31 de março de 2021

ARRANCADA RÁPIDA!

(Luiz Carlos Trabuco – O Estado de S. Paulo, 29) Alta maior da Selic evita que uma inflação transitória se transforme numa inflação inercial, mais difícil de erradicar.

O Banco Central surpreendeu o mercado com uma largada acelerada na elevação dos juros. Aumentou a taxa básica em 0,75 ponto porcentual, acima das projeções dos analistas, e anunciou outro aumento de igual magnitude na próxima reunião, em maio. Foi uma decisão difícil, porém acertada. Conhecida como Selic, a taxa básica serve para balizar o custo do dinheiro nas transações realizadas na sociedade. No sistema financeiro, é a taxa de juros de um dia que determina a inclinação da curva de juros para frente. Quando está muito baixa, pressiona a parte mais longa da curva para cima; se está alta demais, a curva de juros se achata, podendo inclusive ficar negativa em alguns casos.

Os juros altos têm inconveniências, entre elas tornar a rolagem da dívida pública mais cara e aumentar o custo do crédito. Como a atividade econômica está anêmica e o desemprego elevado, eis a dúvida: o efeito do juro mais alto não agravaria o quadro?

Essa decisão, porém, seguiu a prescrição técnica. A desvalorização cambial e o aumento das cotações das commodities impactaram os preços internos de forma transitória, mas influenciaram nas expectativas de inflação para este ano e o próximo. A elevação dos juros deve arrefecer essa pressão nos preços e a volatilidade da taxa de câmbio.

O nosso alento é o cenário externo positivo. Apesar das incertezas, as indicações são de um início de crescimento vigoroso no exterior. O Banco Mundial projeta 4%; todavia, pode ser maior. Um destaque é o pacote de estímulos fiscais aprovado nos Estados Unidos, que deve impulsionar a economia americana e a mundial.

Isso ajuda num momento de incertezas no cenário interno. Na margem, os números são positivos. Em janeiro, o IBC-BR, que é a estimativa do PIB mensal feita pelo Banco Central, mostrou uma alta acima das expectativas do mercado e a abertura de vagas de trabalho apresentou recuperação forte. As incertezas são a evolução da pandemia no País, o ritmo de vacinação e a dinâmica fiscal.

A questão central dos juros é a calibragem. Mesmo com as duas altas de março e maio (prevista), a taxa de juros real continuará negativa. Há vantagens a considerar numa alta maior que a esperada pelo mercado. A primeira é que afasta com mais segurança a alta de preços temporária e evita que uma inflação considerada transitória se transforme numa inflação inercial, mais difícil de erradicar e com consequências duradouras.

Outro benefício é que uma alta mais forte encurta o ciclo de ajustes. Um processo de elevação demorado tem o custo de juros altos por mais tempo e pode até ter uma taxa máxima maior do que a de uma política mais contundente. Dessa forma, o custo social do ajuste monetário é mais curto. Considerando prós e contras, melhor não correr riscos.

O papel do Banco Central é calibrar a taxa para cumprir a meta de inflação. Analisa indicadores econômicos, pondera os riscos e as incertezas. O espaço de manobra do BC é estreito e depende de inúmeras variáveis fora de seu controle, como a pandemia, o estado da economia internacional, o andamento das reformas e o ajuste fiscal.

A evolução da dívida pública é outra preocupação. Estabilizou-se no ano anterior à pandemia, quando também foi aprovada a reforma da Previdência, colocando-a numa trajetória melhor. A queda do PIB e o auxílio emergencial a levaram para outro patamar, acima. A questão agora é evitar que fuja do controle e o País entre num círculo vicioso de juros mais altos e crescimento baixo.

Nesse cenário inquietante, a vacinação e as reformas representam o centro definidor. O andamento positivo nas votações do Congresso e a aceleração do ritmo da vacinação podem dar tração à atividade econômica e acomodar as expectativas em relação ao câmbio – com efeitos diretos na inflação. É a porta para o País entrar num círculo virtuoso de juros baixos sustentáveis, mais crédito, mais investimento e melhorias nos indicadores sociais.

E o mais importante: para preservar vidas.

30 de março de 2021

A ESQUINA DO FUTURO!

(Luís Eduardo Assis – O Estado de S. Paulo, 29) Após a pandemia, haverá uma geração a quem será privado o conhecimento e, desta forma, o exercício pleno da cidadania.

Já dizia o escritor inglês H. G. Wells: a história da civilização é uma disputa entre a educação e a barbárie. A ideia de que é preciso desvendar mistérios através de métodos científicos é relativamente recente na história da humanidade, mas sem ela não teríamos conseguido os extraordinários avanços dos últimos séculos. Demoramos milhares de anos para aprender que o avanço do conhecimento nos torna melhores. O método científico – que ainda hoje alguns apalermados refutam – é indissociável da ideia de progresso, algo também recente do ponto de vista histórico. Há enorme correlação entre o índice de desenvolvimento humano e o nível de educação dos países. Soa como uma platitude, mas aqui em terras tabajaras a necessidade de fazer avançar o nível educacional só encontra consenso na sua manifestação genérica e superficial. Ninguém se diz a favor da ignorância, mas as políticas públicas para combatê-la acabam esbarrando na falta de recursos, na incúria da elite e na cristalização de interesses corporativos. Gastamos pouco, gastamos mal e os resultados beiram a calamidade. O exame Pisa, realizado a cada três anos, teve sua última edição em 2018 e avaliou o desempenho acadêmico de jovens de 15 anos em 79 países. O Brasil ficou em 59.º em leitura, 67.º lugar em ciências e 73.º em matemática.

Tudo sugere que a pandemia teve um impacto devastador sobre um esforço que já rendia poucos frutos. Estudo da Unicef divulgado em janeiro mostra que aumentou a evasão escolar durante a pandemia. Em 2019, o IBGE identificou uma taxa de abandono de 2,2% entre crianças e jovens de 6 a 17 anos. Já em outubro de 2020, o porcentual registrado pela Unicef foi de 3,8%, ou seja, 1,38 milhão de pessoas não frequentavam a escola. A este contingente devem ser acrescentados outros 4,1 milhões que afirmaram estarem matriculados, mas não participaram de nenhuma atividade nas escolas. O abandono escolar atinge mais os alunos pobres, cujo atendimento já era insatisfatório e que não tiveram acesso ao ensino remoto. Uma tragédia dentro de um drama. Em estudo divulgado em julho de 2020 (Consequências da Violação do Direito à Educação), o Insper estimou que, em 2018, 557 mil jovens com 16 anos não concluíram a educação básica. Isto vai provocar uma perda de renda ao longo de toda a vida laboral de cada um destes jovens de R$ 395 mil, o que significa que o custo total do abandono escolar para esta faixa etária alcança a cifra astronômica de R$ 220 bilhões. Para efeito de comparação, o orçamento do MEC para a Educação Básica em 2020 foi de R$ 42,8 bilhões (aliás, 34% menor que o de 2012).

O problema das consequências é que elas chegam depois, já dizia Marco Maciel. O que o governo tem a dizer sobre o abandono escolar provocado pela pandemia? Se o sistema educacional brasileiro já vinha mal antes como evitar que fique ainda pior? O Ministério da Educação não tem planos – nem sequer diagnóstico. No meio da tragédia da covid-19, gastou tempo e esforços na busca da regulamentação do ensino domiciliar, uma abjeta excrescência ideológica. Para um governo que recusa o passado e não reconhece o presente, pensar a longo prazo é um luxo inacessível. A propósito, qual é mesmo o nome do atual ministro da Educação? Quando a pandemia arrefecer, malgrado o descaso do presidente, voltaremos a frequentar pizzarias, mas os jovens que nos entregam as pizzas hoje não voltarão para as escolas. Haverá uma geração a quem será privado o conhecimento e, desta forma, o exercício pleno da cidadania. Não se trata apenas de fomentar a ignorância; é a barbárie que está à espreita. Há um despacho na esquina do futuro, já dizia Marcelo Yuka.

29 de março de 2021

VERDADEIRO DESASTRE PARA A AMÉRICA LATINA PODE VIR EM 2021!

(Brian Winter – Americas Quarterly – O Estado de S. Paulo, 28) Em toda a América Latina, 2021 ainda está sendo saudado como um ano de recuperação. Depois que a região foi responsável por 28% das mortes confirmadas de covid no mundo, no ano passado, e sofreu sua pior contração econômica anual (-7,4%) desde 1821, no contexto das guerras pela independência, a maioria dos políticos e líderes empresariais acreditam que o pior já passou.

Sim, surtos recentes no Brasil, no Chile e em outros países causaram um novo aumento nas mortes e lockdowns. Mas, teoricamente, o ritmo da vacinação deve se acelerar ao longo do ano. A maioria dos governos viu sua popularidade se manter estável ou até aumentar, e há poucos sinais dos protestos em massa que sacudiram a região antes que a pandemia expulsasse as multidões das ruas. “Acho que estamos muito perto da linha de chegada”, um político me disse recentemente. “Poderia ter sido bem pior.”

Mas vários estudos publicados este mês contam uma história bem diferente: a covid-19 abalou a América Latina em um grau maior do que muitos imaginam, e a sensação de condescendência pode estar condenando a região pelos próximos anos. Esses estudos mostram a gravidade com que a pandemia atingiu grupos vulneráveis, como mulheres, negros e trabalhadores informais, e alertam que a recuperação provavelmente os deixará ainda mais para trás.

Os bancos da América Latina podem estar mais frágeis do que geralmente se reconhece, e a conversa animada sobre a transferência das cadeias de suprimentos da Ásia após a crise até agora continua sendo só uma conversa. As escolas ainda ficarão fechadas em maior número do que em qualquer outro lugar do mundo, arriscando criar uma verdadeira “geração perdida” – e deixando as economias sem um motor mais claro de crescimento, pois a região envelhecerá rapidamente nas décadas de 20 e 30.

É verdade que as coisas poderiam ter sido piores. Auxílios emergenciais na forma de transferências em dinheiro chegaram a 61% dos latino-americanos em 2020, quase o triplo do porcentual de pessoas que recebiam tais pagamentos antes da pandemia, de acordo com um novo relatório da Cepal, a comissão econômica da ONU para a América Latina.

O tamanho e a duração dos auxílios variaram muito e desafiaram os estereótipos ideológicos: os governos de direita do Brasil e do Chile ofereceram o apoio mais generoso, mais que o dobro em termos relativos do que seus colegas de México, Argentina e Bolívia. No todo, a pobreza na região aumentou “apenas” cerca de 3 pontos porcentuais, para 33,7% da população, o nível mais alto desde 2006 e uma tragédia por si mesma. Mas a Cepal calculou que, sem os programas de ajuda, a pobreza teria mais que dobrado.

Logo abaixo da superfície, no entanto, existem disparidades vastas e crescentes naquela que já era a região mais desigual do mundo. Em 2020, o quintil mais rico dos latino-americanos viu sua renda cair apenas 7%, em média, e seu desemprego quase não aumentou. Já o quintil inferior viu sua renda cair impressionantes 42% e seu desemprego crescer 5 pontos porcentuais.

As mulheres abandonaram a força de trabalho a taxas maiores do que os homens em 9 dos 12 países estudados pela Cepal, que também descobriu que os negros no Brasil tinham apenas metade da probabilidade dos brancos de continuar trabalhando de suas casas.

É provável que o maior desastre de todos tenha sido enfrentado por mais da metade dos trabalhadores latino-americanos que trabalham no chamado mercado informal. Em países como México, Brasil e Costa Rica, mais de 70% da perda total de empregos em 2020 ocorreu nesse setor. Esses trabalhadores já tinham pouca ou nenhuma rede de segurança – e imediatamente enfrentaram a fome, a falta de moradia ou algo ainda pior.

E é aí que o trem da recuperação realmente começa a descarrilar. Tanto a Cepal quanto o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em seu recémpublicado relatório macroeconômico anual, destacam a probabilidade de que, caso se mantenham as tendências atuais, a recuperação econômica seja fraca – e a maioria dos empregos futuros seja criada no setor informal. Isso significa uma vida mais precária para milhões de latino-americanos e taxas de pobreza que ficarão insistentemente altas.

Enquanto isso, a maioria dos governos, incluindo o do Brasil, reduziu ou eliminou os programas de ajuda de 2020, deixando milhões sem proteção, em grande parte por causa do medo de agravamento de uma crise fiscal. Os temores são reais: a dívida pública média da região disparou de 58% para 72% do PIB no ano passado, e o cenário básico do BID é que continue a aumentar, chegando a 76% até 2023.

É importante notar que os EUA estariam enfrentando um cenário igualmente desolador se não fossem abençoados pela moeda de reserva mundial – e, portanto, a capacidade (aparente?) de imprimir trilhões de dólares sem grandes consequências. Mas a América Latina, com sua longa história de credores rígidos, está sob uma rédea mais curta do que a maioria das outras regiões. Ainda não está claro se isso resultará em uma onda de inadimplência da dívida soberana, como na década de 1980; mas o relatório do BID trouxe uma seção que faz uma retrospectiva daquela “década perdida”, argumentando essencialmente que, se for necessário fazer reestruturações, quanto mais cedo melhor.

O BID também advertiu sobre uma “falsa sensação de segurança” no sistema financeiro da região, citando vários sinais de alerta nos últimos meses, apesar dos balanços aparentemente saudáveis. A inflação está aumentando em alguns países, mesmo com as economias ainda estagnadas. O Brasil subiu as taxas de juros recentemente pela primeira vez desde 2015, em 0,75 ponto porcentual.

Por fim, tem a tragédia em curso nas escolas. Cerca de 114 milhões de alunos na América Latina e no Caribe, ou cerca de 80% do total, ainda não podem frequentar a escola presencialmente, de acordo com um relatório divulgado na quarta-feira pelo Unicef. É de longe o maior número do mundo, e a expectativa é que pelo menos 3 milhões desses estudantes – e possivelmente muitos mais – nunca mais voltem às salas de aula. Apenas uma fração dos alunos conseguiu frequentar efetivamente a escola pela internet, e os estudos sugerem que milhões de jovens no ensino fundamental já perderam as habilidades básicas de leitura e matemática.

Isso está revertendo uma das grandes histórias de sucesso (e motores de crescimento econômico) da região nos últimos 30 anos: o crescimento da educação primária, secundária e universitária. O Banco Mundial calculou que a crise educacional poderia reduzir cerca de 10% dos ganhos futuros dos latino-americanos, um valor insondável de US$ 1,7 trilhão.

Como sempre na América Latina, é importante não cair na armadilha do fatalismo. A história mostra que este sempre foi um lugar de altos e baixos. É possível que a recente alta nos preços do petróleo, cobre e outras commodities impulsione as economias exportadoras da América do Sul e um boom econômico pós-estímulo nos EUA dê um impulso imediato ao México e à América Central.

Alguns governos parecem compreender a magnitude dos desafios, enquanto algumas pessoas no setor privado, na sociedade civil e na mídia continuam cobrando mudanças. Mas, em face dessa inércia avassaladora, praticamente todas as outras razões para esperança que citei no ano passado se erodiram, especialmente a educação.

Na verdade, é difícil escapar das seguintes conclusões: 1) muitas elites latino-americanas, por terem passado pela covid mais ou menos ilesas, não estão conseguindo entender que 2021 não é o momento de relaxar e declarar a vitória sobre a pandemia; 2) a maioria dos presidentes da região e outros líderes políticos, tanto à esquerda quanto à direita, parecem satisfeitos em simplesmente reciclar ideias fracassadas das décadas de 60 e 70 ou focar nas próximas eleições, em vez de pressionar com urgência as reformas modernizadoras que poderiam impulsionar o investimento e a criação de empregos de qualidade; 3) os mais vulneráveis da região, relativamente blindados em 2020, agora podem estar abandonados à própria sorte.

O crescimento na América Latina ficou estagnado durante anos, mesmo antes da pandemia, e a renda per capita já caiu aos níveis de meados dos anos 2000, segundo a Cepal. É uma região que não está pegando fogo – pelo menos não por enquanto –, mas que mais parece um sonâmbulo andando em direção ao abismo na renda e na qualidade de vida. Se seus líderes não acordarem – e rápido – podemos muito bem olhar para as decisões tomadas e não tomadas durante 2021 como algo ainda mais desastroso do que os eventos de 2020.

26 de março de 2021

EDUARDO PAES: O SOL HÁ DE BRILHAR MAIS UMA VEZ!

(Eduardo Paes – O Globo, 25) Tem início na sexta-feira (26 de março) um período de dez dias até o Domingo de Páscoa (4 de abril) que será um tempo de reclusão forçada, de recolhimento, determinado por nós por força das necessidades impostas pela pandemia que ainda se faz presente. Uma medida dura, sabemos todos, mas que é mais do que necessária conforme orientação firme do Comitê Científico, formado por especialistas de diversas áreas, que norteia as decisões da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro em tempos tão difíceis. E é necessária porque não há nada que valorizemos mais do que a vida dos cariocas e das cariocas, que são a razão de ser dessa cidade.

É da preservação de vidas que estamos falando. E foi pensando, também, na preservação de vidas, e no sustento das famílias cariocas, que lançamos na última quarta-feira um programa que destinará para cerca de 900 mil pessoas aproximadamente R$ 100 milhões nos próximos dias: porque há urgência.

E porque há urgência – no combate ao coronavírus, no combate à fome, ao desemprego e às dificuldades geradas com esse período de reclusão que estamos impondo – é que fazemos o apelo: vamos juntos atravessar esses dez dias com o espírito da solidariedade norteando nossos passos em direção ao Domingo de Páscoa.

E solidariedade nesses dias está intimamente ligada à sobrevivência, a cuidados capazes de preservar a saúde de todos nós enquanto aguardamos a imunização por meio das vacinas que estamos recebendo e imediatamente disponibilizando. Não viveremos um feriadão, com se tem dito e como nos acostumamos a viver. Feriados sempre foram sinônimo de festa, de aglomeração, de praias cheias, e tudo o que não precisamos (e não podemos) fazer nesses dias é isso. Façamos, cada um, nossa festa particular e silenciosa, cada um a seu modo, a fim de que possamos desafogar nossa rede de saúde, próxima do colapso apesar dos esforços que fazemos desde o primeiro dia de nosso governo, aumentando imensamente nossa capacidade de atendimento.

Mantenhamos firme nosso propósito de seguirmos vivos até que a vacina chegue a cada um de nós. O Rio é referência na matéria e temos ampla condição de vacinar a população com presteza e rapidez.

A Prefeitura do Rio vai seguir nesse mesmo caminho: vacinando seu povo, ouvindo os especialistas e chamando os cariocas para a missão da superação das dificuldades que sempre superamos juntos, fossem quais fossem os revezes. Conto com vocês e vocês podem contar comigo. O sol, podem estar certos, há de brilhar mais uma vez.

25 de março de 2021

PÁRIAS, PATETAS E PREPOTENTES!

(Elio Gaspari – Folha de S.Paulo, 24) Está nas livrarias a prova acabada dessa patetice. É o volume “Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil”, do embaixador Synésio Sampaio Goes Filho.

Synésio é tudo o que o ministro Araújo ainda não conseguiu ser. Erudito, estuda a diplomacia brasileira e uma questão que pouca gente procura conhecer: Como é que Portugal ficou com a Amazônia? Afinal, pela linha do Tratado de Tordesilhas (1494), suas terras paravam na foz do Amazonas. Diplomata, chefiou as embaixadas em Bogotá, Lisboa e Bruxelas. Além disso, presidiu a Fundação Alexandre de Gusmão, que foi uma usina de produção cultural do Itamaraty.

Foi porque, desde a chegada de Araújo, deixou de ser. Pela Fundação, o embaixador já havia publicado “Navegantes, bandeirantes, diplomatas”. (O livro está na rede, de graça.)

Em 2019 a Fundação recusou-se a publicar o “Alexandre de Gusmão”. Teria sido pressão da Espanha, que perdeu as terras pelo Tratado de Madri, de 1750? Talvez algum descendente do Marquês de Pombal, que azucrinava Gusmão? Nada. O livro de Synésio Sampaio não podia ser publicado porque tinha um prefácio do embaixador Rubens Ricupero, um ex-chanceler, ex-embaixador em Washington e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento. Motivo murrinha, coisa de patetas prepotentes. Como era de se prever, o livro saiu por uma editora privada, a Record.

O Brasil tem o formato de um presunto graças a grandes homens e à sabedoria de Lisboa. Para começar, há a figura de Pedro Teixeira. Um português que em 1637 saiu do Pará com 47 canoas e chegou a Quito. No caminho fundou o povoado de Franciscana, nos confins do oeste do vale amazônico. Achava-se que havia por ali um “Rio do Ouro”.

Em 1746 o paulista Alexandre de Gusmão, formado em Coimbra e em Paris, começou a cuidar das negociações do Tratado de Madri. Quatro anos depois Espanha e Portugal se acertaram e o Brasil ficou com o vale do Amazonas. Com essa e outras expansões, ficou dois terços maior.

Os mapas mandados por Gusmão desenharam três mil quilômetros da fronteira do Norte num texto de 66 palavras. Ele fez concessões nas fronteiras do Sul e foi atazanado pelas intrigas da Corte. Era secretário do rei João V e, quando ele morreu, o marquês de Pombal afastou-o.

Fritaram Alexandre de Gusmão, acusaram-no de ser judeu, “globalista” em araujês. Em tempo: toda a mitologia do Eldorado amazônico corria atrás de uma montanha de ouro. Afinal, na Bolívia havia-se achado uma de prata. Ela existia. Em 1644, sete anos depois da partida de Pedro Teixeira, um sujeito chamado Bartolomeu Barreiros de Ataíde catou algum ouro na região do Araguaia, mas a montanha só foi achada em 1979, na Serra Pelada.

24 de março de 2021

BORBOLETAS, DITADORES E ESCRITORES!

(Mario Vargas Llosa – O Estado de S.Paulo, 21) Foi uma sorte para a América Latina que, em sua infância, Michi Strausfeld visse os documentários de Hans Domnik mostrando as suntuosas ruínas dos astecas e maias no México e na Guatemala, e as enigmáticas pedras do santuário de Machu Picchu no Peru. Porque o resultado disso foi uma crítica e editora latino-americanista que fez muito mais do que todas as universidades reunidas do seu país para a difusão da literatura da América Latina na Alemanha.

Não é exagero. Michi estudou filologia inglesa e espanhola e sua tese de doutorado foi sobre a obra de Gabriel García Márquez. Viajou pelos quatro cantos do Novo Mundo, por grandes cidades e pequenos vilarejos perdidos, foi amiga de escritores e editores, aprendeu as línguas que ali eram faladas (além dos infinitos dialetos), espanhol, português, francês e inglês. E, como editora, primeiro da Suhrkamp e depois da S. Fisher, publicou traduções de muitos autores latino-americanos, além de organizar simpósios, mesas-redondas e trazer a convite para a Alemanha uma infinidade de escritores. E digo: fez mais do que todas as universidades da Alemanha juntas.

E, como se tudo isso fosse pouco, acaba de editar em espanhol um esplêndido livro de mais de 500 páginas intitulado Mariposas Amarillas y los Senõres Dictadores, que acabei de ler. Em primeiro lugar, há duas coisas pelas quais felicitamos Michi Strausfeld. A primeira é que se refere à literatura deste vasto continente como um todo integral, muito variado, mas orgânico (que diferenças essenciais existem entre as literaturas do Equador, Peru, Bolívia, ou entre a argentina e a uruguaia?). E a segunda é que ela julga e se refere à poesia, ao conto, ao ensaio e ao romance como algo essencialmente ligado à história.

Testemunhos

Isso lhe permite, em sua exuberante investigação, referir-se não apenas aos livros literários mais originais e criativos, mas também às narrativas de menor importância oferecidas como testemunhos e investigações particulares da violência que permeia esse continente derivada das ditaduras, das lutas contra elas, da discriminação da mulher e, nos últimos anos, como consequência do tráfico de drogas. O livro é muito bem escrito e, apesar da sua envergadura, o lemos com prazer e simpatia, porque as sisudas nomenclaturas e análises rigorosas são atenuadas com historietas, fofocas, confidências e alarmantes passeios por regiões inóspitas, dominadas pelas guerrilhas e locais de incontáveis assassinatos.

Como muitos intelectuais europeus, minha amiga Michi Strausfeld tem um fascínio pelas revoluções e gostaria que os escritores estivessem sempre do lado dos rebeldes que lutam pelas boas causas – nem sempre é assim. Alguns intelectuais latino-americanos estão muito longe das pistolas e das bombas, e nossa aspiração é que a América Latina seja um continente pacífico e democrático, sem pistoleiros nem explosivos, como é hoje na Alemanha. Mas precisamos dizer, a seu favor, que ela não discrimina ninguém segundo critérios políticos e nas páginas do seu fascinante livro dá espaço tanto a Mario Benedetti e Eduardo Galeano quanto a Octavio Paz e Sergio Ramírez.

A única omissão maior que encontrei nesses capítulos onde há mais de uma centena de livros e autores estudados – com análises geralmente penetrantes e acertadas – é a do chileno Jorge Edwards, romancista, contista e ensaísta de alto nível, que merecia figurar neste panorama original das letras latino-americanas.

O livro começa com o descobrimento, ou seja, em outubro de 1492, quando Colombo escreve ao papa Alexandre VI que tem a impressão de “que estas paragens são as do Paraíso terrestre”. Os principais cronistas, Bernal Díaz del Castillo, no caso do México, e o Inda Garcilaso de la Vega, do Peru, estão bem estudados, com páginas que conservam intacto o deslumbramento dos espanhóis com os palácios, praças e caminhos, ao mesmo tempo que descobrem tribos primitivas, civilizações refinadas, com arquiteturas requintadas e cidades lacustres.

O livro dá um salto dos anos coloniais – sem deixar de citar, claro, a irmã Juana Inés de la Cruz, distante discípula de Góngora, cujos romances foram proibidos na América por uma misteriosa razão que até agora ninguém soube explicar. A proibição não funcionou com relação à importação de livros porque o contrabando era muito intenso. Fala-se que os primeiros exemplares de Dom Quixote chegaram ao Porto de Callao ocultos em uma caixa de vinhos – mas impediu as publicações, pois o primeiro romance a ser impresso na América foi El Periquillo Sarniento, no México, em 1816.

Ditaduras

O livro se intensifica nos séculos 19, 20 e 21, à medida que as colônias se tornam independentes e começa o período das ditaduras militares, quando a América Latina, com poucas exceções, se dedica a um extermínio recíproco, a roubar e destruir as novas repúblicas que, traindo o legado de Bolívar, em vez de se unirem como ocorreu na América do Norte, se dividiram e subdividiram, guerreando entre si e com os vizinhos, até transformar o novo continente num bacanal sinistro.

Este é o momento em que surgem, com grande força, a poesia e os romances, como um florescimento literário da guerra e os múltiplos problemas sociais. Michi Strausfeld insiste muito, e de modo convincente, que esta nova literatura preenche os vazios deixados pela história e exalta e diversifica ao extremo o que os grandes feitos históricos não tiveram condições de detalhar, ou seja, o sofrimento iníquo das vítimas, a crueldade para com os pobres provocada pelas enormes divisões sociais, a maneira como os Estados Unidos amparam as companhias americanas, subornando ou pressionando os governos que começaram processos de reforma agrária e provocando os primeiros sintomas – na educação pública – da igualdade de oportunidades.

Estas são as páginas mais interessantes do livro: a maneira como a literatura é contagiada pela problemática social e a reflete, às vezes aumentada, às vezes diminuída, mas sempre apoiada numa realidade viva, embora imaginando um vilarejo de mortos, como Juan Rulfo, ou o espetáculo de um país devastado por um ditador louco, erudito e sanguinário, como o doutor Francia nos romances de Augusto Roa Bastos. Ela adverte, com muita razão, que na literatura é que começa a ser documentada a condição da mulher e as lutas, hoje disseminadas por todo o continente, por sua emancipação, um processo lento e terrível que está em marcha e com alguns sucessos obtidos.

O problema da droga ocupa um bom número de páginas e com razão, pois os cartéis acumularam fortunas e causaram uma violência infernal, sobretudo na Colômbia e no México. Na Colômbia, esses cartéis subvencionaram meio século de guerrilhas e seus massacres espantosos, e no México a violência alcançou um nível de horror ilustrado nas “crônicas” do jornalismo, gênero ao qual Michi dedica, com muita exatidão, um bom número de páginas.

Desinteresse

Ela lamenta que, depois do famoso e já defunto “boom” da literatura latino-americana, a Europa tenha se desinteressado dela, especialmente quando se pensa nos anos 60 e 70. Não deveria. Já estamos ali, também na Europa, e não somos nada exóticos, nosso valor não é em função do local de onde viemos, mas em função do que fazemos, nem mais e nem menos do que os franceses, os ingleses, os italianos, os alemães e outros europeus. Não era isso que queríamos?

23 de março de 2021

CRESCEM OS ATOS DE CRIMES DE ÓDIO E RACISTAS CONTRA ASIÁTICOS!

Há um aumento de atos de racismo e violência contra asiáticos em todo o mundo.

Mas foi preciso o assassinato de oito pessoas, sendo seis mulheres asiáticas, para que a grande mídia americana se posicionasse e passasse a cobrir a escalada de casos de violência física e verbal diários contra asiáticos, em geral direcionados a idosos e mulheres, alvos mais “fáceis” para aqueles que costumam cometer esse tipo de violência.

Mesmo assim, a imprensa tem se negado a designar os assassinatos em Atlanta como “crime de ódio” e pouco destaque se deu à ida de Biden e Harris a Atlanta para encontrar com líderes e ativistas asiáticos.

Segundo a Stop AAPI Hate (em tradução literal “Pare com ódio contra asiático-americanos e habitantes das ilhas do Pacífico”), organização criada em março do ano passado, já são mais de 3,8 mil casos de violência contra a comunidade AAPI. No Brasil, eram cerca de 200 em maio de 2020, segundo o Instituto Sociocultural Brasil-China e, hoje, já ultrapassam mil.

Como as comunidades asiáticas não são homogêneas, são consideradas “estatisticamente irrelevantes” e somando-se o mito da “minoria modelo”, em que se espera que os asiáticos se comportem de forma dócil e quieta, as comunidades asiáticas se tornam menos organizadas, menos vocais e recebem cobertura quase nula da imprensa.

Um exemplo local é o da jornalista Thaís Oyama, que escreveu o livro “Tormenta”, sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro. Ao comentar sobre o livro, o presidente Bolsonaro disse: “Esse é o livro dessa japonesa que não sei o que faz no Brasil” e “No Japão ia morrer de fome”. Thaís Oyama é brasileira. O caso não teve repercussão.

O aumento de casos de crimes de ódio e racismo contra asiáticos não elimina ou deve ser comparado ao racismo estrutural existente contra outras minorias. Porém, o racismo contra asiáticos não é novidade no Brasil ou em qualquer lugar. Geralmente travestido de brincadeira ou fetiche (a hipersexualização, fetichização e objetificação de mulheres asiáticas esteve presente nos assassinatos em Atlanta, em que o assassino culpa seu vício em sexo e fetiche por mulheres asiáticas por motivar a “eliminação da tentação”) e aliado ao mito da “minoria modelo”, faz com que seja constantemente minimizado e relativizado.

Desde fevereiro de 2020, há toda sorte de agressão e ataques registrados -sejam com faca, ácido, fogo, socos e chutes- contra pessoas asiáticas nos EUA, tendo os seis assassinatos por arma de fogo em Atlanta se juntado a outros dois de idosos de 84 e 75 anos que não resistiram aos ferimentos das agressões sofridas na Califórnia.

Somando-se à retórica racista, muitas vezes impulsionada pelos governantes, que faz de todos asiáticos bodes expiatórios, culpando-os pelo COVID-19, não é de se espantar que esses crimes de ódio estejam aumentando e que, na medida em que a pandemia vai piorando no Brasil, casos extremos também se tornem uma realidade aqui.

22 de março de 2021

LIBERAIS, NEOLIBERAIS, POLÍTICA E MERCADO!

(Christian Edward Cyril Lynch, autor de ‘Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 21) O tema do neoliberalismo está em voga desde a década de 1980, quando a crise da social-democracia europeia trouxe a crítica do planejamento econômico pelo Estado e a defesa do liberalismo econômico como fórmula capaz de superar a estagnação.

Nos últimos dez anos, seu prestígio cresceu e seus partidários aderiram à chamada “nova direita”, parte da qual viria a apoiar o governo Bolsonaro. O debate público sobre o conceito de liberalismo é intenso. Hoje, o tema guarda grande atualidade, tendo em vista o referido endosso de Paulo Guedes e de maioria dos neoliberais brasileiros às tendências conservadoras e autoritárias de Jair Bolsonaro.

Entre os pretendentes dessa ideologia política, a querela gira em torno de um liberalismo democrático inimigo do autoritarismo político (a vertente liberal democrata), que mantém relações pragmáticas com a economia, e um outro, para quem a liberdade política depende essencialmente da econômica, ponto de vista segundo o qual o verdadeiro autoritarismo seria a intervenção do Estado na economia (a vertente neoliberal).

Os neoliberais se apresentam como “liberais”, ou como sendo os “autênticos liberais”, alinhando-se, todavia, a pautas reconhecidamente conservadoras em sua dimensão política. Tentam, assim, conciliar em abstrato a distinção histórica entre conservadorismo e liberalismo, sem deixar de aderir a uma coalizão de vocação autoritária, que conta com conservadores reacionários (olavistas) e estatistas (militares).

Eles enfrentam sempre a oposição de outros “liberais”, que se pretendem progressistas e negam a compatibilidade entre liberalismo e conservadorismo ou autoritarismo político.

Vários estudiosos conferiram grande importância à questão das chamadas famílias, tradições ou linhagens do pensamento político brasileiro. Esse tipo de classificação tem entre suas vantagens a capacidade de servir de anteparo ao presentismo: a tentação de ver os problemas do momento atual como puramente inéditos. Assim, podemos revisitar a tradição do liberalismo brasileiro, buscando suas regularidades no tempo.

Desde o começo do século 19, os liberais associaram o suposto atraso brasileiro a um problema de origem. A baixa capacidade de os portugueses estabelecerem as bases de uma civilização moderna nos trópicos, a influência da Igreja Católica, a concentração da grande propriedade agrária e a escravidão teriam produzido uma sociedade civicamente egoísta, indiferente à ciência, dependente de um Estado autoritário e patrimonial, avessa ao indivíduo autônomo e incapaz de cooperação —como descrito, por exemplo, por Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” (1958).

Para além do transplante de instituições anglo-saxãs, o programa liberal inspirado por Stuart Mill tem se pautado por políticas públicas voltadas para a abertura comercial e cultural, para a descentralização político-administrativa, desregulação econômica e redução da burocracia.

Do ponto de vista político, o liberalismo brasileiro de tendência democrática manifesta um certo centrismo. O mais destacado intelectual liberal brasileiro do período pós-independência, Evaristo da Veiga, já celebrava a moderação como a virtude política por excelência. Essa postura confere aos liberais um dinamismo de se deslocar para a direita ou para a esquerda, conforme percebam a ameaça autoritária vindo de um dos lados opostos, socialista ou conservador.

No governo, o liberalismo democrático brasileiro tende a ser mais cauteloso, hesitando a respeito da conveniência e do ritmo da expansão dos direitos sociais e políticos. Acreditando que a colonização teria conformado uma sociedade inclinada a soluções políticas messiânicas, populistas e estatistas, os liberais acabam por não confiar no “bom senso” das massas. Daí a tendência a um excesso de moderação que conduz ao elitismo, ou seja, a circunscrever o centro decisório a uma minoria homogênea de cidadãos em termos de renda e cultura.

Desde que a democratização começou a surgir no horizonte, a partir da Campanha Abolicionista com Joaquim Nabuco e, depois, com a Campanha Civilista de Rui Barbosa, a classe média entrou no radar dos liberais. Como segmento social, exprimiria as qualidades da sociedade civil, por sua sensibilidade a temas como participação política, liberdade, mérito e moralidade.

Entretanto, por vezes, os liberais democráticos se perceberam em um clima de polarização entre a esquerda e a direita radicais que reduzia o seu espaço de atuação em defesa das liberdades públicas e inclinava o país para o autoritarismo. A sociedade brasileira parecia não se adequar à pedagogia dos valores cosmopolitas liberais.

Inoculada nas massas, a hostilidade a esses valores inclinaram-nas à tutela de um líder carismático; daí a fortuna de um conceito controverso como o de “populismo” tanto entre liberais quanto entre socialistas cosmopolitas. Tal diagnóstico leva muitos liberais democráticos a periodicamente advogarem mecanismos institucionais como o parlamentarismo e o judiciarismo.

Este último é uma velha aspiração que data da queda da Monarquia e encontrou seus grandes defensores em Rui Barbosa e Pedro Lessa, para quem a República transferira para o Supremo Tribunal a função arbitral exercida antes pelo Poder Moderador.

Somente na Nova República, todavia, com a retirada de cena do Exército, o judiciarismo se tornou hegemônico, auxiliado pelo desenho institucional da Constituição de 1988. No começo do século 21, voltou a ser apresentado como um remédio para as tendências corruptoras e oligárquicas da representação política.

Em épocas de polarização e crise aguda do Estado de Direito, quando as instituições constitucionais parecem indiferentes ou hostis à cultura do liberalismo, nasceu frequentemente entre os liberais democratas brasileiros a tentação do golpismo.

Desde 1889, o liberalismo nacional tendeu a encarar esse recurso como legítimo em momentos críticos para salvar a liberdade contra seus inimigos percebidos como autoritários. Quem melhor representou essa ambiguidade foi o próprio Rui Barbosa. O temor de um eventual reinado reacionário da princesa Isabel o fez embarcar no golpe militar e a se tornar ministro da ditadura republicana, interpretada por ele como um autoritarismo transitório que preparava um Estado de Direito mais sólido, conforme o figurino estadunidense.

Depois de combater o militarismo dos presidentes Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca, Rui voltou a cogitar a intervenção do Exército no começo dos anos 1920, quando lhe pareceu que a República marchava de novo para o autoritarismo.

O golpe de 1964 também foi apoiado por liberais democratas, a exemplo de Afonso Arinos e Carlos Lacerda, como um breve período de exceção destinado a afastar o risco de ameaça comunista. Na prática, em todas essas ocasiões, os liberais brasileiros só participaram de uma “jornada de otários”, que precipitou o advento de um autoritarismo de direita que terminou por voltar-se contra eles e persegui-los como subversivos.

Embora se imagine sempre uma correlação automática entre liberalismo econômico e político, essa relação, ao longo dos últimos três séculos, é mais complexa e nem sempre de fácil distinção. Se a liberdade de mercado é parte das liberdades modernas, o foco sobre a liberdade política, aquela plasmada na forma dos direitos e das garantias constitucionais, distingue o liberalismo democrático daquele que via no livre mercado o objetivo principal de uma ordem liberal.

A esta última vertente poderíamos chamar de libertarianismo econômico, ou neoliberalismo. Surgido pelas mãos de Herbert Spencer por volta de 1880 como reação ao processo de democratização política, impulsionado pelo socialismo e pelo alargamento do sufrágio, o neoliberalismo consiste em um híbrido de liberalismo e conservadorismo: ao mesmo tempo em que apresenta características liberais, como o individualismo, eleva o mercado à condição de gerador e ordenador da vida social, intangível porque produto de forças extra-humanas —uma suposta “ordem espontânea” do universo social fruto da interação não planificada entre os indivíduos.

Os neoliberais apresentam seus argumentos em uma roupagem supostamente “técnica” ou “científica”, defendendo suas posições como as únicas “realistas”, não capturadas pela tentação idealista e normativa da mentalidade planificadora e maximizadora do Estado que teria marcado as ideologias democráticas desde o século 18, como se notaria tanto nos liberais quanto nos socialistas.

Na ideologia neoliberal, a função do Estado é essencialmente a preservação das condições de competição dos indivíduos no mercado. A justiça social é produto das leis do mercado, cujo livre funcionamento por parte de empresários “empreendedores” e criativos, em um contexto de população tecnicamente educada, geraria de forma mais ou menos automática riqueza pública e emprego, através de sucessivos ganhos de produtividade.

Para os neoliberais, o Brasil estaria sempre patinando entre a barbárie e a estupidez, carecendo constantemente de abertura comercial e financeira para o mercado exterior. Aqui, empreender teria muito mais obstáculos a enfrentar devido à ausência de uma cultura moderna, ou seja, capitalista. Em contraste, os países do Atlântico Norte costumam ser referenciados como modelares.

O cosmopolitismo neoliberal demonstra, coerentemente, grande apreço a organismos internacionais —mas não os de caráter político, como a Liga das Nações ou a ONU, enaltecidas pelos liberais democratas, e sim os financeiros, como o FMI, bancos e empresas multinacionais.

E se é verdade que ambas as tradições liberais podem ter uma aproximação instrumental com o autoritarismo, no caso dos neoliberais essa dimensão é muito mais acentuada. De todo esse diagnóstico negativo dos libertários econômicos sobre a situação do Brasil resultava um descompromisso ainda maior com a democracia.

A necessidade de um choque civilizador de capitalismo vindo de fora justificava métodos autoritários. A marca acentuadamente demofóbica já estava presente nos fundadores libertários da República, como os irmãos Alberto e Campos Sales, que ajudaram a urdir o golpe de 1889 contra os liberais e defendiam a toda força o presidencialismo, na crença de que só um governo forte e enérgico poderia enfrentar o “socialismo”.

No século 20, Eugênio Gudin e Roberto Campos demonstraram idêntico descaso com o regime democrático. Diziam que as constituições de 1946 e 1988, por não corresponderem às suas doutrinas, eram produtos da ignorância e da utopia. Como nenhuma delas resolvia os problemas do país, duravam pouco e mereciam, por isso, o desprezo geral.

Muitas tensões marcaram a convivência dos dois liberalismos, o democrático e o neoliberal, em nosso país. Para Rui Barbosa, o presidente Campos Sales era o grande artífice do conservadorismo da Primeira República. Ele acusava Sales de autoritário, oligarca e corruptor, assim como via na política neoliberal de seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, uma cortina de fumaça doutrinária destinada a favorecer os interesses internacionais. Já Sales e Murtinho chamavam Rui de subversivo e tendente ao socialismo, criticando sua política econômica.

Quando o regime militar impôs a Constituição de 1967, o liberal democrata Afonso Arinos também se queixou de que a nova Carta continha “excessivo liberalismo econômico em contraste com o autoritarismo político”. Em defesa dela, os neoliberais Gudin e Roberto Campos justificaram o fortalecimento do Executivo pela necessidade de passar as reformas modernizadoras de corte libertário.

Roberto Campos também se estranhou publicamente com Carlos Lacerda, quando este atacou sua política neoliberal como própria de tecnocratas e defendeu uma abordagem pragmática da economia. No livro “Brasil entre a Verdade e a Mentira” (1965), Lacerda invocou em seu apoio a autoridade de Rui Barbosa, cuja obra defendeu contra Murtinho e Campos.

Apoiador de primeira hora do golpe militar, Lacerda acabou preso após o AI-5 e teve seus direitos políticos cassados. Também para ele, a adesão ao golpismo resultou numa “jornada de otários”. A história se repetiu recentemente, com a adesão dos liberais democratas ao lavajatismo como método de deposição da esquerda. Ao invés de chegarem ao reino da liberdade republicana, esquentaram a cama para Jair Bolsonaro se deitar.

Depois de 1990, os liberais democratas recuperariam o discurso do liberalismo econômico, voltando a apresentar um ponto de contato com os neoliberais. Nem por isso se tornariam a mesma coisa. Em suas memórias, “A Lanterna na Popa” (1994), Roberto Campos lamentou as brigas com Arinos e Lacerda: “Foi tudo um grande desencontro…”. Ele estava errado. Embora aparentados do ponto de vista “macro ideológico”, o liberalismo democrático e o neoliberalismo, como já se percebia então, são ideologias distintas.

O liberalismo democrático, que representa o tronco principal da linhagem, na segunda metade do século 19 já havia, por meio de Stuart Mill, renunciado a aspectos secundários da doutrina, como o voto censitário e o liberalismo econômico, vinculados ao governo oligárquico e plutocrático.

O neoliberalismo, ao contrário, surgiu como uma reação conservadora à adaptação do liberalismo ao ambiente democrático, destinado a preservar a dimensão oligárquica e plutocrática do Estado de Direito. Onde os liberais viam democracia, os neoliberais passaram a ver socialismo. Longe de preservar o liberalismo oitocentista, os neoliberais deliberadamente o reformularam, modificando seus fundamentos, para se concentrar, quase que exclusivamente, na defesa do Estado mínimo.

O atual contencioso em torno do autoritarismo conservador de Bolsonaro demonstra com clareza a distinção de neoliberais e liberais democratas. A adesão de Paulo Guedes e seus admiradores ao bolsonarismo representa somente a manifestação, nos dias de hoje, do genótipo característico dos neoliberais brasileiros, de natureza plutocrática e oligárquica.

Basta lembrar que no passado apoiaram as ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, a oligárquica República Velha e o regime militar de 1964 durante pelo menos dez anos. Como diz o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol…

19 de março de 2021

HISTORIADOR NARRA ALIANÇA NAZI-SOVIÉTICA!

(Paulo Nogueira – O Estado de S. Paulo, 14) Numa era de tal polarização que cada lado só vê o que quer ver (geralmente, miragens), de cancelamentos e fake news, uma vacina com eficácia de 100 por cento é ler historiografia. Pois, por incrível que pareça, a história não começou ontem, e nem mesmo com o WhatsApp.

O Pacto do Diabo, de Roger Moorhouse, passa a pente fino o tratado de não agressão de 23 de agosto de 1939 entre a URSS e a Alemanha nazista. Foi assinado em Moscou, com a presença de Stalin e dos ministros das Relações Exteriores dos respectivos países, Molotov e Ribbentrop. O pacto embasbacou tanto a direita quanto a esquerda, já que fascismo e comunismo eram teoricamente antípodas ideológicas, e não farinha do mesmo saco totalitário. Como Stalin rosnou, ao brindar à saúde de Hitler: “Temos jogado baldes de m* na cabeça uns dos outros, e nossos publicitários precisam convencer o povo que tudo foi esquecido e perdoado”. Nove dias depois a Wehrmacht invadiu a metade oeste da Polônia, iniciando a 2ª Guerra Mundial, e o Exército Vermelho anexou irmãmente a outra metade.

Inúmeros comunistas ocidentais, enojados com o mico, deixaram os PCs, no maior êxodo partidário antes da invasão soviética Hungria, em 1956, e do esmagamento da Primavera de Praga, em 1968. Houve, claro, muitos que só deram um sorriso amarelo, como o historiador Eric Hobsbawn. George Bernard Shaw derreteu-se: “Hitler está agora sob a poderosa influência de Stalin, que ama a paz”. Já George Orwell chutou o balde: “Esse pacto minou não só o básico apelo ‘antifascista’ do comunismo, mas também sua queixa contra o status quo. E os comunistas, que no passado amaldiçoaram seus governos burgueses por apaziguarem Hitler”. Em 1984, um mudança oportunista de alianças obriga o herói Winston Smith a fazer horas extras para reescrever os jornais e fingir que aquela amizade sempre existiu. Enquanto isso, em Munique, o jardim da sede do Partido Nacional-Socialista ficou juncado de distintivos jogados por nazistas não menos nauseados.

Para Hitler, o acordo permitia atacar tranquilamente a Europa Ocidental, sem se preocupar com ameaças do leste – e recebendo “commodities” russas (cereais, metais, petróleo) a preços de Black Friday. Para Stalin, as vantagens eram a expansão de influência, a transmissão da tecnologia bélica alemã e a regeneração do Exército Vermelho, mutilado pelos expurgos promovidos pelo próprio ditador. Alguns presos durante expurgos stalinistas, foram direto do Gulag para os campos de concentração hitlerianos – caso da escritora Margarete Buber-Neumann.

E havia o “protocolo secreto”, que Moscou não admitiu até 1989 (e que Putin considerou “imoral, mas compreensível”). Essas cláusulas ditavam não apenas a partilha da Polônia, mas também que os estados bálticos, então independentes (Finlândia, Letônia, Lituânia e Estônia), mais partes da Romênia, cairiam no colinho do Kremlin.

Alguns articulistas cornetaram que Moorhouse dá mais espaço às atrocidades comunistas que às nazistas. Bem, há no livro carnificinas suficientes – e soa plausível a alegação de que a barbárie hitleriana é muito mais conhecida que a stalinista. Quem nunca ouviu falar de Auschwitz, mas quantos sabem de Kolimá? E os retratos individuais de Pacto do Diabo são magistrais, como os de Ribbentrop e Molotov, dois bajuladores do quilométrico cordão de puxa-sacos dos autocratas de bigodão e bigodinho.

Entre as numerosas ignomínias mútuas avulta o massacre na floresta de Katyn, em maio de 1941, quando 22 mil poloneses (entre prisioneiros de guerra, professores, padres e intelectuais) foram fuzilados e lançados a uma mefistofélica vala comum. Alemães e soviéticos empurraram a batata quente de um para o outro. Hoje, a responsabilidade está estabelecida: a ordem foi de Lavrenti Beria, chefe da polícia secreta de Stalin.

O pacto legou outra consequência duradoura, de ordem conceitual: a ideia da correspondência essencial entre comunismo e fascismo. Sem falar na afinidade totalitária (já assinalada por Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo), há os sistemáticos crimes contra a humanidade (como definiu memoravelmente André Frossard, “quando se mata alguém sob o pretexto de que ele nasceu”).

Estima-se que houve 96 milhões de mortes na URSS, China, Camboja, Coreia do Norte, Vietnã e Europa Oriental. Os nazistas mataram menos (25 milhões), mas é verdade que os comunistas começaram mais cedo e duraram mais. A diferença está no anátema das vítimas dos dois regimes: um, baseado na “raça”; o outro, na “classe social”. Sem querer passar um pano infame na infâmia, talvez subsista um – quem sabe bizantino – contraste, como notou o saudoso Tony Judt. Ou seja, aquele entre um regime que exterminou pessoas na busca desumana de um objetivo arbitrário, e outro cujo objetivo foi o próprio extermínio.

17 de março de 2021

EXCESSO DE REGRAS!

(Bernard Appy – O Estado de S. Paulo, 16) Há um razoável consenso de que a situação fiscal do Brasil é preocupante. De um lado, a dívida pública do País cresceu muito nos últimos anos, aproximando-se de 90% do PIB. De outro lado, as finanças da União e de muitos Estados e municípios encontram-se fragilizadas, resultando em um nível extremamente baixo de investimentos e em dificuldades de pagamento de despesas obrigatórias.

Há vários motivos para termos chegado a essa situação, mas certamente isso não ocorreu por falta de regras fiscais, ou seja, regras destinadas a conter a expansão excessiva de gastos públicos e a sinalizar para a sustentabilidade da dívida. Segundo levantamento da Instituição Fiscal Independente (de janeiro de 2018), o Brasil possuía 11 regras fiscais, sendo uma aplicável apenas à União (teto dos gastos) e as demais a todos os entes da Federação (como a Regra de Ouro, a exigência de metas de resultado primário, etc.).

A PEC Emergencial, aprovada na semana passada, introduziu pelo menos mais duas regras fiscais: a) a vedação à concessão de créditos ou garantias pela União a outro ente da Federação, caso as despesas correntes desse ente excedam a 95% das receitas correntes e não seja implementada uma série de medidas de contenção de despesas (sobretudo de pessoal); e b) a definição de que lei complementar introduzirá regras dispondo sobre a sustentabilidade da dívida pública e mecanismos de ajuste caso a trajetória da dívida desvie de parâmetro a ser estabelecido (sendo que a Lei de Responsabilidade Fiscal já prevê limites de endividamento).

Adicionalmente, a PEC Emergencial introduziu também uma regra visando à redução de incentivos e benefícios fiscais da União (que também pode ser entendida como uma regra fiscal), sinalizando a redução de seu montante a 2% do PIB em oito anos. Não se deve, no entanto, esperar muito da aplicação desse dispositivo.

Segundo estimativas da Receita Federal, os benefícios fiscais federais devem alcançar 4% do PIB em 2021. No entanto, os benefícios excepcionados da redução prevista na PEC correspondem a, pelo menos, 1,8% do PIB. Segundo minha leitura do texto da PEC Emergencial, apenas os benefícios não excepcionados (2,2% do PIB, no máximo) teriam de ser reduzidos de forma a caber no limite de 2% do PIB. Mesmo se a leitura for outra, ou seja, de que todos os benefícios têm de caber no limite de 2% do PIB, a PEC obriga apenas o envio de projeto de lei de redução dos incentivos pelo Poder Executivo, mas não sua aprovação.

Por fim, a PEC Emergencial introduz ainda outras medidas de cunho fiscal, como a definição de critério para o acionamento dos mecanismos de ajuste previstos na Emenda Constitucional 95 (teto dos gastos).

Ainda que bem-intencionadas, as novas regras introduzidas pela PEC Emergencial provavelmente contribuirão muito pouco para a melhoria da gestão das finanças públicas do País. O que o Brasil precisa não é de mais regras fiscais, mas sim de parâmetros claros para a aplicação das já existentes e, sobretudo, de regras de melhor qualidade.

Idealmente, boas regras fiscais deveriam garantir a solvência do setor público no longo prazo e, ao mesmo tempo, permitir uma gestão anticíclica da política fiscal, ou seja, estimular a poupança do setor público em tempos de bonança, de forma a permitir gastos mais elevados em períodos de contração econômica.

No Brasil, apenas a regra do teto dos gastos tem um caráter moderadamente anticíclico; todas as demais regras são pró-cíclicas. Em particular, nenhuma regra atual obriga Estados e municípios a pouparem mais em períodos de forte crescimento da receita. Ao contrário, mecanismos de vinculação de receita a despesas e a destinação de parte da receita com royalties de petróleo a Estados e municípios acentuam ainda mais o caráter pró-cíclico das finanças subnacionais.

Se queremos melhorar a qualidade da política fiscal brasileira, não precisamos de mais regras. O que precisamos é de regras mais consistentes e de mecanismos que garantam sua aplicação.

16 de março de 2021

GUERRA NA SÍRIA COMPLETA 10 ANOS E DESTRÓI PERSPECTIVAS DE UMA GERAÇÃO!

(Folha de S.Paulo, 14) O estopim para a guerra da Síria foi uma pichação. Nos muros de um colégio, estudantes escreveram “queremos a queda do regime” e “sua hora vai chegar, doutor”. O doutor era Bashar Al-Assad, ditador do país, e a resposta do governo foi prender e torturar cerca de 15 menores de idade.

Naquele março de 2011, época de Primavera Árabe, a prisão dos jovens gerou uma onda de protestos que clamava por mais direitos e menos autoritarismo. À medida que as manifestações foram se espalhando, a repressão ficava mais brutal. O governo sitiou cidades onde os atos eram mais fortes, e, nos meses seguintes, militares deixaram o Exército para formar milícias contra o governo.

Quinze de março, considerado o dia do início dos protestos, marca o aniversário do conflito. As estimativas de mortos variam. O Observatório Sírio de Direitos Humanos confirmou a morte de ao menos 380 mil pessoas, mas calcula que o número pode ser ainda maior e chegar a quase 600 mil.

Ainda que a situação tenha sido considerada uma guerra civil em 2012, o conflito mexeu com a comunidade internacional. Ao lado de Assad, ficaram Rússia e Irã. Com os opositores, que se dividem em diversos grupos e alimentam disputas internas, Arábia Saudita, Qatar e Turquia.

Para complicar, a partir de 2013 a facção terrorista Estado Islâmico (EI) conseguiu emergir e conquistar uma grande faixa do território sírio, o que atraiu potências do Ocidente para o conflito: uma coalizão liderada pelos EUA fez ataques massivos e apoiou rebeldes, derrotando o grupo jihadista no país.

Assad quase perdeu a guerra, mas a Rússia impediu que sua hora chegasse ao combater os opositores. Hoje, o ditador controla cerca de 60% do território. O conflito esfriou, mas não acabou.

“Nos últimos três anos, houve uma estabilização, mas o país está longe de parar em pé e não tem nem sinal de autoridade efetiva”, avalia Karabekir Akkoyunlu, professor de Relações Internacionais da FGV. “A Síria deixou de ser uma tragédia aguda para ser uma tragédia crônica.”

David Kaelin, coordenador do programa de água e habitação do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) na Síria, afirma que a situação está mais calma no centro e no sul do país, mas os combates seguem ocorrendo no norte. Os desafios humanitários, diz ele, continuam enormes.

Engenheiro, Kaelin trabalha na reconstrução de escolas e redes de água e energia. Ele conta que a infraestrutura do país sofreu com falta de manutenção mesmo onde não houve bombardeios e, “se for tratada assim por mais anos, chegará a um ponto em que não teremos como recuperá-la”.

A falta de profissionais especializados dificulta a reconstrução. Muitos deles deixaram o país, e a guerra atrapalhou a formação de uma geração. Os garotos que picharam o muro em 2011 tinham entre 10 e 15 anos. Os jovens que estão hoje na faixa dos 20 anos viveram seus anos de estudo em meio ao conflito.

“É comum que os refugiados já tenham sido forçados a mudar de lugar quatro ou cinco vezes”, comenta Joel Ghazi, coordenador de operações da ONG Médicos Sem Fronteiras para o noroeste da Síria. “E sem poder estudar direito, como estes jovens vão poder reconstruir o país no futuro?”

A situação também pouco os motiva a ficar. Kaelin, da Cruz Vermelha, diz que conseguir um trabalho em empresas locais é muito difícil, e os engenheiros recém-formados com quem trabalhou querem imigrar.

Levantamento feito pelo instituto Ipsos ouviu 1.400 jovens na Síria, no Líbano e na Alemanha. Deles, 62% tiveram de deixar suas casas devido à guerra, 55% tiveram a formação escolar interrompida e 42% perderam um familiar ou amigo próximo.

Anas Obaid, 32, deixou o país após ser capturado pelo EI e veio morar no Brasil em 2015. Jornalista, trabalhou em São Paulo lavando pratos e, depois, fabricando e vendendo perfumes. A pandemia de Covid-19 atrapalhou seus negócios, mas, para ele, tudo parece mais do mesmo. “É como se estivéssemos há dez anos em quarentena. Sempre há perigo, risco de perder o trabalho e falta de dinheiro”, afirma.

Obaid, que trabalhou em um campo de refugiados no Líbano, usa o tempo de confinamento no Brasil para estudar e escrever um livro sobre sua experiência com a guerra e o refúgio. “Tenho orgulho do nosso povo. Temos o pensamento de não deixar o passado atrapalhar nosso presente. Os jovens sírios chegam com muita vontade de trabalhar e de reconstruir a vida.”

Para os jovens ouvidos pela pesquisa da Ipsos, o maior desejo é o de estabilidade, opção escolhida por 65% dos entrevistados. Planos como formar uma família e voltar a estudar são bem menos citados.

Segundo a ONU, há 6,6 milhões de refugiados sírios espalhados em 130 países, embora a maioria tenha ido para nações vizinhas. Além disso, há mais 6,7 milhões de pessoas deslocadas dentro do próprio país.

De acordo com o Acnur, órgão da ONU para refugiados, cerca de 70% dos que deixam a Síria vivem na pobreza, e há alto risco de que descambem para o trabalho infantil. O casamento de meninas menores de 18 anos também tem crescido. A estimativa da agência é de que sejam necessários US$ 5,8 bilhões para cobrir as carências mínimas dos refugiados em 2021, somando os gastos das organizações que lá atuam.

Em 2020, no entanto, apenas pouco mais da metade do orçamento projetado foi atingido.

“Nessa situação, priorizam-se as coisas mais básicas, como saúde, alimentação e abrigo, e as ações para educação e geração de renda ficam para trás”, diz Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Acnur no Brasil.

Com as dificuldades de viver como refugiado, muitos tentam voltar para casa, apesar dos riscos. Os pais de Obaid fizeram esse caminho e reencontraram a casa da família, nos arredores de Damasco, destruída.

“Meu pai ficou 40 anos melhorando a casa —e perdeu tudo. Roubaram até o piso. Agora, aos 74 anos, precisa recomeçar. Eles abriram uma loja e estão se virando. Mas meu pai mudou totalmente. Está sempre incomodado, preocupado, com medo de perder tudo de novo”, conta. “Ainda tem um conflito aqui ou ali, alguns morrem, alguns são torturados.”

No último ano, a guerra na Síria teve poucos movimentos significativos além de embates no norte do país, que cessaram após um acordo entre Turquia e Rússia em março de 2020, dias antes de a pandemia paralisar o mundo. Não há números confiáveis, pois falta acesso a testes e a atendimento médico, mas agentes em campo relatam que houve piora na situação do coronavírus no país.

“Se uma família fica doente, muitas vezes só há dinheiro para comprar remédios para uma pessoa, e os outros ficam sem. A inflação alta dificulta as coisas”, aponta Ghazi, da ONG Médicos Sem Fronteiras.

A Síria enfrentou, nos últimos meses, um agravamento da crise econômica. Na sexta (12), US$ 1 comprava 4.000 libras sírias no mercado paralelo, segundo a agência de notícias Reuters. Em junho de 2020, essa cotação era de 1 para 2.500. A crise no vizinho Líbano complicou ainda mais esse panorama. Com a desvalorização, vieram inflação e falta de produtos, incluindo pão e combustível.

O fim da crise é considerado distante, e, para tal, especialistas apontam que os países envolvidos na guerra precisam mudar a forma de agir. “As potências regionais têm a chave para decidir o futuro da Síria, mas não vejo nenhuma urgência por parte delas”, diz o professor Akkoyunlu. Ele avalia que as negociações em torno do acordo nuclear entre Irã e EUA, agora sob a Presidência de Joe Biden, podem incluir alguma mudança modesta de posição de Teerã sobre Damasco.

Um cenário provável é que a Síria se torne um país instável por décadas, como Afeganistão e Iraque, cujos conflitos internos não cessaram mesmo após diversas intervenções estrangeiras. E as demandas dos protestos de 2011, que incluíam menos corrupção e melhores serviços públicos, nunca foram atendidas.

15 de março de 2021

TANGOS!

(Roberto Rodrigues, coordenador do centro de agronegócios da Fundação Getúlio Vargas – O Estado de S.Paulo, 14)

“Si arrastré por este mundo
La verguenza de haver sido
Y el dolor de ya no ser…”

Começa com essa triste estrofe o belíssimo tango Cuesta Abajo, dos célebres Carlos Gardel e Alfredo Le Pera, ambos responsáveis por algumas das mais famosas melodias do cancioneiro portenho. Le Pera foi letrista e Gardel, além de compositor, foi o maior intérprete de tangos de todos os tempos. Sobre a origem de ambos pesam muitas dúvidas.

Há, por exemplo, uma disputa acirrada quanto ao local e data de nascimento de Gardel. Uma versão é de que teria nascido em Toulouse-França, em dezembro de 1890. Outra afirma que a terra natal é Tacuarembó, no Uruguai, na mesma data. Quando provocado a respeito, ele mesmo dizia, esquivo, que tinha nascido em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade.

Já Alfredo Le Pera, que morreu junto com Gardel em acidente aéreo em Medellin-Colômbia em 1935, era paulistano do Bixiga, onde nasceu em 1900, filho de imigrantes italianos. Ainda muito menino, os pais se mudaram para o Uruguai e mais tarde para Buenos Aires.

Jornalista respeitado, escrevia sobre teatro e acabou se aproximando de círculos artísticos. Em 1934 mudou-se para Nova York para trabalhar com Gardel, que havia conhecido em filmagens em Buenos Aires, alguns anos antes. Juntos, criaram tangos clássicos espetaculares, como Cuesta Abajo, El dia que me queiras, Por una cabeza, Silêncio, Mi Buenos Aires querido, Golondrina, Soledad e outras maravilhas que iluminaram os sonhos de gerações de tangueiros apaixonados.

Há quem se engane quando pensa que esse ritmo, mistura de polca europeia, havaneira cubana, candombé uruguaio e de milonga espanhola só é apreciado por antigas gerações. Há movimentos contemporâneos que reavivam o tango, inclusive porque as letras são atuais. Por esse motivo, vale voltar à primeira estrofe de Cuesta Abajo – cuja livre tradução é “se arrastou por esse mundo a vergonha de ter sido e a dor de não ser mais”, e parece um profundo lamento de alguém que se envergonhava por não ter feito o que deveria quando tinha condições para isso e que agora sofria por não poder mais fazer.

Esse lamento deve ser ouvido pelas lideranças globais e nacionais. Todas as que hoje exercem cargos de destaque, não importa onde – na sociedade civil, nos Poderes constituídos, na academia –, precisam fazer o que deve ser feito enquanto podem, para não se arrependerem depois de sua omissão.

Há temas pendentes a este respeito em todas as frentes. O debate deve ser fomentado democraticamente para que decisões sejam tomadas.

A reforma política talvez seja a primeira barreira. Deve acabar a reeleição? Mandatos únicos coincidentes de 5 anos? Voto distrital misto? Redução do número de partidos e das cadeiras nos Legislativos?

A reforma do Estado, separando com clareza o que é governo e o que é Estado? Toda a agenda deve ser discutida porque é de interesse da nação. Não se trata de crítica ao funcionalismo público. Fui secretário de Agricultura em São Paulo e ministro no Brasil e conheci funcionários com grandes qualificações, competentes, dedicados, patriotas, ganhando muito menos do que mereciam e que seriam admirados e respeitados em qualquer empresa privada. O foco é outro: diminuir os gastos públicos.

Privatização é necessidade iminente na mesma direção? Então, tem de ser decidido o que privatizar em qualquer nível, e depressa.

A reforma tributária deve ser considerada em seguida e, felizmente, nosso Parlamento vai se ocupar dessa duríssima tarefa muito em breve.

Há uma questão crucial que efetivamente pode garantir o futuro do País: investimentos maciços em educação, ciência e tecnologia. Não haverá bem-estar social e muito menos riqueza em uma nação que despreze tais agendas. É hora de fazer o que deve ser feito por essas lideranças, para que os pósteros não lhes apontem o dedo acusador de assassinato do futuro.

Já devia ter sido feito no século 20, e não foi. Temos de fazer agora, e acabar com a corrupção ao custo que for, para não ouvirmos neste século 21 a trágica letra de Cambalache, de Discepolo:

“Siglo veinte, cambalache,
Problemático y febril…
El que no llora no mama
Y el que no afana es un gil.”

12 de março de 2021

ENQUANTO ISSO NO CHILE…!

(O Estado de S. Paulo, 10) A rápida vacinação contra covid-19 transformou o Chile aos olhos de investidores e analistas: de patinho feio, na virada do ano, para a estrela da América Latina com perspectiva cada vez mais animadora de crescimento econômico em 2021.

O governo chileno foi agressivo ao se antecipar e fechar contratos de compras de imunizantes contra o coronavírus em quantidades suficientes de vários laboratórios, além de eficiente na logística para garantir uma rápida vacinação.

Resultado: mais de 21% da população já recebeu a primeira dose da vacina, o que coloca o país andino entre os dez que mais vacinaram no mundo. E a meta do governo chileno é que, pelo menos, 80% da população esteja vacinada até junho, o que garantiria a chamada imunidade de rebanho. No Brasil, apenas pouco mais de 4% da população recebeu a primeira dose.

Esse avanço do programa de imunização permitiu ao governo chileno começar a afrouxar mais rapidamente as restrições à mobilidade social, acelerando a reabertura da economia. Diante disso, juntamente com a maior demanda por matérias-primas, como o cobre, do qual o Chile é o maior produtor mundial, vários economistas estão revisando para cima as suas projeções para o crescimento do PIB em 2021.

A consultoria Oxford Economics elevou de 6,1% para 6,4% a estimativa de crescimento do PIB chileno em 2021. O banco Jpmorgan revisou sua previsão de expansão de 5,4% para 5,9%. Tanto a consultoria Pantheon Macroeconomics quanto o banco Itaú BBA projetam um crescimento de 6,5% do PIB chileno neste ano. E, ontem, o FMI passou a prever um crescimento de 6% do PIB chileno em 2021.

É bom lembrar que, em razão do impacto da pandemia de covid, a economia chilena encolheu 6,1% em 2020, mas a recuperação tem sido rápida, com o PIB registrando expansão em sete dos últimos oito meses. Isso foi possível, em boa parte, porque o Congresso aprovou duas rodadas de liberação de saques dos fundos de pensão privados pelos chilenos, em quantia até 10% do patrimônio, o que minimizou o impacto da perda de renda com a pandemia, dando um impulso a setores como o comércio varejista.

Também vale mencionar que o preço do cobre já subiu mais de 15% em 2021, puxado pelo aumento das importações da China, cujo PIB foi o único a registrar crescimento positivo em 2020 entre as maiores economias mundiais. O desempenho do cobre vem limitando as perdas do peso chileno ante o dólar neste ano, em meio à turbulência da disparada das taxas de retorno dos títulos do Tesouro americano. A moeda americana acumula ganho de 3,2% em relação ao peso chileno, de 7,1% ante o peso mexicano e de 13% frente o real brasileiro.

Mas a mudança de humor aconteceu mesmo com o rápido avanço da imunização contra a covid. Uma pesquisa de opinião recente mostrou que 83% dos chilenos consideram o programa de vacinação bom ou muito bom. O índice de aprovação do presidente Sebastian Piñera subiu para 24%, ainda baixo, porém bem acima do seu menor nível, de 9%, registrados antes de a pandemia ter começado e ainda sob o calor dos violentos protestos de massa no país, deflagrados após aumento nos preços dos transportes públicos.

Aliás, era o cenário político que até o fim do ano passado deixava os analistas mais pessimistas em relação à confiança dos investidores sobre o desempenho econômico do Chile em 2021. Como reflexo dos protestos, um referendo autorizou a elaboração de uma nova constituição. No mês que vem, haverá eleição para a formação de uma assembleia constituinte.

O temor era de que a deterioração econômica, em razão da pandemia, poderia ser terreno fértil para a eleição de candidatos mais radicais que pudessem retroceder o caráter liberal e favorável ao ambiente de negócios da atual Carta, além de aumentar o tamanho do Estado.

Outro evento importantíssimo acontecerá em novembro: a eleição presidencial. Piñera, de centro-direita, não poderá concorrer à reeleição. E o medo também era de que candidatos mais à esquerda e considerados radicais pudessem vencer o pleito, levando a uma fuga de investidores.

Esse cenário ainda pode ocorrer. Até porque os protestos contra a desigualdade social estão frescos na memória dos chilenos. Mas a rápida recuperação econômica proporcionada pelo avanço acelerado da vacinação contra a covid reduziu o desconforto dos investidores e analistas com uma possível turbulência gerada pelo calendário eleitoral.

11 de março de 2021

PANDEMIA, ECONOMIA E DEMOCRACIA!

(Ernesto Lozardo – O Estado de S. Paulo, 10) Os efeitos econômicos, sociais e políticos globais da pandemia de covid-19 serão equivalentes aos da 2.ª Guerra Mundial. No mundo, a contaminação atingiu mais de 117 milhões de pessoas e morreram mais de 2,6 milhões. No Brasil, mais de 11 milhões de pessoas foram contaminadas e mais de 268 mil morreram. Esses números são crescentes.

A pandemia mostrou de forma inequívoca que o que era considerado ordem se tornou desordem global. A era do entendimento institucional entre as nações encerrou-se no mandato de Bill Clinton; no governo de Donald Trump, passou-se a ter a política da desconstrução das instituições.

O trato econômico dessa pandemia é desconhecido. Nunca se teve um choque de oferta e demanda junto. A solução está em acabar com a covid-19. Isso depende da ciência, não da economia. No entanto, a pandemia global revelou que o Ocidente está sem liderança aglutinadora que inspire unidade, confiança e respeito à autodeterminação das nações: democracia sem preconceitos. O governo de Joe Biden é uma centelha de esperança.

Essa realidade rúptil da política internacional, somada à crise econômica e às dificuldades de acesso às vacinas, certamente será um obstáculo na retomada do crescimento, dos investimentos e do emprego das nações. Existem mais de 50 vacinas sendo testadas em diferentes laboratórios no mundo. A disponibilidade delas será uma luz para amenizar a inquietude de muitos, mas não materializará a esperança do crescimento sustentável.

A sonhada rápida recuperação econômica do Brasil ficou mais distante por duas razões: a falta de vacinas para imunizar toda a população brasileira e a recente opção política do Executivo de encaminhar ao Congresso Nacional somente projetos que tenham apelo popular. A primeira decorreu do erro político de minimizar o impacto econômico da pandemia e discriminar ideologicamente a origem das vacinas. A segunda é mais grave, pois aumentará a desconfiança dos investidores em relação às reformas fiscal, econômica e administrativa, as quais representam os pilares do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), do emprego e da renda.

No ano passado, muitos países tiveram perda de riqueza. Ao compararmos essa perda em dólar nominal, a brasileira perdeu 25%, sendo a maior perda entre as dez maiores economias do mundo. Isso reflete não o potencial da economia, mas a qualidade da sua governança.

A sociedade entende que governos existem para governar, não para exercer o poder por mero prazer. Há um crescente inconformismo social em relação à gestão das instituições democráticas atual. Isso está ocorrendo em vários países ocidentais. Governantes e políticos têm exercido o poder em benefício próprio, desrespeitando a dignidade econômica dos cidadãos. Acirrou-se a desconfiança das sociedades em relação à representatividade das instituições democráticas. O populismo está se tornando uma força incontrolável, incitando regimes políticos autoritários, fascistas.

Mesmo neste dramático momento, encontramos países, independentemente do regime político, onde as lideranças governam com o respaldo da sociedade, não há populismo, respeitam as recomendações da ciência e apresentam elevado nível de governança econômica. Trata-se do Vietnã, da China, da Coreia do Sul e da Austrália, que saíram da crise pandêmica com rapidez e cujas atividades econômicas retornaram à normalidade.

A pandemia passará, mas deixará um rastro de incertezas políticas e econômicas sem precedentes no Brasil.

10 de março de 2021

AUTOR DA TRILOGIA ‘GETÚLIO’ RELEMBRA HISTÓRIA DOS JUDEUS QUE FUNDARAM RECIFE E NY!

(Reinaldo José Lopes – Folha de S.Paulo, 08) Em 1640, depois de enfrentar anos de controvérsias teológicas e falta de dinheiro em Amsterdã, o erudito judeu Menasseh ben Israel decidiu que era hora de mudar de ares. Mas, para isso, precisava de uma boa oferta de emprego, de preferência como rabino. Tentou obtê-la dedicando o segundo volume de sua obra magna, “O Conciliador”, a correligionários endinheirados numa terra tropical do outro lado do Atlântico.

“Aos nobilíssimos e magníficos srs. David Senior Coronel, Abraão de Mercado, Jacob Mocata, Isaac Castanho e demais senhores de nossa nação, habitantes no Recife de Pernambuco”, escreveu ele. “Tendo eu decidido partir para as distantes latitudes do Brasil, resolvi mandar-vos um sinal de minha erudição e engenho.”

Apesar dos elogios, Menasseh ben Israel não conseguiu o posto de rabino da recém-criada sinagoga do Recife —a honra coube a outro sábio de Amsterdã, Isaac Aboab da Fonseca. Mas a dedicatória ajuda a mostrar como, durante o breve período de dominação holandesa do Nordeste (1630-1654), as zonas açucareiras do Brasil ganharam ares de nova Terra Prometida para a comunidade judaica de língua portuguesa.

Essa diáspora, formada por refugiados e vítimas da Inquisição que, apesar de tudo, ainda relutavam em cortar de vez os laços com seu passado ibérico, é o tema de “Arrancados da Terra”, novo livro do escritor cearense Lira Neto, 57. Deixando de lado a história moderna do Brasil, que abordou em livros como as biografias de Getúlio Vargas e do padre Cícero, o autor mostra como a história de perseguição e resiliência dos judeus lusos se insere num mundo profundamente “globalizado” já no século 17.

“Ao mergulhar nos documentos, ficou muito evidente que, ao contrário do que pode parecer, esse era um mundo profundamente conectado, e os judeus e cristãos-novos [pessoas de origem judaica cujos ancestrais foram convertidos à força ao catolicismo] davam uma contribuição importante à formação desses vínculos globais”, disse o escritor à Folha.

Lira Neto aproveitou a estada em Portugal, onde atualmente faz seu doutorado na Universidade Nova de Lisboa, para dar forma à narrativa a partir dos personagens revelados pela documentação histórica original.

Trata-se, em parte, de um mergulho nas trevas. Registros da Inquisição portuguesa, armazenados na Torre do Tombo e hoje já digitalizados, são a fonte para os primeiros capítulos do livro: a prisão e as torturas sofridas por Gaspar Rodrigues Nunes, cristão-novo que ainda praticava parte dos rituais judaicos. Nunes escapou por um triz de ser queimado vivo e, ao fugir para a Holanda, adotou o nome de Joseph ben Israel, enquanto seu filho mais velho, Manuel, tornou-se Menasseh.

As agruras dos judeus portugueses tinham começado em 1496, quando o rei Dom Manuel I decretou a expulsão deles de seus domínios, numa lei que entraria em vigor no ano seguinte. Manuel promulgou a lei de expulsão para cumprir os termos de sua aliança matrimonial com a Espanha, que havia tomado a mesma medida anos antes —foi o preço que os “Reis Católicos” espanhóis, Fernando e Isabela, cobraram para dar ao lusitano a mão de sua filha.

Parte dos habitantes judaicos do reino conseguiu fugir, em geral para regiões do Mediterrâneo, como a Itália, a Turquia e o norte da África. Mas muitos, sem poder escapar, foram batizados em massa. A nova categoria dos cristãos-novos ou marranos, no entanto, permaneceu sob suspeita por séculos. Houve os que vieram para o Brasil, enquanto outros chegaram à Holanda, que travava uma guerra de independência contra a Espanha e passou a defender a liberdade de consciência em termos de religião, o que atraía a comunidade judaica.

A partir de 1580, o parentesco entre os monarcas lusitanos e espanhóis, e a morte de todos os herdeiros do trono do lado português, fez com que tanto Portugal quanto a Espanha virassem um único reino, a União Ibérica. Isso fez com que a Espanha abocanhasse as possessões lusas no Brasil, mas também as transformou em alvo dos inimigos dos espanhóis nos Países Baixos, muito interessados em arrancar um naco do comércio global do açúcar.

Ao dominar o Nordeste, os holandeses contaram com a colaboração dos judeus de língua portuguesa de Amsterdã, que podiam usar a semelhança de língua e cultura para negociar com os senhores de engenho brasileiros, alguns dos quais também eram cristãos-novos. Um número significativo de israelitas de família lusa —talvez 1.500, segundo as estimativas mais generosas— resolveu cruzar o oceano e se envolveu nas mais diversas atividades, da produção de açúcar e do comércio de escravos ao serviço militar.

Não era algo isento de riscos —quando a União Ibérica terminou, em 1640, os portugueses iniciaram esforços militares para retomar o Nordeste, e judeus capturados nos combates chegaram a ser remetidos, mais uma vez, para os calabouços da Inquisição em Lisboa. Curiosamente, porém, a identidade lusa dos judeus radicados em Amsterdã parecia continuar falando mais alto algumas vezes, fazendo com que ajudassem a mediar os conflitos entre Portugal e Holanda.

“É preciso lembrar que, na península Ibérica, eles viviam nas sombras, sem sinagoga, sem educação judaica, o que gerava traços muito específicos que os diferenciavam dos demais judeus”, explica Lira Neto. “Quando partiam para a Holanda, levavam consigo essa condição de homens divididos, clivados. Tiveram de se reconstituir como ‘judeus novos’, depois de serem cristãos-novos.”

Embora a documentação histórica seja um tanto vaga e contraditória no que diz respeito ao destino de parte desses judeus quando Portugal retomou o Nordeste, o mais provável é que 23 deles tenham desembarcado na América do Norte, em Nova Amsterdam (atual Nova York, então colônia holandesa), dando um início simbólico à comunidade judaica dos atuais EUA.

Uma lápide do século 17 ainda preservada num antigo cemitério de judeus de Nova York traz, com efeito, versos cuja métrica e rima lembram os romances de cordel nordestinos. Essa herança cultural não pode ser negligenciada, diz Lira Neto, ele próprio descendente de um cristão-novo chamado Gonçalo de Lira. “Nos sertões brasileiros temos crenças e tradições cujo sentido original se perdeu, mas que estão ligadas a essa herança.” Tais resquícios estariam, por exemplo, nos rituais fúnebres, como o sepultamento em mortalha (sem caixão), o hábito de colocar pedras sobre o túmulo ou de derramar água do pote de barro caso algum morador da casa tenha morrido.

Para o autor, a situação dos judeus lusos tem ecos claros no presente. “Muitas vezes ainda reproduzimos os mesmos códigos, a mesma linguagem do preconceito, do ódio e do desprezo. Não é uma história que se perdeu no tempo, não se trata de mero antiquarismo ou simples curiosidade.”

09 de março de 2021

CIÊNCIA E RELIGIÃO!

(Leandro Karnal – O Estado de S. Paulo, 07) “A ciência sem a religião é manca, a religião sem a ciência é cega.” A frase é bem construída. Coloca duas afirmações fortes unidas pela ausência (indicada pelo termo “sem”). Ela aponta o vazio irreparável da ideia científica e da religiosa na fala recíproca. O autor? O nome reforça ainda mais o peso da afirmação: Albert Einstein.

Grande parte da história do mundo poderia ser contada como a relação complexa entre ciência e religião. Muitas pessoas invocarão a imagem simbólica de Galileu Galilei (1564-1642) diante do Tribunal do Santo Ofício, obrigado a se retratar oficialmente para não ser queimado. O exemplo do suplício de Giordano Bruno (1548-1600), ocorrido quando o astrônomo de Pisa tinha acabado de completar 36 anos, certamente pairava na memória. Um filósofo, Giordano, queimado em praça pública, torturado, o fogo aceso com sua própria obra: eis uma imagem forte que seduz quando vemos sua estátua no Campo dei Fiori.

Giordano, o inflexível; Galileu, o negociador: ambos são exemplos sempre citados de uma oposição absoluta entre fazer ciência ou ter fé. O escritor Morris West (1916-1999) criou O Herege, reforçando o caráter heroico do dominicano supliciado em Roma. Li na juventude, emocionado, a frase de Giordano olhando para os juízes e dizendo que eles, acusadores, tinham mais medo dele, réu, do que ele temia a seus carrascos. Psicanaliso: West, escritor de best-sellers, tinha uma relação complexa com sua mãe australiana católica, algo que aparece em obras como As Sandálias do Pescador ou O Advogado do Diabo.

A inspiração também atingiu Bertolt Brecht (1898-1956), autor da Vida de Galileu. Anos depois, estudando mais, entendi que Brecht dialogava muito com o nazismo e sua repressão, pois a peça era de 1943 e o dramaturgo estava exilado na Dinamarca. Também no Brasil, Zé Celso, Cláudio Corrêa e Castro, Renato Borghi levaram adiante um Galileu que, com certeza, dialogava com o clima de enfrentamento com a ditadura por aqui.

Críticas possuem história, origem e viés, sempre. Quase toda imagem que vemos de Galileu no Tribunal pertence ao século 19, momento em que o Liberalismo europeu via na Igreja (e no papado de Pio IX) um obstáculo. A Igreja Católica era considerada inimiga mortal da liberdade e da ciência. Sabemos, hoje, que tal proposta é um postulado que pertence mais às formulações de um grupo dos oitocentos do que ao Renascimento. O quadro mais ilustrativo da cena da repressão ao saber livre é o de Cristiano Banti (1824-1904), que mostra Galileu à direita, em pé, segurando sua capa e, a sua frente, um temível dominicano apontando com dedo acusador o trecho de uma obra. A pintura fala pouco do processo do astrônomo e muito da oposição do papado à Unificação Italiana. O mesmo pode ser dito da maioria das gravuras ilustrativas sobre torturas da Inquisição: quase sempre são um documento do Liberalismo e da secularização do século 19.

O caldo de crítica aos poderes (nazismo no caso de Brecht e ditadura militar no caso da encenação da Galileu aqui) mistura a ideia de uma ciência iluminada contra a religião.

Era uma dicotomia insuperável? Giordano Bruno era mais um hermético, ocultista e estudioso das artes da memória do que um cientista iluminado. Um dia, o filósofo de Nola se convertera ao Calvinismo, quando a nova religião parecia útil. Depois, renunciou à nova fé para, curiosamente, tornar-se o mártir da coerência diante do tribunal romano. Ao virar personagem, Giordano Bruno pode encarnar toda a luta contra a censura e o autoritarismo. Ali no local em que ele foi assassinado, todo dia 17 de fevereiro ocorrem discursos pela liberdade de pensamento. Em uma rara praça sem igrejas de Roma, todos olham para a estátua do frade com capuz e olhar triste (estátua, aliás, também feita no século 19 com coleta entre tantos inimigos do papado). Na mesma praça tinha sido erguida uma outra obra durante as agitações da “primavera dos povos” (1848/1849) e, depois, destruída pelo bispo de Roma. Reerguê-la era um sinal contra a memória de Pio IX e contra o papa reinante de 1889: Leão XIII. Durante a ditadura totalitária italiana, para agradar aos cardeais, Mussolini planejou remover a estátua. Ocorreu o inesperado. O filósofo fascista Giovanni Gentile era admirador de Giordano Bruno e pressionou para que Mussolini mantivesse o monumento. Construída duas vezes contra papas e mantida por um fascista, a obra continua lá mostrando que os signos são históricos, sempre, e mutáveis por natureza.

Para que não fiquemos repetindo slogans e ideias românticas, sempre é bom ler muito. A Editora Ideias & Letras traduziu o Cambridge Companion sobre Ciência e Religião. O organizador é Peter Harrison (autor do excepcional The Fall of Man and the Foundations of Science, Cambridge University Press). A obra original é de 2010 e a tradução brasileira é de 2018 (feita por Eduardo Rodrigues da Cruz). Nela, diversos autores analisam o binômio ciência e religião. Big Bang, criacionismo, design inteligente, ateísmo, darwinismo, universidades medievais, filosofia patrística e escolástica, secularização: todos os conceitos tratados por grandes especialistas em um texto claro e muito bom. Recomendo a leitura vivamente. Boa semana para todos.

08 de março de 2021

É HORA DE REINDUSTRIALIZAR!

(Antonio Carlos Pereira – O Estado de S. Paulo, 07) A maior parte da indústria de transformação perdeu peso nas exportações, sustentadas há anos pela agropecuária e pela mineração.

Boas notícias para começar: a produção industrial cresceu 0,4% em janeiro, aumentou 42,3% em nove meses consecutivos de alta e superou com folga a perda de 27,1% acumulada no primeiro grande impacto econômico da pandemia. O volume produzido em janeiro foi 2% superior ao de um ano antes. Os números foram positivos em duas das quatro grandes categorias de produtos, com avanço mensal de 4,5% na fabricação de bens de capital (principalmente máquinas e equipamentos) e de bens de consumo semiduráveis e não duráveis, onde se enquadram alimentos, perfumaria, calçados e produtos de limpeza. A indústria automobilística, uma das mais afetadas pela crise, também continuou em recuperação. O número de veículos, carrocerias e reboques produzidos foi 4,8% maior que o de janeiro de 2020.

A reação, no entanto, continuou perdendo impulso. É preciso dar atenção a isso, mas é necessário buscar algo mais que retomada. É urgente pensar em algo mais ambicioso, um roteiro de reindustrialização.

A reação inicial, depois do tombo de 27,1%, foi vigorosa, com avanços de 8,7% em maio e 9,6% em junho. Depois, foi ficando mais lenta, mês a mês. A evolução do consumo, por enquanto conhecida até dezembro, também foi menos vigorosa nos meses finais de 2020. Isso é atribuível, em parte, à redução do auxílio emergencial a partir de setembro. Além disso, as condições de emprego permaneceram ruins.

A atividade industrial, embora em recuperação, refletiu a insegurança e a maior cautela dos consumidores nessa fase. As dificuldades de milhões de famílias são evidenciadas pelos saques da poupança em janeiro e em fevereiro. O dinheiro armazenado, com muita prudência, durante boa parte de 2020, é agora necessário para despesas inadiáveis. Não há como negar a urgência de uma retomada, embora parcial, do auxílio financeiro às famílias necessitadas.

Não se trata apenas de solidariedade. Sem reforço do consumo, toda a recuperação econômica poderá ser prejudicada. Isso inclui, naturalmente, a criação de empregos. O Brasil fechou 2020 com desocupação de 13,4 milhões de pessoas (13,5% da população ativa) e 31,2 milhões de pessoas subutilizadas (desempregadas, subocupadas por insuficiência de horas ou apenas integradas na força de trabalho potencial).

É preciso levar em conta esses dados para avaliar as condições da recuperação industrial. Além de ter perdido impulso no segundo semestre de 2020, a retomada tem sido desigual. Em janeiro, houve resultados negativos em 14 ramos de atividade industrial, pouco mais de metade dos 26 cobertos pela pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Um ramo ficou estável e os demais cresceram. Nada igual a isso foi observado nos oito meses anteriores de recuperação do setor industrial.

No confronto com janeiro de 2020 o quadro ficou um pouco melhor. Além do aumento geral de 2%, houve maior número de ramos com resultados positivos: 18 dos 26. Além disso, a produção de 57,9% dos 805 produtos pesquisados foi maior que a de um ano antes, embora janeiro deste ano tenha tido 20 dias úteis, dois a menos que os da base de comparação.

A reação da indústria depois do tombo de março-abril deve ser só o começo de um longo retorno a um período de maior dinamismo. Com o resultado de janeiro, a produção industrial ainda foi 12,9% menor que a de maio de 2011, pico da atual série histórica mantida pelo IBGE. Com algumas oscilações, a tendência geral da indústria foi de declínio, ao longo desse período. Além da produção em queda, houve perda de participação no conjunto da economia brasileira e declínio de competitividade, exceto em poucos segmentos. A maior parte da indústria de transformação perdeu peso na composição das exportações, sustentadas há anos pela agropecuária e pela mineração.

Se ainda se encontrar, em Brasília, algum espaço para a definição de estratégias de crescimento e para algo parecido com planejamento, uma das prioridades deverá ser um programa de reindustrialização. Mas nada, no currículo do atual governo, autoriza essa expectativa.

05 de março de 2021

LIVRO DO JORNALISTA ROBERTO SIMON REVELA ATUAÇÃO BRASILEIRA NO REGIME PINOCHET!

(João Luiz Sampaio – Estado de SP, 04) Em setembro de 2013, o jornalista Roberto Simon embarcou em direção ao Chile para acompanhar os eventos ligados aos 40 anos do golpe contra Salvador Allende. Na bagagem, no entanto, levava um objetivo adicional: mergulhar nos documentos da chancelaria chilena que permitissem levantar informações sobre o papel do Brasil no processo e a respeito da relação da ditadura militar brasileira com o regime militar instalado pelo general Augusto Pinochet.

De volta a São Paulo, Simon publicou no Estadão uma série de reportagens que esclareciam episódios pouco claros, envolvidos em mitos que seus textos derrubaram. O governo brasileiro não apenas havia conspirado para a derrubada de Allende, como ofereceu auxílio a Pinochet, trabalhando inclusive na repressão a esquerdistas. E o fez não a mando dos EUA, como se costumava repetir: a presença no Chile atendia uma clara política de Estado preocupada com os caminhos da política no país vizinho.

A partir das pesquisas originais, Simon voltou ao Chile e fez ainda buscas em acervos no Brasil e nos Estados Unidos, como pesquisador do Wilson Center, em Washington. Completou o material documental com depoimentos e entrevistas realizadas com diversos personagens da época. E o resultado sai agora em forma de livro com o lançamento de O Brasil Contra a Democracia: a Ditadura, o Golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul (Companhia das Letras).

“A ideia era lançar o livro dois anos depois, em 2015, mas, a cada porta que se abria, outras cinco apareciam, e era preciso seguir novas trilhas”, conta Simon em entrevista ao Estadão. “No caso brasileiro, boa parte dos documentos desapareceu. O adido militar na embaixada em Santiago, por exemplo, mandava comunicações ao governo brasileiro três vezes por semana e quase não há registros disso no Arquivo Nacional. Em outros casos, foi preciso recorrer à Lei de Acesso à Informação para conseguir documentos. No Chile, muitos papéis referentes aos militares também sumiram, mas na redemocratização eles tiveram a sábia decisão de retirar o sigilo de todos os documentos”, lembra o autor. Já nos Estados Unidos, muitas informações foram conseguidas a partir de pedidos de liberação de documentos até então sigilosos.

Simon entrevistou diversos exilados brasileiros e também figuras então ligadas ao governo e ao Exército nacionais, como um ex-capitão da Força Aérea Brasileira, que pediu para não ter o nome revelado e é identificado no livro como Capitão Pinto. Seu depoimento é um dos elementos a contribuir com a narrativa a respeito de episódios marcantes, como a presença brasileira no Estádio Nacional de Santiago, que se transformou em enorme prisão e centro de repressão e tortura aos inimigos da ditadura chilena.

“A presença de agentes brasileiros no Estádio Nacional era comentada desde os anos 1970 na imprensa americana e europeia, ainda que não tenha aparecido nos jornais brasileiros por conta da censura”, explica Simon. “Mas o que tínhamos sobre isso eram depoimentos e não documentos que comprovassem o que aconteceu naquela época.” Ele, no entanto, descobriu, nos planos de voo do Correio Aéreo Nacional, que os militares usavam para mandar comunicações diplomáticas, um pedido expresso de desembarque em Santiago de um avião sem a lista de passageiros. E a chegada do voo coincide com um telegrama do cônsul brasileiro dizendo ter encontrado cinco oficiais brasileiros no Estádio Nacional, versão corroborada pelo Capitão Pinto.

Política de estado. A narrativa de O Brasil Contra a Democracia começa em 1969, um ano antes da eleição de Allende como presidente do Chile. Com isso, mostra que o Brasil já estava atento à situação política chilena e defendia a ideia de que apenas um golpe seria capaz de derrubar o presidente.

“A ditadura brasileira ajudou a golpear a mais longeva democracia de seu entorno geográfico e, no lugar, instalar um regime cuja sanguinolência e crueldade praticamente não tinham precedentes na América do Sul moderna. Essa intervenção não foi fruto de ações episódicas e autônomas de alguns zelotes dentro da ditadura, mas uma política de Estado, a qual percorria uma cadeia de comando desse a alta burocracia de Brasília até as raízes do sistema”, escreve Simon.

Ele reproduz no livro, por exemplo, um documento do governo americano em que é narrada uma conversa entre os presidentes Richard Nixon e Garrastazu Médici, na qual o brasileiro fala que havia um intercâmbio com oficiais chilenos para a derrubada de Allende. Simon mostra também como Câmara Canto, embaixador brasileiro em Santiago, mantinha contato próximo com as Forças Armadas e diversos setores da sociedade chilena simpáticos ao golpe consumado no dia 11 de setembro de 1973.

Para Simon, havia dois interesses em especial do Brasil na queda do governo. O primeiro era geopolítico: o País temia que a chegada dos socialistas ao poder significasse ameaça direta à segurança nacional. O segundo tinha a ver com o cenário interno: o País temia que a ideia de união da esquerda que levou Allende ao poder pudesse se espalhar pelo continente e que exilados tidos como radicais fizessem do Chile palco do planejamento de uma investida contra o governo militar brasileiro.

Segundo o autor, os documentos jogam por terra a noção de que o Brasil operava não por interesse próprio, mas por determinação americana, reforçada em parte pela própria esquerda. Ele lembra, por exemplo, a declaração do escritor Gabriel García Márquez, segundo quem o Brasil se tornara o “braço direito e armado do neocolonialismo dos Estados Unidos”. “O regime militar brasileiro tinhas suas motivações para intervir no Chile e dispensava ordens de Washington para fazê-lo”, escreve Simon, para quem não houve ação articulada e conjunta entre os países.

“A política anti-Chile dos dois países teve pontos de contato, mas não se entrelaçou, nem mesmo quando Pinochet deu o bote na democracia. Diferentemente do golpe contra Jango em 1964, no Chile de 1973 Washington pôde postergar o reconhecimento oficial da junta militar e deixar os brasileiros tomarem a iniciativa regional”, conclui.

04 de março de 2021

A NECESSÁRIA RESILIÊNCIA E OS APRENDIZADOS EM TRAVESSIAS TORMENTOSAS!

(Paulo Hartung, economista – O Estado de S. Paulo, 02) Todo tempo crítico tem ao menos duas “forças” essenciais: aprendizado e finitude. Não há tormenta que dure para sempre e ela será tanto menos danosa, e o mais breve possível, quanto maior for a nossa resiliência, definida como capacidade de suportar, lidar e reagir positivamente a contextos adversos. No caso de uma dramática crise sanitária, com milhares de mortos por dia e sem horizonte claro de fim, essa é uma tarefa ainda mais desafiante.

Em meio à dor e às perdas impostas pela pandemia, no entanto, o Brasil vem registrando movimentos, especialmente no âmbito da sociedade civil, no sentido de produzir saberes e elaborar aprendizados relativamente à tragédia virótica, até para que possamos sair o mais rapidamente dela e um tanto mais habilitados a, efetivamente, nos recompormos social e economicamente no pós-crise.

Nesse aspecto ontem foi lançado um livro muito especial, reunindo reflexões acerca da experiência de tempos tão críticos no tocante a diversas áreas das políticas públicas. Trata-se da materialização de um esforço que merece ser celebrado como uma contribuição ímpar do olhar racional para extrair aprendizados de um ano dessa crise aqui, no Brasil, e em favor de uma nova história a partir dela, até mesmo com o objetivo para nos preparar para outros enfrentamentos de natureza similar no futuro.

Legado de uma Pandemia: 26 Vozes Discutem o Aprendizado para a Política Pública, organizado por Laura Müller Machado, tem quatro partes, tratando de campos específicos: ordem social, ordem econômica, organização do Estado, política e comunicação. O projeto foi viabilizado pelo Insper e pela Fundação Brava.

Na série de quatro eventos online que marcam o lançamento e a oferta gratuita do ebook, amanhã, participamos como comentarista dos cinco capítulos da parte 3, Legado para a organização do Estado, cujos textos serão apresentados por seus autores na ocasião.

Em O legado para a governança colaborativa, Sandro Cabral discute a necessidade impositiva de governos colaborativos, tanto entre si quanto com as organizações da sociedade civil. Pontua que a colaboração exige persistência e decisão política, preconiza pouca vaidade e requer o exercício genuíno da liderança em meio a enfrentamentos agendados por múltiplos fatores e atores.

Em Covid-19, federalismo e a descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual?, Diego Werneck Arguelhes e Natália Pires de Vasconcelos discutem a posição, que consideram pontual, do Supremo Tribunal Federal (STF) de incrementar a competência concorrente de Estados e municípios diante da majoritária jurisprudência de opção pela postura centralizadora e unificadora da Corte.

Marcelo Marchesini da Costa e Gabriela Lotta, em A gestão pública vigilante, expressam que a pandemia trouxe à tona o que chamam de burocracia que se posiciona acerca de decisões das lideranças, seja para enfrentar o que se considera equívoco administrativo-científico, seja para se insurgir contra determinações de possível cunho ideológico. Apesar de apontar os riscos desses comportamentos, que não seriam precípuos da burocracia, o texto sugere que gestões vigilantes podem ser um contrapeso a desmandos.

Em As lições aprendidas com a resposta do sistema de saúde, Francisco Inácio Bastos e Elize Massard da Fonseca pontuam limitações e também ações de alta relevância, em meio a problemas estruturais e fatores políticos perturbadores. Consideram que um dos aspectos mais relevantes da resposta do Brasil à covid-19 foi a capacidade de desenvolver ações de ciência, tecnologia e inovação, permitindo soluções céleres.

Ricardo Paes de Barros e Laura Müller Machado, em A pandemia e o início do fim da invisibilidade, registram que a incapacidade de saber quem são os brasileiros mais empobrecidos e de levar o Estado até eles acabou revelando a invisibilidade de segmentos inteiros da sociedade. Dizem que, para um país que destina 25% do produto interno bruto (PIB) a assegurar direitos sociais, nada justifica a existência de populações sob a escuridão da identidade e o apagão da comunicação com os governos – a não ser uma tendência de manter contingentes à margem das conquistas civilizatórias.

A partir da leitura do livro se incrementa a certeza de que é urgente um esforço amplo de modernização do Brasil, movimento que vai do aprimoramento do pacto federativo, passa pela reforma das estruturas governativas e alcança a desconstrução dos sustentáculos perversos da desigualdade estrutural, que torna inviável qualquer projeto de nação justa, cidadã, inclusiva e sustentável em nosso país.

Esse livro, para além de sedimentar aprendizados valiosos em tempos tão duros, merece ser visto como uma inspiração para novas produções. Afinal, como diz uma das epígrafes da edição, nas palavras de Albert Camus, “a única maneira de lidar com a peste é com decência”, aqui materializada com o melhor da visão de origem científica, o convite à prática da resiliência e da empatia e a valorização imperiosa dos princípios democrático-republicanos a organizar a vida nacional.

03 de março de 2021

SAÍDAS DA CRISE PARA A AMÉRICA LATINA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 01) “Hoje nos encontramos ante um enorme paradoxo: não há dúvida de que a pandemia teve grandes efeitos destrutivos”, constatou o ex-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento Luis Moreno, “mas também levou a uma enorme aceleração da inovação e da transformação digital.” Para Moreno, “temos duas grandes tendências no mundo de hoje: um movimento rumo a uma economia mais digital e o eixo do mundo, em termos econômicos, cada vez mais orientado para a Ásia”. Neste cenário, quais os desafios da América Latina para a saída da pandemia? A questão serviu de alavanca a um debate entre Moreno e Fernando Henrique Cardoso, promovido pela Fundação FHC.

A pandemia atingiu uma economia latino-americana debilitada. Se em 2020 a economia global encolheu cerca de 3,5% e, em 2021, deve crescer cerca de 5,5%, na América Latina a contração foi de quase 8% e o crescimento deve ser de 3,5%. A dívida pública da região, que no início de 2020 estava em torno de 60%, agora chega a 70%. “Ou seja”, constatou Moreno, “boa parte de todo o estímulo fiscal foi feita com dívida.” E ainda que estes estímulos tenham aliviado momentaneamente a pobreza, ela crescerá – em alguns casos nos níveis de duas décadas atrás.

Some-se a isso o fato de que a transformação do mercado de trabalho promovida pela revolução digital foi acelerada pela pandemia. Estima-se que em oito meses o comércio eletrônico, por exemplo, avançou o equivalente a três ou quatro anos. Mas nos países desenvolvidos o avanço foi maior e menor nas regiões em desenvolvimento, como a América Latina. Segundo Moreno, enquanto nos EUA o comércio eletrônico saltou algo entre 50% e 80%, no Brasil foram cerca de 40% a 50%.

Nestas condições, “não creio que a recuperação será em V, temo que será em U”, constatou FHC. “Será difícil, porque as mudanças na tecnologia produtiva são muito grandes e as pessoas não estão capacitadas para isso.” De resto, sobre o cenário político, FHC pontuou: “O sistema partidário não se deu conta do salto que está se produzindo na consciência das pessoas sobre a política”. Neste estado de desagregação, “pode haver um agravamento do populismo”.

Nem por isso, os latino-americanos imbuídos de espírito cívico podem renunciar à “grande questão”, segundo Moreno: “Como aproveitamos esta crise para gerar mudanças profundas na América Latina?”.

De pronto, há algum esteio econômico com as perspectivas para a exportação agrícola – sobretudo ante o desempenho econômico da China. Mas isso nem de longe será suficiente para um crescimento sustentável e muito menos para “desnaturalizar a desigualdade”, nas palavras de FHC. Ao contrário, sem reformas estruturais do “contrato social”, a desigualdade e, logo, as rupturas sociais podem aumentar.

Entre essas reformas, os debatedores deram especial destaque à educação, um setor no qual o desempenho latino-americano já era ruim antes da pandemia e foi agravado por ela. As taxas de paralisação das escolas na região foram em geral maiores do que nos países desenvolvidos, e o acesso a meios digitais, mais escassos.

A capacitação para novas tecnologias é essencial. Moreno citou alguns casos exemplares de capacitação por parte da iniciativa privada. Contudo, “não há políticas públicas que cheguem a milhões de pessoas”. O avanço “exigirá uma conversa público-privada muito mais profunda”. Analogamente, do ponto de vista político, Moreno citou experiências exitosas de governadores e prefeitos na resolução de problemas imediatos em nível local. Mas, para que esses exemplos se enraízem, ramifiquem e frutifiquem, também será necessária uma educação capaz de fomentar nos latinoamericanos o espírito cívico e forjar lideranças comprometidas com a coisa pública.

Ante a recessão econômica, o desgoverno político e o avanço precário da vacinação na América Latina, a curto prazo “não se pode olhar adiante com muitas expectativas”, disse com franqueza FHC. Mas, a longo prazo, as soluções para a crise econômica, cívica e política da América Latina passam todas pela educação.