29 de julho de 2022

OS VENTOS ESTÃO MUDANDO NA AMÉRICA LATINA’!

(Ilan Goldfajn – ex-presidente do BC e diretor do FMI – O Estado de S. Paulo, 29) Depois de o Fundo Monetário Internacional (FMI) elevar a projeção de crescimento da América Latina para este ano de 2,5% para 3%, o diretor do órgão para o Hemisfério Ocidental, Ilan Goldfajn, afirmou que a tendência é de desaceleração a partir deste segundo semestre. “A percepção é de que os ventos estão mudando de direção. Vamos ter aperto das condições internacionais, com os Estados Unidos subindo a taxa de juros. Isso significa que o fluxo de capital diminui para a região e que o dólar fica mais forte.”

O ex-presidente do Banco Central (BC) do Brasil disse que a inflação – o “grande problema” do mundo hoje – deve demorar para cair. Questionado sobre o aumento dos gastos públicos no País, que podem pressionar a inflação ainda mais, Goldfajn afirmou que “a questão fiscal tem de contribuir para este momento que estamos vivendo” e destacou que o BC está trabalhando para que o Brasil enfrente os “ventos contrários”. Confira, a seguir, trechos da entrevista.

Apesar da deterioração financeira global, o FMI está com uma projeção melhor de crescimento econômico para a região agora, de 3%, do que em janeiro, quando era de 2,4%. O que está por trás dessa mudança?

Observamos que a recuperação econômica de 2021, que foi forte na região, continuou no primeiro semestre de 2022. Temos países em que o turismo voltou. Temos países que dependem das forças globais, e os EUA e outros países continuaram crescendo. Tivemos um período, no primeiro semestre, em que as commodities estavam mais altas. Isso também contribuiu. Agora, temos de separar a tendência do começo do ano e o que a gente percebe daqui para frente. A percepção é de que os ventos estão mudando de direção. Vamos ter aperto das condições internacionais, com os Estados Unidos subindo a taxa de juros. Isso significa que o fluxo de capital diminui para a região e que o dólar fica mais forte. Temos uma revisão de crescimento para os EUA para 1% em 2023 (antes, a projeção era de 1,7%). Esse crescimento dos EUA menor, a China e a Europa também crescendo menos, significa que a região deve, daqui para frente, ter uma desaceleração. Por isso, houve uma revisão da projeção de crescimento para o ano que vem (de 2,5%) para 2%.

Devemos esperar instabilidade política e social na América Latina como consequência da inflação?

Inflação é o grande problema global, não só do Brasil ou da região. Você vê as altas taxas de inflação nos EUA e na Europa. Até mesmo o Japão, que tinha sempre o problema de pouca inflação, está começando a ter mais inflação. O aperto das condições monetárias deve levar à desaceleração. Nesse contexto, a região, até por sua história, teve atuação relativamente mais rápida do que a dos países avançados. O Fed (Federal Reserve, o Banco Central dos EUA) está subindo a taxa de juros neste ano, quando a maioria dos BCs da região, inclusive o do Brasil, subiu antes. Não significa que a inflação esteja resolvida. Significa que, em termos de credibilidade, a reação ocorreu. Os BCs estão tentando reagir, e há uma percepção de que, ao menos em perspectivas de longo prazo, eles têm sido relativamente bem-sucedidos. Não estamos vendo as expectativas completamente desancoradas. Vemos expectativas mais altas agora e nos próximos dois ou três anos. É o efeito do choque. Vai demorar para voltar, mas os BCs estão reagindo. Acho que a institucionalidade nos últimos anos, os BCs autônomos, os regimes de meta de inflação e a ideia de que inflação é um bem público, que tem de ser cuidado, ajudaram – aí houve essa reação. Agora, a política monetária e a do governo têm de continuar.

Nos momentos em que o Fed eleva juros, crises graves ocorrem em países da região. Vocês veem esse risco?

Toda vez que há aperto de condições monetárias, há uma consequência. A consequência clássica é a reversão dos fluxos de capitais (em direção aos países avançados), o que já está ocorrendo. Segundo, o dólar fica mais forte. Isso leva a um custo interno maior. As taxas de juros domésticas sobem, e as moedas se depreciam, o que pressiona a inflação. Essa combinação leva a mais aperto monetário dentro dos países. Aí a desaceleração mundial acaba se transformando também numa desaceleração local. Estamos reduzindo a previsão de crescimento para a região porque vemos esse desenrolar.

Como fica o Brasil nesse cenário?

O Brasil se encaixa como outros países da região. Quando elevamos a projeção para este ano, o Brasil se encaixa nisso. Mas o País também vai enfrentar um cenário global mais difícil: taxas de juros globais mais altas e dólar mais forte, o que significa pressão maior sobre a taxa de câmbio, em um ambiente em que provavelmente vai ter uma desaceleração de crescimento. As commodities, que foram um fator mitigador no choque anterior, podem não ter esse efeito agora. Isso gera desafios para o Brasil e para a região.

Qual será o maior desafio para o próximo ano no Brasil?

É o mesmo desafio global. Vamos ter um 2023 com crescimento dos EUA e do resto do mundo bem menor do que em 2022. Em compensação, a região podia se colocar – e acho que está fazendo isso – como parte da solução. Se o mundo está precisando de mais alimento e de energia verde, a região pode se colocar como uma grande vendedora. Ao mesmo tempo que temos um desafio conjuntural, que é o desafio desse aperto das condições monetárias e da desaceleração da economia global, temos oportunidades.

26 de julho de 2022

OS PATRONOS DA INDEPENDÊNCIA!

(João Luiz Sampaio – O Estado de S. Paulo, 24) O momento não comporta mais delongas ou condescendências. Com essas palavras, José Bonifácio de Andrada e Silva escrevia no dia 1.º de setembro de 1822 a d. Pedro. “Fique”, segue o texto, exortando o príncipe regente a não retornar a Portugal. “E, se não ficar, correrão rios de sangue nesta grande e nobre terra.”

A carta chegou às mãos de d. Pedro em 7 de setembro, mesmo dia em que mais tarde, às margens do Ipiranga, ele declararia a independência. Ele se tornaria, então, d. Pedro I, imperador do Brasil. E o herói mais vistoso do movimento que teve Bonifácio como principal teórico e artífice.

“A deles era uma relação de confiança e de convergência de ideias”, diz a historiadora Miriam Dolhnikoff, biógrafa de Bonifácio. Mas não uma relação fácil. “Eles tinham personalidades muito fortes, a diferença de idade era grande. Bonifácio podia ser autoritário e d. Pedro, instável, temperamental”, lembra a historiadora Isabel Lustosa, autora de biografia do imperador.

CIÊNCIA E RITOS.

Bonifácio e d. Pedro tiveram formações bastante diferentes. Bonifácio nasceu em Santos em junho de 1763, mas logo seguiu para a Europa. Em Portugal, graduou-se em Filosofia Natural e Direito Civil na Universidade de Coimbra, na qual deu aulas de geognosia (estudo da composição das rochas) e metalurgia.

A serviço do governo português, viajou pela Europa pesquisando sobre mineralogia e foi nomeado em 1802, pelo príncipe regente d. João, intendente-geral das Minas e Metais. “Bonifácio se formou no início do liberalismo e via o cientista como alguém que deve colocar o seu conhecimento a favor de um projeto de modernização, alguém capaz de influenciar políticas de Estado”, conta Dolhnikoff. “Ele ocupou cargos públicos com objetivos pragmáticos, como pesquisar sobre a produção de ferro ou a exploração de minas.”

Bonifácio lutou como comandante contra os invasores franceses, em 1807. E, em 1819, após se aposentar na universidade, começou a pensar em um retorno ao Brasil, para “viver e morrer como simples roceiro” em seu sítio em Santos.

A essa altura, d. Pedro havia acabado de celebrar seu casamento com Leopoldina, garantindo assim a aliança entre Portugal e Áustria e mantendo o reino próximo dos países que haviam derrotado Napoleão – de quem a corte portuguesa fugira em 1808, mudando-se para o Brasil.

Com d. João e Carlota Joaquina, seus pais, d. Pedro chegou à colônia com 9 anos. Biógrafos dão conta de uma infância e adolescência difíceis, com pouco interesse pelos estudos, convulsões causadas pela epilepsia e uma relação hesitante com o pai. “D. Pedro cresceu no Rio de Janeiro, não era um homem inculto, mas gostava de andar pelas ruas, tinha certo desprezo pelos ritos oficiais da monarquia”, lembra Lustosa.

A proximidade com as questões de Estado surgiu no início dos anos 1820. Em abril de 1821, a Revolução Liberal do Porto fez com que d. João VI retornasse a Portugal, deixando d. Pedro no Brasil como príncipe regente. “É só então que ele vai aprender na marra, no dia a dia mesmo, o que significava uma atuação política”, acredita o historiador Paulo Rezzutti, autor do recém-lançado Independência – A Construção do Brasil: 1500-1825. E é nesse momento que as trajetórias do príncipe e de José Bonifácio vão se cruzar de modo indissociável – ao menos de início.

FICO I E FICO II.

A Revolução do Porto teve consequências diretas no Brasil. Se o discurso por lá era liberal, na prática, no que se referia ao País, o movimento só reforçava o espírito colonialista, com a crença de que a reestruturação econômica de Portugal se daria com a subjugação completa da colônia. Entre 1820 e 1821, tentou-se proibir que ela negociasse com qualquer outro país além de Portugal (o que significava um baque para agricultores que mantinham relações comerciais com a Inglaterra). A metrópole chamou de volta as repartições instaladas no Brasil. E novas tropas foram enviadas ao País.

Bonifácio a essa altura já havia desistido da breve vida pacata em Santos, envolvendose com a política nacional. Em 1821, tornou-se vice-presidente da Junta Governativa de São Paulo. E esteve ao lado do príncipe regente quando nova ordem chegou de Portugal: d. Pedro deveria voltar à Europa. Enquanto grupos defendiam o retorno do príncipe e o respeito às decisões tomadas pela corte – ou, então, a implementação de um improvável modelo republicano –, Bonifácio pregava a instalação de um regime monárquico constitucional.

Ao lado da princesa Leopoldina, ele foi fundamental no processo de convencimento que levaria à decisão do regente de ficar no País, tomada no dia 9 de janeiro de 1822, data que ficou conhecida como o Dia do Fico. E d. Pedro fez dele o primeiro brasileiro a ocupar um posto de ministro de Estado, na importante pasta dos Negócios do Reino, Justiça e Negócios Estrangeiros.

Os dois não concordaram com o passo seguinte: a convocação de eleições e de uma assembleia constituinte ainda em 1822. Mas ela aconteceu e teve um significado concreto: o afastamento cada vez mais iminente entre metrópole e colônia. Qualquer possibilidade, anteriormente aventada pelo próprio Bonifácio, de negociação com Portugal, esvaziou-se.

Em agosto, d. Pedro determinou que qualquer nova tropa enviada por Portugal seria considerada inimiga. E partiu para viagem a São Paulo. Enquanto isso, a corte enviou documentos ao Brasil determinando mais uma vez o seu retorno imediato e revogando os decretos do príncipe.

Leopoldina, que ficara no Rio como regente durante a viagem, e Bonifácio enviaram a ele cartas contando do acontecido, recebidas pouco antes da declaração da independência – os originais se perderam, mas há transcrições sobre as quais trabalham os historiadores.

“Pedro, o Brasil está como um vulcão. As Cortes Portuguesas ordenam vossa partida imediata, ameaçam-vos, humilham-vos. (…) Meu coração de mulher e de esposa prevê desgraças se partirmos agora para Lisboa”, escreveu Leopoldina. “O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio, ele fará a sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece. Pedro, o momento é o mais importante de vossa vida”, completa. A carta de Bonifácio, por sua vez, insistia na urgência do momento: a revolução estava preparada.

PROJETOS.

“José Bonifácio tinha uma ideia de nação bem definida. Em seu período em Portugal, ele sentiu que não conseguiu realizar tudo o que imaginava e culpou a burocracia e a ignorância. Agora, era como se a independência fosse uma nova oportunidade, de caráter ainda mais político, de colocar em prática um projeto. E de estar à frente dele”, diz Dolhnikoff.

Entre as propostas de Bonifácio estavam o fim da escravidão, a mudança na forma de apropriação da terra e a organização do Estado, sem a qual, acreditava, não poderia existir uma nação de fato moderna.

“Era um projeto reformista, que levava adiante as ideias do modelo norte-americano, já colocando em pauta a questão do negro e do indígena, por exemplo”, explica Rezzutti. “Se Bonifácio é o artífice da independência e de uma nova ideia de país, d. Pedro I será capaz de congregar como líder esse movimento.”

Para Isabel Lustosa, não se pode menosprezar o papel de d. Pedro I nesse processo. “Bonifácio imaginou e ele levou o projeto adiante. D. Pedro já entendia que o Estado precisava ser organizado em torno de uma Constituição capaz de manter a integridade nacional. Era um príncipe do antigo regime, mas que fez um movimento em direção ao constitucionalismo.”

A questão da integridade seria central após a independência – e uma que preocupou Bonifácio em especial. Em 1822, 1823 e 1824, foram debeladas revoluções no Pará, em Pernambuco, na Bahia e outras províncias, que resolveram se posicionar a favor de Portugal. “D. Pedro I vai demonstrar nesses episódios enorme força e determinação, mas precisamos lembrar também que esse projeto de unificação territorial era autoritário e se deu por meio da violência”, explica Lustosa.

Bonifácio não participou de todo o processo: ele e d. Pedro I se desentenderam em 1823, quando se formou a Assembleia Constituinte responsável por criar uma Constituição.

“A relação entre os dois passou a enfrentar problemas quando diferentes forças começaram a se impor no jogo político. Tanto Bonifácio quanto d. Pedro I acreditavam que o poder executivo precisava ser forte, enquanto outros grupos que participaram da constituinte preferiam dar ao parlamento o maior peso. Esses grupos eventualmente conseguiram afastar o imperador da presença constante de seu ministro. E não por acaso. Afastar Bonifácio era uma maneira de afastar também a ameaça das reformas radicais que ele pregava”, observa Dolhnikoff.

Ainda em 1823, d. Pedro fechou a constituinte e começou a preparar, com o apoio dos militares e de alguns deputados, uma Constituição que seria promulgada em 1824. Bonifácio foi preso e mandado para o exílio na Europa. De lá, retornaria apenas em 1829. Retirou-se para a Ilha de Paquetá, até que, entre 1831 e 1832, serviu como deputado pela Bahia.

Também em 1831, a relação dos dois viveu um novo episódio curioso, como diz Dolhnikoff: foi quando d. Pedro I chamou Bonifácio para ser tutor de seus filhos. “Bonifácio foi muito duro em suas críticas ao imperador, a quem xingou e desprezou em textos na imprensa. E, em troca, foi exilado. Ou seja, havia entre os dois enorme antagonismo. Então, como saber o que motivou esse convite? A hipótese que levanto é a de que Bonifácio também era inimigo da ala que, em 1831, forçaria a abdicação. E d. Pedro I não queria que a educação de seus filhos ficasse nas mãos desse grupo.”

Isabel Lustosa vê a questão por outro ângulo. “D. Pedro foi figura profundamente contraditória. Era um homem violento, mesquinho, pouco gentil no trato, traía a esposa. Mas também entendia que um rei não valeria mais só por si mesmo, preocupação que influenciou na educação dos filhos”, reflete. E Rezzutti completa: “Nas cartas dele para os filhos, mesmo os que teve fora do casamento, o imperador insistia muito na questão da educação. Havia acabado a época em que o lugar que se ocupa é determinado só por privilégios. E ele talvez soubesse que Bonifácio era o homem mais bem preparado para orientar seus filhos”.

21 de julho de 2022

O POPULISMO E A DERROCADA ARGENTINA!

(Helio Beltrão, presidente do instituto Mises Brasil – Folha de SP, 19) É assustador como a paixão pelo populismo —identificado em particular com o caudilho e general Perón e mais recentemente com o kirchnerismo— tenha arrasado o glorioso passado econômico da Argentina.

Cunhada por uma brilhante Constituição —promulgada em 1853 e inspirada por liberais—, poucas décadas depois despontou no século 20 como um dos países mais ricos do mundo. Hoje, um século mais tarde, o país tem 50% da população na pobreza e uma inflação que pode fechar o ano acima de 80%. O que ocorre e como afeta o Brasil?

O povo argentino nutre uma espécie de insanidade continuada, de idolatria a salvadores da pátria que empurrem soluções de cima para baixo. No laboratório de testes de políticas públicas, a Argentina figura como o maior fracasso mundial, com mais de cem anos de declínio.

Desde pelo menos os anos 1940, os políticos argentinos adotam políticas tóxicas ao empreendedor, à poupança, à propriedade privada, à moeda, e à ética do trabalho, o exato oposto ao que fizeram os países que mais prosperaram. O kirchnerismo dobrou a aposta.

O Brasil, rodeado por países governados pela esquerda carnívora, tem DNA parecido. Por longos períodos adotamos o intervencionismo e políticas de cunho socialista. Corremos o risco de tomar o mesmo caminho novamente, portanto é preciso entender o que ocorre nos pampas. Toda atenção é pouca ao “efeito Orloff”: “Eu sou você amanhã”.

O “hoje” da Argentina é tenebroso. O decadente governo de Alberto Fernández assinou um acordo de US$ 44 bilhões com o FMI. Apesar do selo do Fundo, o título soberano (“bond”) em dólares, que vence em 2030, o AL30, está rendendo 50% ao ano ao investidor que encarar o risco. A taxa surrealista indica altíssima probabilidade de mais um calote (default), o nono de sua história.

A inflação está descontrolada: o banco central segue financiando o governo com dinheiro criado do nada. Ato contínuo, tenta enxugar a liquidez emitindo títulos seus (os Leliq) e lançando operações similares às compromissadas que conhecemos aqui. Mas a operação-enxuga é uma bomba-relógio, com pouca toalha e muita liquidez. O frágil represamento dessa enorme liquidez, de quase duas vezes o tamanho da base monetária, vaza continuamente com o pagamento de juros altíssimos, que aumenta a massa monetária e a inflação. O iPhone 13 Pro topo de linha já é encontrado por mais de 1.000.000 (1 milhão) de pesos, por exemplo, e um óleo de cozinha sai mais caro que a cédula mais alta, de 1.000 pesos.

Na política, a oposição já lidera nas pesquisas para presidente. O kirchnerismo (“Frente de Todos”) despencou, pontuando abaixo da aliança JxC (“Juntos por el Cambio”) de Macri, Larreta e do liberal López Murphy, e empatando com a novidade da terceira via, o “Avanza Libertad”, dos libertários Javier Milei e José Luis Espert (que buscam agregar os conservadores em seu apoio).

Os argentinos estão fartos da mesmice da alternância entre o peronismo kirchnerista e o socialismo vegetariano da UCR e aliados (que fracassaram no governo Macri em mudar a agenda econômica e combater os privilégios).

Javier Milei, que lidera em algumas pesquisas, tem mérito ao demonstrar didaticamente, há tempos, que as políticas inflacionárias, de Estado grande, e antinegócios são prejudiciais aos pobres e à prosperidade.

As duas forças de oposição têm uma oportunidade única de se aliar nas próximas eleições e escantear o kirchnerismo de uma vez por todas. Será excelente para a Argentina, e para o Brasil.

18 de julho de 2022

JOSÉ BONIFÁCIO QUERIA CIVILIZAR ELITE BRANCA E CRIAR NAÇÃO MESTIÇA!

(Miriam Dolhnikoff, professora do Departamento de História da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Folha de SP, 14) Súdito do império português nascido em sua porção americana, José Bonifácio de Andrada e Silva viveu em um mundo em transformação que abria diferentes possibilidades para conceber e implementar reformas políticas e sociais. Não queria, a princípio, a independência. Defendia um império luso-brasileiro renovado por mudanças estruturais, no reino e na colônia, que o conduzissem para o que se afigurava ser uma nova era.

Nasceu em Santos, na capitania de São Paulo, em 1763, e passou a maior parte da sua vida adulta na Europa. Como muitos filhos da elite colonial, embarcou para Portugal aos 20 anos para estudar na Universidade de Coimbra, mas, ao contrário da maioria, só retornou ao Brasil com 56 anos.

Cursou a Faculdade de Direito, como era usual entre os jovens vindos da América, e a Faculdade de Filosofia, que incluía o estudo das ciências naturais. Especializou-se em mineralogia, campo que incorporava geologia, química e metalurgia, atividades essenciais no contexto do desenvolvimento da indústria da época.

Formado na Ilustração, acreditava no poder da razão e do conhecimento científico para moldar os homens e seu meio. Por isso, ao seu ver, o cientista não poderia ficar preso em seu gabinete, envolto em livros e absorto em teorias, mas deveria se dedicar à resolução dos problemas que afligiam a sociedade e obstruíam o progresso material.

José Bonifácio fazia parte do grupo de letrados portugueses reunidos na Academia das Ciências de Lisboa que, sob a liderança de dom Rodrigo de Souza Coutinho, ministro de dom João, se empenhou em desenhar políticas para a modernização da economia.

A partir de 1801, dez anos depois de uma viagem de estudos por vários países europeus, recebeu de dom Rodrigo a incumbência de ocupar diversos cargos públicos, de modo que o mineralogista pudesse converter seu saber em políticas concretas. Procurou dinamizar a exploração de carvão, a fundição de ferro e outras atividades que estimulassem a manufatura. Foi também responsável por criar a cadeira de metalurgia na Universidade de Coimbra.

Sua vida seria alterada com a invasão de Portugal pela França em 1807, resultado da guerra entre franceses e ingleses, dos quais Portugal era aliado. A Corte fugiu para o Brasil, e Bonifácio permaneceu no reino para lutar contra os invasores.

Vencidos os franceses em 1810, demorou-se ainda alguns anos em Lisboa. Porém, expressava profundo desgosto e desilusão por ver seus esforços, no exercício dos cargos que ocupava, frustrados por seguidos entraves burocráticos. Era a hora de se aposentar e voltar à terra natal.

Encontrou um Brasil diferente quando chegou em 1819. Com a vinda da Corte, o Rio de Janeiro foi elevado à capital do império lusitano e o Brasil não era mais colônia —adquirira o estatuto de reino, o mesmo de Portugal. A intenção de Bonifácio era se retirar da vida pública. No entanto, em 1820, a revolução constitucionalista do Porto o impeliu para a política.

Os revoltosos exigiam a transferência da Coroa para Portugal e a instauração de uma monarquia constitucional. Com esse fim, convocaram as Cortes, assembleia que deveria escrever a Constituição do novo regime. As províncias da América elegeram seus deputados. O liberalismo unia os portugueses dos dois lados do Atlântico e inaugurava um novo tempo.

Bonifácio participou desses acontecimentos em São Paulo. Não se candidatou a deputado, mas escreveu uma espécie de programa para orientar os representantes paulistas na sua atuação nas Cortes. Nele, defendia o império luso-americano.

O Brasil permaneceria subordinado a Lisboa, mas contaria com um governo autônomo para tomar as decisões referentes à América. Sua direção caberia ao herdeiro do trono, dom Pedro, tornado príncipe regente depois que o rei dom João 6º obedeceu às ordens dos rebeldes vitoriosos e voltou a Portugal.

O cenário, contudo, foi de disputa. Os portugueses do reino não aceitavam a autonomia pretendida pelos brasileiros. Insistiam no retorno de dom Pedro a Lisboa e no desmonte das instituições instaladas no Rio de Janeiro quando para lá se transferiu a Coroa lusitana.

Em reação, setores da elite luso-brasileira, entre eles Bonifácio, se articularam em um movimento que reivindicava a permanência do príncipe, estabelecendo com ele uma aliança em nome de objetivos comuns: impedir que a América portuguesa seguisse o exemplo de seus vizinhos que optaram pela independência e assegurar sua unidade diante do perigo de fragmentação territorial.

Para Bonifácio, isso significava ainda garantir as condições para a adoção das reformas que defendia. Dom Pedro permaneceu no Rio de Janeiro e, em janeiro de 1822, nomeou Bonifácio ministro do Reino e Estrangeiros.

Diante da intransigência das Cortes, dom Pedro e Bonifácio caminharam juntos para a Independência, que passou a ser uma alternativa concreta em agosto daquele ano. Ele estava no centro das articulações que levaram à ruptura com a metrópole, atuando para que todo o território da América portuguesa fosse integrado em um novo país, o que incluiu o envio de tropas para províncias que resistiam a aderir ao Rio de Janeiro.

A Independência trazia consigo o desafio de construir um Estado e uma nação. Não havia, entretanto, consenso entre aqueles que estavam à frente desse processo sobre o perfil das instituições a serem organizadas, do país a ser constituído, do tipo de sociedade que deveria prevalecer.

Concordavam com a adoção de um regime liberal, com separação entre os Poderes, eleição de representantes para o Parlamento, súditos que se transformariam em cidadãos portadores de direitos individuais e políticos. Como, no entanto, materializar esse regime em uma sociedade escravista e marcada por uma profunda hierarquia social?

Bonifácio acreditava ter a resposta com seu projeto nacional, uma renovação profunda a ser conduzida pelo governo com o objetivo de civilizar uma população que, para ele, estava imersa na barbárie. Ele pretendeu amalgamar os metais de que dispunha em seu laboratório social para obter a têmpera de uma nação europeizada.

A natureza e a história forneceriam os elementos necessários, bastando os instrumentos da razão e do saber, postos a serviço do poder forjador do Estado, para sua transmutação em metal nobre. O Estado, em sua visão, seria o agente que, de cima para baixo, irradiaria essas mudanças. Por essa razão, a monarquia constitucional que defendia era altamente centralizada, com um Executivo forte e capaz de implementar as reformas que tornariam o país viável.

Não só o povo deveria ser civilizado antes de poder ser senhor de si, mas também a elite branca, por viver da exploração de escravizados.

Dela, resultava a violência, o ócio e o isolamento que marcavam o cotidiano dos grandes proprietários, incapacitados, portanto, para o exercício da cidadania e do compromisso com o bem comum. Em razão da escravidão, aferravam-se ainda a práticas agrícolas tradicionais, com a devastação das matas que empobrecia os recursos naturais, e resistiam à modernização das técnicas utilizadas na agricultura.

As medidas que deveriam ser adotadas eram radicais: abolir a escravidão, integrar o indígena, disseminar a educação e promover a mestiçagem. Todas visavam criar um povo homogêneo, a única forma de gerar um sentimento nacional e a aptidão para a cidadania.

Por meio da mestiçagem, surgiria uma nova raça com um repertório comum, moldado pela educação, meio para que a massa miscigenada adquirisse os valores, os costumes e os hábitos dos povos cultos. Os brancos teriam contribuição fundamental nesse projeto, ao inocular o sangue europeu na mistura que também seria cultural.

O pressuposto de Bonifácio era que todos os homens tinham capacidade intrínseca para alcançar o estágio superior que idealizava, inclusive os negros e os indígenas, mas só se tivessem condições de vida que propiciassem o desenvolvimento de suas potencialidades.

Por isso, era imperativo emancipar os negros e integrar os indígenas “selvagens”. Os primeiros, em razão da escravidão, eram refratários a uma civilização da qual só conheciam o trabalho excessivo e o açoite. O negro africano era, assim, um bárbaro em terras brasileiras, não por sua natureza, mas por ser escravo. Era a escravidão que o barbarizava, não sua origem, cor ou raça.

Além de empecilho para o exercício pleno da cidadania por negros e brancos, a escravidão ainda representava um permanente perigo para a manutenção da ordem. Bonifácio alertava para o risco de manter uma parcela da população em situação de inimiga interna, já que escravizada. Em vez de inimigos, seriam alçados a cidadãos, reconhecendo, dessa forma, o Estado e o pertencimento à nação brasileira.

A principal beneficiária seria, afinal, a própria aristocracia dirigente. No entanto, não era suficiente libertar os escravos: era preciso que o governo tomasse para si a tarefa de integrá-los à sociedade, fornecendo-lhes terras, o que lhes proveria meios de subsistência.

Nenhum bem resultaria se os negros fossem simplesmente abandonados à própria sorte. Na visão de Bonifácio, a profunda hierarquia social seria preservada dessa forma, porque educação e meios de subsistência seriam distribuídos na medida certa para converter ex-escravizados em trabalhadores disciplinados.

Bonifácio era uma exceção no seio do grupo dirigente, e suas convicções reformistas atraíram uma oposição feroz a ele. Em julho de 1823, foi demitido do ministério em função das desavenças com aqueles que disputavam o poder e o programa de nação.

Assumiu, então, sua cadeira de deputado na Assembleia Constituinte, que se reunira em março de 1823 para escrever a Constituição brasileira, e apresentou um projeto de lei, propondo o fim do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão. Enquanto a emancipação não ocorria, caberia ao governo mediar a relação entre senhores e escravos, regulando-a de modo a retirar do primeiro o pleno arbítrio sobre a vida de seus cativos. Essa mediação, por si só, já seria uma novidade.

Os artigos da lei que apresentou estipulavam normas para reger o trabalho dos negros então escravizados, com restrições à exploração de menores e mulheres, determinação da jornada de trabalho e previsão de fornecimento de alimentação e vestuários adequados pelos senhores.

Além disso, Bonifácio prescrevia medidas paliativas, para diminuir o risco de revoltas e preparar os escravizados para serem livros no futuro, e que ficaria a cargo do poder público, não mais dos senhores, o julgamento e a punição de infratores.

Porém, antes que o projeto entrasse em discussão e que a Constituição fosse promulgada, dom Pedro fechou a Constituinte, em novembro de 1823. Bonifácio foi condenado ao exílio na França, onde amargou sua derrota.

Para ele, haviam sido derrotados tanto o regime liberal, com a outorga de uma Constituição pelo imperador em 1824, quanto seu projeto nacional, com a continuidade da ordem escravista.

De volta ao Brasil anos depois, Bonifácio obteve certo protagonismo ao ser nomeado tutor de dom Pedro 2º, depois da abdicação do pai, em 1831. Mais uma vez, sofreu forte oposição de políticos que não concebiam que o jovem imperador fosse formado pelas ideias reformistas de Bonifácio. Destituído da tutoria em dezembro de 1833, foi colocado em prisão domiciliar em Paquetá e morreu em 1838.

A maior ilusão de Bonifácio foi, talvez, a volúpia voluntarista que o fez acreditar que o homem poderia escrever o futuro segundo exclusivamente sua vontade. Ele sabia, por outro lado, que não podia prescindir do apoio daqueles que compartilhassem sua visão ilustrada e tentou convencer a elite brasileira do que seriam seus reais interesses: aceitar o fim da escravidão e integrar os negros à sociedade para garantir a ordem, tendo na base da hierarquia social uma população homogênea e devidamente instruída.

Bonifácio falava aos grupos dominantes e só poderia ter sido bem-sucedido se contasse com a adesão de seus pares, mas encontrou uma forte resistência da elite, que não estava disposta a pagar o preço das reformas que supostamente a beneficiariam.

A alternativa que restava era inconcebível para um membro da elite branca brasileira do século 19: a mobilização de parcelas da população excluídas do poder. Ele acreditou ser possível transformações de fundo, econômicas e sociais, por meio de um projeto político que não era capaz de incorporar como agentes efetivos os diferentes setores de uma população heterogênea. Acabou derrotado.

15 de julho de 2022

LEI DE ORÇAMENTO TRAVA ANTECIPAÇÃO DE ELEIÇÃO!

(The Washington Post/O Estado de S. Paulo, 15) A Itália teve 67 governos desde a 2.ª Guerra, mas nunca realizou uma eleição durante o verão (no Hemisfério Norte). E há uma razão muito específica para isso. Mesmo que o governo do premiê Mario Draghi entre em colapso, é muito improvável que uma votação antecipada ocorra antes do fim de setembro (outono).

A razão se deve principalmente às etapas estabelecidas na Constituição italiana para formar um governo e à necessidade de ter um novo orçamento a cada ano, em meados do outono. Isso significa que, se uma eleição ocorresse antes disso, não haveria tempo suficiente para formar um governo estável, negociar e aprovar um orçamento no prazo.

Analistas do Goldman Sachs veem um risco baixo de eleições antecipadas e escreveram em uma nota recente que esperam que o atual governo continue até o primeiro semestre do próximo ano.

PRAZOS. O primeiro passo formal para convocar uma nova eleição é o presidente italiano, Sergio Mattarella, dissolver o Parlamento. Depois disso, deve-se esperar 45 dias para que os italianos sejam convocados às urnas.

Os mecanismos políticos italianos são notoriamente bizantinos e sujeitos a longos atrasos. Mas mesmo sob um cenário muito eficiente, uma votação não ocorreria até meados de setembro, no mínimo. Ainda assim, isso seria apenas o início de um longo processo para ter um novo governo com plenos poderes. Após a votação, um Parlamento recém-nomeado ainda precisaria consultar possíveis primeiros-ministros, e só depois disso iniciaria os trabalhos para uma nova lei orçamentária.

Se um processo de votação antecipada fosse acionado, Draghi ainda atuaria como uma espécie de zelador, mas seus poderes seriam limitados. Seria difícil elaborar um orçamento para 2023, que por lei precisa ser apresentado à União Europeia até meados de outubro.

“Eleições antecipadas são um resultado improvável”, disse Stefano Ceccanti, professor de direito constitucional da Universidade La Sapienza e legislador do Partido Democrata. “Draghi provavelmente permanecerá para preparar o terreno para a lei orçamentária, seguindo a pressão internacional para manter as contas econômicas sob controle.”

13 de julho de 2022

O BRICS NUMA NOVA ETAPA!

(Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior – O Estado de S. Paulo, 12) O Brics, grupo de países que inclui o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, reuniu-se em junho pela 14.ª vez, em nível presidencial, virtualmente, em Pequim. Precedido de reunião de chanceleres, o encontro buscou aumentar a parceria entre o grupo e atuar por uma nova era para o desenvolvimento global, com base em três pilares: governança global, economia e comércio e interação da sociedade civil.

O peso crescente das economias emergentes e em desenvolvimento encontrou no Brics uma representação que tenderá a se tornar, numa visão de médio e de longo prazos, cada vez mais visível no cenário internacional. Duas das três maiores economias do mundo (China e Índia), uma das duas maiores potências nucleares (Rússia) e um dos maiores produtores agrícolas globais (Brasil) fazem parte do grupo. O Brics, além de representar um fator de dinamismo econômico no cenário internacional, contribui para a geração de empregos e renda nos países-membros. Criado há 16 anos, o grupo, que não deve ser identificado como uma aliança política, tem contribuído para ampliar o conhecimento mútuo e as oportunidades de cooperação entre as respectivas economias, por meio de centenas de reuniões técnicas anuais.

O Brics passou a viver, desde fevereiro, um momento delicado pelo fato de um de seus membros estar envolvido num conflito militar de grande repercussão e alcance. Seria estranho se a crise não fosse tratada na reunião presidencial de Pequim, mas referência direta à guerra na Ucrânia foi evitada pelo Brasil, assim como pela Índia e pela África do Sul. Há uma referência direta ao conflito no comunicado final, notando que a situação na Ucrânia foi discutida, que foram lembradas as posições nacionais expressas nos fóruns apropriados – nomeadamente, o Conselho de Segurança da ONU e a Assembleia-geral das Nações Unidas – e que foram apoiadas as conversações entre a Rússia e a Ucrânia.

A China e a Rússia usaram a reunião de cúpula anual do Brics para criticar os países do Ocidente e as sanções aplicadas contra Moscou em razão da guerra na Ucrânia. O grupo deveria “assumir a responsabilidade” e trabalhar pela “igualdade e justiça” no mundo, disse o presidente chinês, Xi Jinping, em seu discurso de abertura. Ele apelou para que os países do Brics se oponham às sanções impostas pelo Ocidente. Xi já havia feito comentários semelhantes, pouco antes, no fórum empresarial do Brics, quando disse que as sanções eram “um bumerangue e uma espada de dois gumes” que afetavam todos os países do globo e advertiu contra a “expansão de alianças militares”, como vem ocorrendo com a Otan, com a inclusão da Suécia e da Finlândia.

O presidente russo, Vladimir Putin, por sua vez, culpou “ações impensadas e egoístas de certos países” pela crise econômica global e disse que “cooperação honesta e mutuamente benéfica” seria a única saída para essa crise. “Esta situação de crise que se configurou na economia global devido às ações impensadas e egoístas de certos Estados que, usando mecanismos financeiros, essencialmente transferem a culpa por seus próprios erros de política macroeconômica para o mundo inteiro”. O líder russo também afirmou que a autoridade e a influência do Brics em nível mundial estariam “aumentando constantemente” à medida que os paísesmembros aprofundavam sua cooperação e trabalhavam para “um sistema verdadeiramente multipolar de relações interestaduais”. No fórum empresarial do bloco, Putin havia ressaltado o aumento de parcerias comerciais e da exportação de petróleo russo para países do Brics.

Para o Brasil, segundo Bolsonaro, o Brics é um modelo de cooperação com ganhos para todos, inclusive para a comunidade internacional, e, por isso, as prioridades devem ser escolhidas com responsabilidade e transparência.

Embora enfatizando que o grupo não pretende lutar contra ou substituir as organizações multilaterais, no comunicado final, os países-membros consideram importante somar esforços para tornar as instituições multilaterais, políticas e econômicas, mais eficazes, transparentes e democráticas. Menciona-se de forma especial a reforma do

Conselho de Segurança da ONU, com vistas a torná-lo mais representativo, eficaz e eficiente, e para aumentar a representação dos países em desenvolvimento de maneira que possa responder adequadamente aos desafios globais. China e Rússia reiteraram a importância que atribuem ao status e ao papel do Brasil, da Índia e da África do Sul nos assuntos internacionais e apoiam sua aspiração de desempenhar um papel mais importante na ONU.

Por iniciativa da China, foi discutida a possibilidade de expansão do número de participantes. Sem contar com o apoio do Brasil e da Índia para o aumento de membros do grupo, os países decidiram continuar as discussões e esclarecer os princípios, critérios e procedimentos para o exame do processo de adesão. Tendo em vista as incertezas que cercam a evolução do Brics em razão da crise militar com a Rússia e seus possíveis desdobramentos, não parece oportuna agora a discussão sobre a expansão do número de seus membros.

O Brics não deverá se dividir nem desaparecer. A duração da guerra na Ucrânia e a evolução geopolítica global vão influir nas etapas futuras do grupo.

12 de julho de 2022

QUEM FOI HARRIET MARTINEAU, A POUCO CONHECIDA FUNDADORA DA SOCIOLOGIA!

(Folha de SP, 09) No começo dos anos 1980, quando cursava ciências sociais na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Celso Castro foi apresentado aos autores considerados fundamentais para quem quisesse se aventurar naquela disciplina. Não é difícil imaginar que todos eram homens brancos nascidos nos Estados Unidos ou na Europa.

Castro conheceu pensadores como o alemão Karl Marx (1818-1883), o francês Émile Durkheim (1858-1917) e o alemão Max Weber (1864-1920), apontados como pais fundadores daquela que viria a ser sua área de pesquisa.

Essa trinca, no entanto, nunca foi unânime. O francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) não teria lugar entre os pioneiros, já que seu volumoso “Da Democracia na América”, cujas duas partes saíram em 1835 e 1840, é um clássico da ciência política?

E o que dizer do também francês Auguste Comte (1798-1857), que lançou mão da palavra sociologia ainda em 1839 para designar uma nova ciência? Segundo ensinou na 47ª lição de seu “Curso de Filosofia Positiva”, à sociologia caberia analisar as leis fundamentais específicas aos fenômenos sociais.

Quase meio século depois, Durkheim afirmou em seu curso de ciências sociais que Comte tinha apenas empregado a palavra e indicado o propósito da sociologia, sem, contudo, ter criado de fato uma nova área do conhecimento.

A crer nessa linha de argumentação, o marco inaugural da sociologia poderia ser a publicação de “As Regras do Método Sociológico”, de 1895, livro no qual Durkheim defende que os fatos sociais devem ser tratados como coisas.

Essa foi a história que Celso Castro aprendeu, assim como os demais estudantes que vieram antes ou depois dele, em um ciclo que se retroalimenta: professores ensinam esses autores, alunos os estudam e, quando se tornam professores, voltam a indicá-los para seus próprios alunos.

Como uma serpente que morde o próprio rabo, ninguém tinha a boca livre para perguntar: onde estão as mulheres, onde estão as pessoas não brancas e os pensadores não ocidentais?

Talvez venha à mente a hipótese de que o mundo do século 19 era ainda mais excludente que o de hoje, de modo que apenas homens brancos ocidentais teriam condições materiais de se dedicar a uma carreira acadêmica e produzir conteúdo digno de nota. Opressão gerando mais opressão.

Essa explicação funciona para boa parte dos casos, mas não para todos. Quem duvidar pode tirar a prova com o livro “Além do Cânone: para Ampliar e Diversificar as Ciências Sociais”. Na obra, ele apresenta 16 pensadores e pensadoras que fogem ao estereótipo dessa tradição ocidental, muitos dos quais o próprio Castro desconhecia.

“Não tenho vergonha alguma de reconhecer isso. Foram meses intensos de descoberta e de aprendizado que me fizeram ver, 40 anos depois de ter iniciado o meu curso de graduação, a enorme dimensão da minha ignorância em relação às possibilidades que as ciências sociais podem nos oferecer como instrumento de conhecimento da realidade social”, diz.

“Em décadas recentes, ampliou-se a ‘descoberta’ e inclusão de autoras, de não brancos e não ocidentais, mas principalmente em disciplinas mais especializadas, de pós-graduação etc. O que não se ampliou até hoje foi o cânone”, afirma Castro, que é professor da FGV, onde dirige o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) e a Escola de Relações Internacionais.

Sua proposta é justamente essa: ampliar o cânone, não substituí-lo. Há bons motivos para que os clássicos sejam considerados clássicos, mas não há boa justificativa para que mulheres e negros, por exemplo, fiquem sempre alocados em nichos, como feminista, decolonial ou do Sul. Por que não poderiam pertencer à “grande tradição”?

“Acho necessário e importante inserir essas autoras e autores que estão no livro não para manter um ‘equilíbrio’, uma ‘cota’, ou por razões de afirmação identitária em relação ao cânone tradicional, mas sim porque são muito bons e porque nos ajudam a entender melhor a realidade social”, afirma Castro.

Seu livro, mais uma vez, serve de prova. Após a apresentação de cada um dos 16 pensadores, Castro inclui trechos de seus textos, boa parte dos quais inéditos no Brasil. Assim, o leitor pode julgar por conta própria o pioneirismo, o impacto e a qualidade de intelectuais que bem poderiam pleitear um lugar entre os pioneiros das ciências sociais.

Castro não está sozinho. A socióloga Fernanda H. C. Alcântara, professora da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), considera o apagamento de Martineau uma injustiça histórica.

“Não existe um motivo para que Martineau não tenha o seu reconhecimento como fundadora da sociologia. Ela não foi apenas mais uma pessoa que participou do processo. Em 1838, ela já falava da necessidade de sistematizar os estudos da ciência da sociedade e escreveu um livro a esse respeito”, diz.

A fim de divulgar a obra de Martineau e garantir o ingresso dela na agenda das ciências sociais no Brasil, Alcântara se dispôs a traduzir por conta própria alguns livros da pioneira britânica.

Em 2021, saiu “Como Observar: Morais e Costumes”, disponível para compra no blog da autora. Em julho deste ano, terá à mão o primeiro volume de “Sociedade na América”, que ela pretende publicar em quatro partes, em vez das duas originais, mantendo intervalo de três a quatro meses entre cada uma delas.

Alcântara afirma que Martineau teve elevado reconhecimento no século 19, mas depois, sem que fique nítido por qual motivo específico, ela passou a ser negligenciada.

“O processo de construção do cânone foi um movimento sobretudo de exclusão e de suposta criação de uma identidade para a nova ciência, que já nem era tão nova assim. Vários autores e autoras foram apagados da história da sociologia nesse processo”, diz a socióloga. “Embora façamos sempre essa associação entre o cânone e a fundação da sociologia, existe entre esses dois elementos ao menos meio século de diferença.”

Dentro dessas escolhas políticas para formação do cânone, não há de ser coincidência que a britânica tenha ficado de fora. “Trata-se de uma visão muito diferente quanto aos elementos que constituem a sociedade, com destaque para o fato de que Martineau não excluiu da análise as mulheres e os escravos. Suas contribuições consideram a possibilidade de objetividade, sem negligenciar todas as possíveis formas de interferência no processo de produção do conhecimento”, afirma Alcântara.

Celso Castro celebra o empenho de Alcântara em passar o trabalho de Martineau para o português. “É importantíssimo que sejam feitas mais traduções, pois de outro modo o acesso a estudantes de graduação ficará muito limitado”, diz.

“Espero que o ‘Além do Cânone’ ajude a formar cientistas sociais em uma perspectiva mais ampla, diversa e colorida que aquela que presidiu minha formação. E, mais importante, que desperte nos seus leitores o mesmo sentimento que tive: paixão pelo mundo, vasto mundo, das ciências sociais”, afirma Castro.

O seu livro de fato permite uma degustação bastante saborosa de outros pensadores em geral não considerados entre os clássicos. São intelectuais do Haiti e do México, da Índia e do Japão, do Irã, da Turquia e da antiga Rodésia do Sul; são homens e mulheres, brancos e não brancos.

Compõem um quadro muito mais abrangente e diversificado das ciências sociais e da sociedade que aquele no qual só aparecem os mesmos de sempre.

Dada a qualidade dos trechos selecionados em “Além do Cânone”, resta esperar que mais pesquisadores se proponham a traduzi-los para o português, de forma que possam ser apreciados não como aperitivo, mas como prato principal.

11 de julho de 2022

O CÍRCULO VICIOSO LATINO-AMERICANO!

(O Estado de S. Paulo, 08) O grupo The Economist produziu um dossiê sobre a América Latina. O tema rendeu uma matéria de capa na revista. O título não poderia ser mais eloquente: Como as democracias declinam – Estagnação econômica, frustração popular e polarização política estão reforçando umas às outras.

Há não muito tempo o futuro era promissor. O superciclo das commodities possibilitou novos programas sociais. A redução da desigualdade reforçava a redemocratização. Mas os governantes não empenharam seu capital político em modernizações estruturais (políticas, tributárias, administrativas) e desperdiçaram o capital físico que deveria ser investido nas engrenagens de um crescimento sustentável, como infraestrutura, educação, produtividade e diversificação econômica.

Se aquele círculo virtuoso era frágil, o atual círculo vicioso é forte. Uma década de estagnação acentuou a frustração, especialmente entre os jovens, com a falta de oportunidades. A ira popular se voltou não só contra os incumbentes políticos, mas contra a política. A esperança em salvacionistas autoritários cresce. Mas, além de serem tão ou mais ineficientes que seus pares moderados, eles dilapidam o Estado Democrático de Direito. Mesmo países que logravam um razoável desenvolvimento econômico e, em parte, social, como Chile, Peru ou Colômbia, foram tomados pela febre populista.

O Financial Times publicou um editorial com um título igualmente sugestivo: O tumulto político na América Latina durará até que suas economias sejam reformadas. Com efeito, a combinação de privilégios oligopolistas e protecionismo perpetua a baixa produtividade do setor privado e a falta de investimentos e inovação que são chave para a mistura tóxica de desigualdade e baixo crescimento – tornada explosiva pela violência política, criminal e social.

Mas, na esfera pública, o centro desmorona, a direita, em nome da “liberdade”, se aferra a regalias elitistas e a esquerda, em nome da “igualdade”, a manias utopistas e ultrarregulatórias (exacerbadas quase a ponto da caricatura, por exemplo, na Constituinte do Chile).

“A política está marcada não apenas pela polarização, mas também pela fragmentação e a extrema fraqueza dos partidos políticos, tornando difícil congregar maiorias governantes estáveis”, diagnostica a Economist. “Essa espiral descendente é acelerada pela influência maligna das redes sociais e pela importação de políticas identitárias do Norte.”

O Brasil é um caso exemplar do círculo vicioso latino-americano. Exasperados com a precariedade dos serviços públicos, a corrupção e a deterioração socioeconômica, os brasileiros elegeram o (supostamente) anti-establishment Jair Bolsonaro. Mas a sua mistura de autoritarismo político e indigência administrativa só piorou essas condições. Para sustentar seu mandato ele franqueou as cartas do Executivo aos fisiologistas do Congresso, e para renová-lo inflama sua ideologia reacionária e disruptiva. Resta pouca esperança quando o favorito às eleições, Lula da Silva, só tem a oferecer os mesmos hábitos e ideias retrógrados que gestaram as condições para a ascensão de Bolsonaro.

A armadilha do subdesenvolvimento latino-americano é tanto mais dramática porque não faltam recursos para desarmá-la. Afastada de conflitos geopolíticos graves, a região é rica em culturas multiétnicas e em alimentos, minérios e energia renovável que a colocam em uma posição-chave para tirar proveito de grandes tendências políticas e econômicas globais, como a disputa entre China e EUA ou a alta das commodities, e solucionar grandes desafios do século 21, como a segurança alimentar ou as mudanças climáticas.

“A tentação será ignorar o mal-estar econômico e político e simplesmente surfar no novo boom das commodities detonado pela guerra na Ucrânia. Isso seria um erro”, adverte a Economist. “Não há atalhos. Os latino-americanos precisam reconstruir suas democracias de baixo para cima. Se a região não redescobrir a vocação para a política como um serviço público e reaprender o hábito de forjar consensos, seu destino só piorará.”

08 de julho de 2022

ESQUERDA VOLVER?!

(Roberto Teixeira da Costa, conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais e do Conselho Empresarial da América Latina – Estado de S. Paulo, 07) Sem surpresa, ainda que por margem estreita, Gustavo Petro foi eleito presidente da Colômbia no segundo turno, em 19 de junho, e será o primeiro político de esquerda a governar o país. Em sua juventude, participou do extinto grupo guerrilheiro M-19, foi senador durante dois mandatos e prefeito de Bogotá. A Colômbia era vista como um dos últimos redutos conservadores de nossa região. Em suas primeiras declarações, Petro indicou que irá priorizar o problema da fome, já que 39% da população da Colômbia vive em situação de pobreza extrema.

A vice-presidente na chapa de Petro, Francia Márquez, é a primeira mulher negra a ser eleita no Poder Executivo da região.

Com a eleição de Petro, temos agora seis presidentes de esquerda na região.

Relembrando: López Obrador, no México; Gabriel Boric, no Chile; Pedro Castillo, no Peru; Luis Arce, na Bolívia; e Nicolás Maduro, na Venezuela. Mas eu também incluiria Alberto Fernández como sendo de esquerda, o presidente da Argentina que acaba de declarar apoio a Lula, fala em buscar uma política comum de atuação na região e passa por momento difícil, pois Cristina Kirchner continua tendo muita influência no governo. Caso Lula seja eleito, confirmando as pesquisas eleitorais para 2/10/2022, teremos oito presidentes de esquerda na região e um governo ditatorial na Venezuela.

No Equador, o presidente Guillermo Lasso, da direita, vem enfrentando violentas manifestações de grupos indígenas, que têm presença política relevante, contra a alta nos preços dos combustíveis, que, aliás, é uma constante mundo afora.

Assim, as eleições recentes indicam nova guinada para a esquerda, num movimento pendular, como vimos no passado?

Uma possível explicação para essa guinada seriam a pandemia, a guerra na Ucrânia e, mais recentemente, a inflação, que vieram a agravar os desníveis de renda e colocaram nossa região numa posição crítica e inaceitável. Assim, não me parece que seja um movimento simplesmente pendular, mas tenho dúvidas se os novos governantes conseguirão alterar o quadro descrito. Tentarão reformas mais agressivas para mitigar os efeitos perversos da desigualdade, mas terão de enfrentar Congressos divididos, sem um matiz ideológico claro. E, nesse contexto, registro a grande descrença nos políticos e, inclusive, no regime democrático, que é questionado.

Este quadro não é exclusivo de nossa região. A reeleição de Emmanuel Macron, na França, foi dificultada pela extrema-direita liderada por Marine Le Pen, que nas eleições parlamentares de 19 de junho conseguiu ampliar para 89 seus representantes (antes eram 8), e a frente de esquerda, liderada por Mélenchon, terá a segunda força na Câmara. Assim, Macron terá de fazer concessões para poder governar e cumprir seus projetos, entre eles a reforma da previdência, que continuará enfrentando grande resistência.

A maior democracia, os EUA, passa também por momentos difíceis, buscando recuperar-se do desastroso governo de Donald Trump e com Joe Biden constatando perda de popularidade. Fareed Zakaria, importante articulista do The Washington Post, em recente artigo, sob o título A intrigante impopularidade de Biden, aponta a inflação como fator predominante, com o consequente enfraquecimento da liderança de Biden em seu próprio partido. Os republicanos também não estão tornando sua vida nada fácil num quadro de altas taxas de juros e ameaça de recessão no médio prazo. Para surpresa de muitos, mesmo com o desgaste de Trump, que está sofrendo uma CPI que analisa a invasão ao Capitólio, existe um bolsão republicano que continua apoiando o ex-presidente.

Assim, os democratas nos EUA correm o risco de perder a maioria nas eleições de meio do ano (8 de novembro). Ficou muito difícil a aprovação de medidas apresentadas por Biden e ele corre o risco de não ser reeleito em 2024.

É nesse complexo cenário mundial que a democracia está sendo questionada, e quando teremos nossas eleições em 2 outubro. Precisamos, mais do que nunca, escolher um presidente que tenha o perfil de estadista capaz de implementar não só políticas internas para mitigar os efeitos da pobreza e da desigualdade social que assolam o País, mas, ao mesmo tempo, que dê a devida atenção à nossa política externa, para que estejamos em condições de reposicionar nosso país na nova geopolítica mundial. Certamente, contaremos com as consequências da guerra na Ucrânia e teremos de reparar os desgastes sofridos em anos recentes em nossas relações internacionais. É condição essencial para que o Brasil volte a ocupar uma posição condizente neste novo cenário, com o potencial que temos a oferecer. Infelizmente, nenhum dos atuais candidatos parece ter esse perfil.

Temos de admitir que a política externa não tem peso no julgamento dos eleitores e, consequentemente, nos programas dos candidatos, e a gravidade da política interna será mais relevante para quem for eleito, herdando uma situação fiscal que será de difícil solução no curto prazo.

Concluiria ser razoável imaginar que a predominância da esquerda em nossa região enfrentará dificuldades, não apenas na coordenação de suas políticas entre os diferentes países, mas também em como lidar com Congressos divididos.

07 de julho de 2022

RESSONÂNCIA DO MOVIMENTO PERMANECE NO PAÍS COMO SIMBÓLICA’!

(Boris Fausto, cientista político e historiador – O Estado de S. Paulo, 04) Com o livro A Revolução de 1930, o cientista político e historiador Boris Fausto provocou uma mudança nas análises sobre o tenentismo. Ele vê nos jovens militares um espírito que, “em grande linha, não era democrático”. “Era salvacionista. Propugnarão a manutenção da ditadura do Getúlio (Vargas).”

Que balanço o sr. faz dos impactos do tenentismo?

Foi um movimento que teve grande impacto na história da Primeira República. Foi um primeiro movimento armado de envergadura – houve outros, localizados – que rompe com a tradição de acomodação. O episódio do Forte de Copacabana, a revolta em São Paulo e a coluna Prestes-miguel Costa tiveram uma ressonância do País que permanece atualmente como simbólica. Mas o movimento teve limites. Nenhum tenente assumiu o comando do País.

Como ele atuou na luta política entre as oligarquias?

Após 1930, o grosso do tenentismo se acomoda no getulismo. A tendência, desde o início, é restritiva ao regime democrático. Eles querem reformar o País, acabar com o Brasil oligárquico, centralizar o poder. Era salvacionista. Propugnarão a manutenção da ditadura do Getúlio. Eles não queriam a Assembleia Constituinte, pois temiam a volta das oligarquias ao poder. Daí porque desejavam prolongar o governo provisório, que era uma ditadura.

Quem de fato os tenentes representavam?

Esta é uma chave da minha interpretação da Revolução de 1930 e do tenentismo. Ele não representava as classes médias. Hoje ninguém duvida disso. Ele era visto pelas classes médias urbanas com grande esperança. A coluna era simbólica da redenção do País. Mas era um movimento de militares, com ética e ótica militar e, embora não desvinculado das classes, deve ser investigado pelo que era, não como instrumento das classes médias.

06 de julho de 2022

POR QUE A INFLAÇÃO DEVE SEGUIR ACIMA DO NÍVEL PRÉ-PANDEMIA!

(O Estado de S. Paulo, 03) As más notícias a respeito da inflação continuam chegando. Nos países ricos ela está acima de 9% ao ano e não ficava tão alta desde a década de 1980 – e nunca houve tantas “surpresas com a inflação”, com dados maiores do que o previsto pelos economistas. Isso, por sua vez, está afetando fortemente a economia e os mercados financeiros. Os bancos centrais estão aumentando as taxas de juros e encerrando programas de compra de títulos, devastando as ações. Em muitos países, a confiança do consumidor está menor do que nos primeiros dias da pandemia de covid-19. Indicadores de todos os setores, desde a habitação até a produção industrial, sugerem que o crescimento econômico está desacelerando de forma acentuada.

O que acontecerá com os preços ao consumidor é uma das questões mais importantes para a economia global. Muitos analistas esperam que a inflação anual diminua em breve, em parte porque os preços das commodities devem cair na comparação ano a ano, após aumentos significativos em 2021. Em projeções econômicas mais recentes, o Federal Reserve, por exemplo, espera que a inflação anual nos EUA (medida pelo índice de despesas de consumo pessoal) caia de 5,2%, no final de 2022, para 2,6% até o final de 2023.

É perdoável não levar essas previsões tão a sério. Afinal, a maioria dos economistas não foi capaz de ver a onda inflacionária chegando e, depois, previu erroneamente que ela desapareceria depressa. A futura trajetória da inflação está, em grande parte, cercada de incertezas.

As preocupações com a inflação podem apontar para três outros indicadores que sugerem ser improvável o mundo rico retornar tão cedo ao padrão anterior à pandemia, de crescimento de preços baixo e estável: aumento salarial crescente e expectativas de inflação maior tanto de consumidores como de empresas. Se prolongados, juntos, poderiam contribuir para o que o Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), o banco central dos bancos centrais, descreveu em relatório de 26 de junho como um “ponto crítico”. Além disso, advertiu o BIS, “uma psicologia inflacionária” poderia se espalhar e se tornar “arraigada”.

INDEXAÇÃO. Há evidências crescentes de que os trabalhadores estão começando a negociar por salários mais altos. Isso poderia criar outra rodada de aumentos de preços conforme as empresas repassam as despesas extras. Uma pesquisa do Banco da Espanha sugere que metade dos acordos de negociação coletiva assinados para 2023 contém “cláusulas de indexação”, o que significa que os salários estão automaticamente vinculados à inflação, uma alta em comparação aos 20% antes da pandemia.

Na Alemanha, o sindicato IG Metall solicitou aumento salarial de 7% a 8% para quase 4 milhões de trabalhadores no setor de metais e de engenharia (provavelmente ele conseguirá cerca de metade disso). No Reino Unido, os trabalhadores ferroviários entraram em greve enquanto demandavam aumento de 7%, embora não esteja claro se vão alcançar o objetivo.

Tudo isso torna o crescimento salarial um tema ainda mais atual. Um índice que monitora o grupo de países do G-10, compilado pelo Goldman Sachs, já está subindo quase verticalmente. E os pisos salariais também estão subindo. A Holanda está propondo aumento do salário mínimo. A Alemanha aprovou lei aumentando seu mínimo em 20%. A agência de relações industriais da Austrália aumentou o piso salarial em 5,2%; mais que o dobro do aumento de 2021.

O crescimento salarial mais rápido reflete, em parte, as expectativas mais altas do público para futuros aumentos de preços – a segunda razão para se preocupar que a inflação possa se mostrar mais duradoura. Nos EUA, as expectativas de curto prazo estão aumentando depressa. Os canadenses dizem estar se preparando para uma inflação de 7% no próximo ano, o maior número entre qualquer país rico. Até mesmo no Japão, onde os preços raramente sofrem alterações, as crenças estão mudando. Um ano atrás, pesquisa do banco central japonês apontou que apenas 8% das pessoas acreditavam que os preços subiriam “significativamente” no próximo ano (os preços ao consumidor, de fato, aumentaram apenas 2,5% até abril). Agora, no entanto, 20% das pessoas supõem que isso vá acontecer.

VAREJO. O terceiro fator diz respeito às expectativas de inflação das empresas. No setor de varejo, elas estão em uma máxima histórica em um terço dos países da União Europeia. Pesquisa do Banco da Inglaterra sugere que os preços de roupas para as coleções de outono e inverno serão de 7% a 10% maiores que há um ano. O Fed de Dallas encontrou evidências preliminares de que os consumidores estão menos dispostos a tolerar aumentos. Um entrevistado do setor de aluguel e leasing reclamou que “está ficando difícil repassar os aumentos de preços de 20% a 30% dos fabricantes”. Mas isso apenas aponta para um nível mais baixo de inflação alta.

A grande esperança de uma inflação mais baixa está relacionada ao preço dos bens. Aumentos nos preços de carros, geladeiras e itens semelhantes, ligados em parte aos transtornos nas cadeias de suprimentos, motivaram o aumento inflacionário no ano passado. Agora há alguns indícios de mudança. O custo para enviar algo de Xangai para Los Angeles caiu 25% desde março. Nos últimos meses, diversos varejistas gastaram muito com estoques para manter suas prateleiras cheias. Vários agora estão reduzindo os preços para atualizar o estoque. Nos EUA, a produção de automóveis está finalmente melhorando.

Em teoria, a queda dos preços dos bens poderia ajudar a apagar as chamas inflacionárias no mundo rico, aliviando o custo de vida, dando aos bancos centrais espaço para respirar e estabilizando os mercados. Mas, com indicadores de preços futuros apontando para a direção contrária, as chances de isso acontecer aumentaram. Não se surpreenda se a inflação continuar feroz durante um tempo ainda.

05 de julho de 2022

HÁ UM SÉCULO, TENENTISMO DAVA INÍCIO À DERROCADA DA 1ª. REPÚBLICA!

(O Estado de S. Paulo, 04) O tenente Antônio de Siqueira Campos, de 24 anos, um dos responsáveis por preparar o Forte de Copacabana para o combate que se avizinhava, esperou um pouco depois que o canhão de 190 mm disparou contra a Ilha de Cotunduba, perto da entrada da Baía de Guanabara. Era 1h20 do dia 5 de julho de 1922, um ano tenso, marcado por uma sucessão de boatos entre os fardados de que “a ‘procissão’ (revolução) ia sair”. O estrondo na escuridão era um anúncio que ecoou pela cidade.

Na sala de bilhar do Palácio do Catete, prédio de estilo neoclássico encimado por sete harpias de bronze, o presidente Epitácio Pessoa, prevenido por agentes que vigiavam os conspiradores, tirou o relógio do bolso. Olhou e comentou: “Estão 20 minutos atrasados”. Começava a rebelião que um dia e meio depois seria debelada à baioneta, na praia abaixo da fortificação.

A reportagem do Estadão consultou os arquivos do Exército, documentos e jornais da época para reconstruir a revolta que inaugurou o tenentismo e abriu caminho para pôr abaixo a Primeira República. Naquela noite, o forte começou a atirar, mas a procissão não saiu. Ele atingiu de novo a ilha, e acertou a base do Forte do Vigia, no Leme, e o 3.º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha. Mas não houve salvas de outras guarnições avisando que também se revoltavam. A conspiração dos militares (e alguns civis) fora – ou estava sendo – desmontada pelo governo, com base na ação de “secretas” e infiltrados. O Catete se antecipara aos rebeldes, ocupava quartéis, prendia suspeitos.

Um levante articulado na Vila Militar, no 1.º Regimento de Infantaria, foi sufocado após tiroteio que resultou na morte do capitão Barbosa Monteiro. Os cadetes da Escola Militar de Realengo, rebelados, também fracassaram. Parecia que tudo dava errado para os rebeldes.

O levante no 1.º Batalhão de Engenharia foi sufocado, assim como na Escola de Sargentos. A Fortaleza de Santa Cruz, em vez de aderir, dispararia contra o Forte de Copacabana. Até o acaso parecia estar com Epitácio. A 1.ª Companhia Ferroviária, em Deodoro, não se movimentou. Seu comandante, o tenente Luiz Carlos Prestes, estava com tifo. Anos depois, confessou a frustração por não poder sublevar. Enfraquecido, não conseguiu ficar de pé e se fardar.

Poderoso
Com os fracassos e as desistências, restou só na capital, tentando derrubar a velha ordem, o Forte de Copacabana. Era unidade poderosa. Construído sobre um rochedo que avança pelo mar e inaugurado em 1914, ele tinha cúpulas giratórias e canhões 75, 190 e 305 mm, importados da alemã Krupp. Como rodavam, as armas podiam atingir alvos em terra e mar, em um raio de 20 quilômetros.

Naquela manhã, o forte tinha 300 homens rebelados. No comando estava o capitão Euclydes Hermes da Fonseca. Os revolucionários ergueram barricada no portão do quartel, eletrificaram redes de arame farpado, minaram o corpo da guarda. O governo isolou o bairro, um balneário de casas distante do centro. O Exército instalou baterias em morros próximos e deslocou tropas para o Túnel Novo e a Praça Serzedelo Correia. Montou uma Força de Ataque e mandou dois ultimatos aos revolucionários.

Ao longo do dia 5, os revolucionários acertaram alvos no centro e na zona sul com projéteis lançados por cima dos morros. Um dos pontos atingidos foi o Quartel General do Exército, onde morreram um sargento e dois soldados. Foram vítimas de um tiro corrigido, ironicamente, com a ajuda involuntária de Pandiá Calógeras, o ministro da Guerra. Ele telefonou para o Forte. Queria reclamar que uma casa na Rua Barão de São Félix tinha sido atingida por um petardo dos revolucionários. Em consequência, três pessoas – inclusive uma criança de dois anos – morreram sob os escombros.

O Forte corrigiu a mira e disparou de novo, atingindo a ala esquerda do QG. Acertou mais duas vezes, uma do lado oposto do prédio, outra no pátio. Depois, visou a Ilha das Cobras, o Forte do Vigia, o Túnel Novo. E acertou um tiro no navio São Paulo, da Marinha, que disparara contra os revoltosos.

Mas os revoltosos também eram bombardeados. Até por aviões. Os problemas do movimento iam além do cerco. O canhão de 305 mm fora sabotado. O governo cortara água e energia do quartel. Antes das 7h do dia 6, diante da perspectiva do ataque do governo, Euclydes liberou os subordinados que quisessem deixar o Forte. Mais de 250 homens aceitaram. Em roupas civis, pularam a barricada e se dispersaram.

Marcha
Ficaram no Forte 28 homens. Decidiu-se que o capitão Euclydes iria conversar com Calógeras, para negociar uma rendição “com honra”. Levaria uma pauta escrita por Siqueira Campos: garantia de vida para os revolucionários; baixa do Exército; passagens para a Europa. O capitão passou o comando a Siqueira Campos. Em seguida, saiu do quartel e pegou um táxi.

Foi preso. Siqueira reuniu os comandados. Decidiram abandonar o Forte para enfrentar os governistas. Houve então um ritual. Com uma navalha de barbear, o comandante cortou uma bandeira do Brasil em 28 pedaços. Distribuiu a maioria deles entre os presentes. Ficou com três: um para si, um para Euclydes e um para Newton Prado, que montava guarda na barricada. Alguns revoltosos usaram os fragmentos para escrever. Eram bilhetes póstumos: despediam-se de parentes e amigos.

Após 13h30, começaram a marcha pela Avenida Atlântica. A eles incorporou-se um civil, Octavio Correia, que ganhou um fuzil e um pedaço da bandeira – o reservado a Euclydes. Depois de uma parada no Hotel Inglez, onde beberam água, o grupo seguiu em frente, segundo depoimento de Siqueira Campos. O tenente disse que “oficiais e praças do 3.º Regimento” gritavam de longe que se rendessem, ao que os revoltosos respondiam que atirassem.

Outros depoimentos, de militares, relatam o encontro, na altura da Rua Barroso – atual Siqueira Campos – do grupo de rebeldes com os legalistas. Ali, o tenente governista Segadas Viana estava com um pelotão. O comandante do 2.º Batalhão do 3.ª Regimento de Infantaria, major Pedro Chrysol Fernandes Brasil se aproximou, mas os revolucionários diziam que iriam ao Catete, ameaçando-o. “Vocês estão cometendo um ato de loucura”, disse o oficial ao depor. Brasil afirmou ter insistido, mais de uma vez, para que os rebeldes se rendessem, garantindo suas vidas. Não foi obedecido, e a tensão crescia. O oficial legalista, então, deu a Segadas ordem de fogo.

Foi quando, segundo sua versão, os revolucionários se dividiram em dois grupos e atiraram. Primeiro de pé. Depois pularam para a praia. Siqueira viu os companheiros caírem feridos: Eduardo Gomes, Octávio Correia e Prado. Em seguida, foi a sua vez.

Começou então o ataque final com baionetas autorizado pelo general Tertuliano Potiguara e comandado por Brasil. Ferido, Siqueira contou no processo ter visto que Prado, deitado e ferido, atirava de revólver. “Levantem os que estão vivos!”, gritavam os legalistas. A revolução acabara. Siqueira e Gomes sobreviveram. Prado morreu seis dias depois. Correia, ferido no peito, não sobreviveu. Ao menos três praças morreram.

O mesmo aconteceu com o tenente Mário Carpenter. Com ele foi achado seu fragmento da bandeira. Trazia a mensagem que escrevera pouco antes. Ela está guardado em caixa envidraçada, no Forte de Copacabana – hoje um centro cultural ligado ao Exército. Diz, em letras desbotadas: “Forte de Copacabana – 7 de julho de 1922. Aos queridos pais ofereço um pedaço da nossa bandeira em defesa da qual resolvi dar o que podia… minha vida”.

Governo bombardeou São Paulo em 1924 e proibiu o ‘Estadão’
Em 5 de julho de 1924, São Paulo foi o palco de nova rebelião dos tenentes. O governo do Estado deixou a cidade, e os rebeldes ofereceram a direção civil do movimento a empresários, entre eles Julio Mesquita, que declinou. Com o passar dos dias, as dificuldades na cidade – bombardeada pelas tropas federais – aumentaram.

O presidente da Associação Comercial, Macedo Soares, propôs a criação de uma Guarda Municipal e uma Comissão de Abastecimento Público, formada pelo arcebispo d. Duarte Leopoldo, pelo prefeito Firmiano Pinto, por Mesquita e outros. A revolta durou 22 dias e deixou 503 mortos e 4,8 mil feridos. Ao retomar a cidade, o governo prendeu e processou civis acusados de simpatizar com o movimento, entre eles Mesquita e o jornalista Paulo Duarte, redator do Estadão, e proibiu o jornal de circular.

04 de julho de 2022

POR QUE OS REPUBLICANOS FICARAM TÃO EXTREMISTAS?!

(Paul Krugman – New York Times/O Estado de S. Paulo, 01) Muito antes de os republicanos indicarem Donald Trump para concorrer à presidência – e de Trump se recusar a aceitar a derrota eleitoral –, os estudiosos do Congresso Thomas Mann e Norman Ornstein declararam que o partido havia se tornado “uma aberração insurgente”, que rejeita “fatos, evidências, a ciência” e não aceita a legitimidade da oposição.

Em 2019, em uma pesquisa, especialistas graduaram partidos de todo o mundo em relação ao seu comprometimento com princípios básicos da democracia e direitos de minorias. Constatou-se que o Partido Republicano não tem nada a ver com a centro-direita de outros países ocidentais. Ele é parecido, em vez disso, com partidos autoritários, como o húngaro Fidesz e o turco AKP.

Tais análises com frequência foram rejeitadas, classificadas como exageradas e alarmistas. Mesmo neste momento, em que republicanos expressam abertamente admiração pelo governo de partido único de Viktor Orbán, encontro pessoas insistindo que o Partido Republicano não é comparável ao Fidesz.

EXTREMISMO. Por quê? Os republicanos têm manipulado legislaturas estaduais para assegurar seu controle mesmo se perderem feio no voto popular, o que segue diretamente a cartilha de Orbán. Além disso, como apontou recentemente Edward Luce no Financial Times, “em cada encruzilhada ao longo dos últimos 20 anos, os ‘alarmistas’ dos EUA estiveram corretos”.

Nos dias recentes, recebemos ainda mais lembretes do grau de extremismo que passou a acometer os republicanos. As audiências sobre o 6 de Janeiro têm constatado, com abundante detalhe, que o ataque contra o Capitólio foi parte de um esquema maior destinado a reverter o resultado da eleição, comandado de cima.

Uma Suprema Corte cheia de republicanos tem produzido um legado de decisões partidárias sobre aborto e controle de armas. Ontem, a corte limitou a capacidade do governo de proteger o meio ambiente.

A dúvida que me incomoda – à parte a dúvida sobre a própria sobrevivência da democracia americana – é por qual motivo. De onde vem esse extremismo? Comparações com a ascensão do fascismo na Europa do entreguerras são inevitáveis, mas não muito úteis.

Primeiramente, por pior que tenha sido, Trump não foi outro Hitler, nem mesmo outro Mussolini. É verdade que republicanos como Marco Rubio rotineiramente qualificam os democratas – que são social-democratas – como marxistas, e é tentador concordar com a hipérbole. A realidade, no entanto, já é ruim o suficiente e não precisa ser exagerada.

E há outro problema com comparações com o fascismo. O extremismo de direita na Europa do entreguerras irrompeu de cinzas de catástrofes nacionais: a derrota na 1.ª Guerra – ou, no caso da Itália, uma vitória pírrica com sabor de derrota, hiperinflação e recessão.

Nada disso aconteceu por aqui. Sim, tivemos uma grave crise financeira em 2008, seguida por uma recuperação indolente. Sim, existem desigualdades com consequências terríveis – desemprego, declínio social, até suicídios e vício em drogas – nas regiões abandonadas. Mas os EUA já enfrentaram coisa pior no passado sem ver um de seus grandes partidos virar as costas para a democracia.

HISTÓRICO. A guinada dos republicanos ao extremismo começou nos anos 90. Muita gente se esqueceu da caça às bruxas e das delirantes teorias de conspiração (como a que Hillary assassinou Vince Foster); das tentativas de chantagear Bill Clinton para que ele fizesse concessões políticas. E tudo isso aconteceu em um período bom, com a maioria dos americanos indicando que o país estava no rumo certo.

É um enigma. Ultimamente, passei muito tempo procurando precedentes na história – casos em que o extremismo de direita ascendeu mesmo em face à paz e prosperidade. E acho que encontrei um: a ascensão da Ku Klux Klan nos anos 1920.

É importante perceber que, ainda que essa organização tenha tomado o nome do grupo pós-Guerra Civil, ela era um movimento novo – nacionalista branco, mas muito mais aceito do que uma organização puramente terrorista. E ela chegou ao pico de seu poder – efetivamente controlando vários Estados – em um ambiente de paz e crescimento econômico.

O que é essa nova KKK? Andei lendo The Second Coming of the KKK (“A segunda vinda da KKK”), de Linda Gordon, que retrata a “política do ressentimento”, impulsionada pela revolta dos americanos brancos, rurais e habitantes de cidades pequenas contra um país em transformação. A KKK odiava imigrantes e “elites urbanas”; caracterizava-se por “suspeitar da ciência” e por “um antiintelectualismo”. Soa familiar?

Ok, o Partido Republicano não é tão ruim quanto a KKK. Mas o extremismo republicano obtém sua energia das mesmas fontes. E, em razão de ser alimentado por ressentimento contra as coisas que tornam os EUA um grande país – diversidade e tolerância – não pode haver apaziguamento ou concessão. A única alternativa é derrotá-lo.

1º de julho de 2022

ENERGIA RENOVÁVEL É O PLANO DE PAZ PARA O SÉCULO XXI!

(António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas – O Globo, 28) Nero foi acusado de tocar lira enquanto Roma ardia em chamas. Hoje, alguns líderes estão fazendo pior. Eles estão jogando combustível no fogo. Literalmente. Enquanto as consequências da invasão da Rússia na Ucrânia se propagam pelo mundo, a resposta de algumas nações à crescente crise de energia tem sido dobrar o uso de combustíveis fósseis – despejando bilhões de dólares em carvão, gasolina e gás, o que aprofunda nossa emergência climática.

Enquanto isso, os indicadores climáticos continuam a quebrar recordes, projetando um futuro de ferozes tempestades, inundações, secas, incêndios e temperaturas inabitáveis em vastas áreas do planeta. Nosso mundo enfrenta o caos climático. Novos investimentos na exploração de combustíveis fósseis e na produção de infraestrutura são ilusórios. Combustíveis fósseis não são a resposta e nunca deveriam ser. Podemos ver os danos que estamos fazendo ao planeta e às nossas sociedades. Está no noticiário diariamente e ninguém está imune.

Os combustíveis fósseis são a causa da crise climática. Energia renovável é a resposta para limitar os distúrbios climáticos e impulsionar a segurança energética. Se tivéssemos investido mais cedo e massivamente em energia renovável, não nos encontraríamos novamente a mercê dos instáveis mercados de combustíveis fósseis. Os renováveis são o plano de paz para o século 21. Mas a batalha por uma transição energética rápida e justa não está sendo travada em campo. Investidores ainda apoiam combustíveis fósseis e governos ainda distribuem bilhões para subsidiar carvão, petróleo e gás – cerca de 11 milhões de dólares a cada minuto.

Existe uma palavra que define alívio a curto prazo em vez de bem estar a longo prazo. Vício. Ainda estamos viciados em combustíveis fósseis. Pela saúde das nossas sociedades e do planeta, precisamos parar. Agora. O único caminho verdadeiro para a segurança energética, preços de energia estáveis, prosperidade e um planeta habitável está em abandonar combustíveis fósseis poluentes e acelerar a transição para energia renovável.

Para isto, pedi que os governos do G20 desfaçam infraestrutura em carvão, eliminando-a por completo em 2030, para os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e em 2040 para os demais. Tenho apelado para que os atores financeiros abandonem o financiamento do combustível fóssil e invistam em energia renovável. E proponho um plano com cinco pontos para impulsionar a energia renovável no mundo.

Primeiro, devemos instituir a tecnologia de energia renovável como um bem público global, incluindo a remoção das barreiras de propriedade intelectual para transferência de tecnologia. Segundo, devemos melhorar o acesso global às cadeias de suprimento para componentes e materiais brutos de tecnologia de energia renovável.

Em 2020, o mundo instalou 5 gigawatts de suprimento de bateria. Precisamos de uma capacidade de 600 gigawatts em 2030. Claramente, precisamos de uma coalisão global para alcançar isto. Gargalos no transporte e restrições nas cadeias de suprimento, assim como custos mais altos para lítio e outros metais estão afetando o emprego destas tecnologias e materiais justamente quando mais precisamos deles.

Terceiro, precisamos cortar a fita vermelha que atrapalha projetos solares e eólicos. Precisamos de aprovações mais rápidas e mais esforços para modernizar a matriz de eletricidade. Na União Europeia, demora-se oito anos para aprovar uma fazenda eólica; dez anos nos Estados Unidos. Na República da Coreia, projetos eólicos terrestres precisam de 22 licenças de oito ministérios diferentes.

Quarto, o mundo precisa trocar os subsídios energéticos de combustíveis fósseis para proteger as pessoas mais vulneráveis e investir em uma transição justa para um futuro sustentável.

E quinto, precisamos triplicar os investimentos em renováveis. Isto inclui bancos de desenvolvimento multilaterais e desenvolvimento de instituições financeiras, assim como bancos comerciais. Precisamos incrementar drasticamente o incentivo aos investimentos em renováveis.

Precisamos de mais urgência de todos os líderes globais. Já estamos perigosamente perto de alcançar o limite de 1,5 graus Celsius que a ciência aponta como o nível máximo de aquecimento para evitar os piores impactos climáticos. Para manter este 1,5, precisamos reduzir as emissões em 45% em 2030 e alcançar a neutralidade de carbono até a metade do século. Mas os comprometimentos nacionais atuais nos levarão a um aumento de quase 14% nesta década. Isto significa catástrofe.

A resposta está nos renováveis – para ação climática, para segurança energética e para prover eletricidade limpa para centenas de milhões de pessoas que atualmente não a tem. Os renováveis são um ganho triplo.

Não há desculpa para rejeitar uma revolução renovável. Enquanto os preços de gasolina e gás atingem níveis históricos, os renováveis estão ficando cada vez mais baratos, o tempo todo. O custo da energia solar e de baterias despencou 85% na última década. O custo da energia eólica caiu 55%. E investimento em renováveis cria três vezes mais empregos do que em combustíveis fósseis.

Claro que os renováveis não são a única resposta para a crise climática. Soluções baseadas na natureza, como reverter o desmatamento e a degradação de terra, são essenciais. Assim como os esforços para promover eficiência energética. Mas uma transição rápida para energias renováveis precisa ser nossa ambição.

Na medida em que superamos a dependência de combustíveis fósseis, os benefícios serão amplos e não apenas para o clima. Os preços da energia serão mais baixos e previsíveis, com efeitos positivos nos alimentos e na segurança econômica. Quando os preços de energia aumentam, também sobem os custos de alimentos e de todos os bens de que precisamos. Então vamos concordar que uma rápida revolução renovável é necessária para deixarmos de tocar a lira enquanto nosso futuro arde em chamas.