pois falta acesso a testes e a atendimento médico, mas agentes em campo relatam que houve piora na situação do coronavírus no país.

“Se uma família fica doente, muitas vezes só há dinheiro para comprar remédios para uma pessoa, e os outros ficam sem. A inflação alta dificulta as coisas”, aponta Ghazi, da ONG Médicos Sem Fronteiras.

A Síria enfrentou, nos últimos meses, um agravamento da crise econômica. Na sexta (12), US$ 1 comprava 4.000 libras sírias no mercado paralelo, segundo a agência de notícias Reuters. Em junho de 2020, essa cotação era de 1 para 2.500. A crise no vizinho Líbano complicou ainda mais esse panorama. Com a desvalorização, vieram inflação e falta de produtos, incluindo pão e combustível.

O fim da crise é considerado distante, e, para tal, especialistas apontam que os países envolvidos na guerra precisam mudar a forma de agir. “As potências regionais têm a chave para decidir o futuro da Síria, mas não vejo nenhuma urgência por parte delas”, diz o professor Akkoyunlu. Ele avalia que as negociações em torno do acordo nuclear entre Irã e EUA, agora sob a Presidência de Joe Biden, podem incluir alguma mudança modesta de posição de Teerã sobre Damasco.

Um cenário provável é que a Síria se torne um país instável por décadas, como Afeganistão e Iraque, cujos conflitos internos não cessaram mesmo após diversas intervenções estrangeiras. E as demandas dos protestos de 2011, que incluíam menos corrupção e melhores serviços públicos, nunca foram atendidas.