17 de maio de 2022

COLÔMBIA VIVE INTROMISSÃO DAS FORÇAS ARMADAS NAS ELEIÇÕES!

(Sylvia Colombo – Folha de SP, 15) O embate verbal entre o comandante do Exército, general Eduardo Zapateiro, e o candidato de esquerda e líder nas pesquisas Gustavo Petro, 62, vem mostrando uma pouco usual intromissão das Forças Armadas nas eleições presidenciais da Colômbia, cujo primeiro turno ocorre no próximo dia 29.

A uma crítica de Petro ao Exército, de que havia corrupção na instituição e que o sistema de promoções era baseado em “politicagem interna e subornos por parte do narcotráfico”, Zapateiro respondeu nas redes​ sociais: “Nunca vi nenhum general recebendo dinheiro de modo indevido como o senhor já foi acusado”.

Zapateiro fazia menção a um vídeo que circulou em 2005 e que mostrava Petro, à época congressista, recebendo uma bolsa com dinheiro. O caso foi à Justiça, e o hoje candidato foi absolvido. A Procuradoria da Colômbia abriu investigação para avaliar se o militar extrapolou seus limites de atuação constitucional.

Outro que mostrou o descontentamento de parte das Forças Armadas com a candidatura do ex-guerrilheiro do M-19 foi José Marulanda, presidente da Associação Colombiana de Oficiais Aposentados. “Sentimos que há um ressentimento muito claro de Petro contra militares e policiais, porque foram eles que combateram e mataram muitos de seus companheiros de guerrilha.”

O M-19 foi uma guerrilha urbana nacionalista que atuou de 1974 a 1990, quando firmou um acordo de paz com o Estado colombiano. Fruto dos termos desse pacto, o partido Aliança Democrática, formado por seus ex-integrantes, participou da redação da Constituição de 1991, atualmente em vigor no país. Vários dos ex-membros da guerrilha seguiram na política, como o ex-senador Antonio Navarro Wolff e o próprio Petro, prefeito de Bogotá entre 2012 e 2015.

Para o coronel aposentado Carlos Alfonso Velázquez, “entre os militares há os que creem terem vencido a guerra no campo de batalha”, o que não estaria acontecendo no campo político. “Eles consideram que, desta vez, a classe política que sempre governou e que os respaldou está perdendo, e isso traz insegurança para muitos”. Essa sensação ficou mais explícita quando o atual presidente, Iván Duque, diante da polêmica entre Petro e Zapateiro, foi a público defender o general.

Oficiais da ativa também criticaram Petro, mas sem divulgar seus nomes, em reportagem da revista Semana. A publicação ouviu membros de diferentes patentes e mostrou que há os que sentem desconforto com a possível chegada de um ex-guerrilheiro ao poder e os que compreendem que seu lugar na sociedade não é o de opinar ou se intrometer no debate político, como estabelece a Constituição.

A mais recente pesquisa, divulgada na última terça (10), mostra Petro na liderança, com 40%, contra 21% do direitista Federico “Fico” Gutiérrez, ex-prefeito de Medellín. Ambos disputariam, assim, um segundo turno, em 19 de junho. Neste pleito, segundo a sondagem, Petro venceria por 47%, contra 34% de Fico.

Uma possível chegada de Petro ao poder seria uma imensa transformação no país, acostumado a uma certa rotatividade de um grupo pequeno de famílias de elite. Nas últimas décadas, a Colômbia pendeu muito para a direita, e os mais de 60 anos de embates entre guerrilhas de esquerda contra o Exército tornaram as forças políticas democráticas de esquerda pouco populares entre a sociedade.

Após o acordo entre o Estado e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), em 2016, dissidentes da guerrilha seguiram fora da lei, trazendo insegurança, principalmente ao setor rural, e alimentando a rejeição à esquerda. O saldo dos enfrentamentos de 1964 a 2016 é de 220 mil mortos. Entre os métodos da guerrilha estavam extorsão, recrutamento de menores e atentados a alvos militares e civis.

Se Petro chegar ao poder, será a primeira vez que um ex-guerrilheiro de esquerda comandará o segundo maior Exército da América Latina (depois do brasileiro), com 228 mil militares e 172 mil policiais.

Os métodos encontrados pela direita para combater as guerrilhas tampouco são populares hoje em dia, ainda mais quando tem vindo à tona a verdade sobre o escândalo dos “falsos positivos”. Segundo o trabalho da Justiça Especial da Paz (conhecida como JEP), cada vez mais oficiais vêm admitindo que os soldados recebiam metas mensais de guerrilheiros que tinham de ser assassinados.

Quando as cifras não eram atingidas, vestiam civis de guerrilheiros, os assassinavam e armavam supostos cenários de combate, dizendo que as matanças haviam ocorrido em batalhas com guerrilhas como as Farc ou o ELN (Exército de Libertação Nacional).

A mais recente confissão coletiva ocorreu em Ocaña, na conflagrada região de Catatumbo, nos últimos dias 26 e 27 de abril, quando, num tribunal da JEP, dez militares contaram em detalhes, e diante das famílias das vítimas, como assassinaram 120 pessoas que não tinham relação com nenhuma guerrilha.

Segundo o acordo de paz, a JEP não oferece penas de prisão, mas condenações em forma de reparação, que podem ser trabalhos comunitários ou pedidos de perdão coletivo.

O caso envolve ainda o ex-presidente Álvaro Uribe (2002-2010), apontado como autor intelectual dos “falsos positivos”. Ao todo, estão documentadas 6.402 vítimas, e o procedimento não deixou de ser usado, num país hoje governado por um apadrinhado de Uribe, Iván Duque. O atual presidente é acusado pela oposição de ter autorizado um ataque do Exército a um vilarejo em Putumayo onde supostamente se encontravam grupos criminosos (as Bacrim, mistura de ex-guerrilheiros e criminosos comuns).

A ação causou a morte de 11 civis, entre os quais um menor de idade. Houve pressão pela demissão do ministro de Defesa, Diego Molano, e, ante a negativa de Duque de tirá-lo, a oposição pediu à Procuradoria a abertura de uma investigação e mandou uma carta à ONU sobre o prosseguimento dos “falsos positivos”.​

O setor à direita da política, que respalda os militares, representado pelos ex-presidentes Uribe e Andrés Pastrana, afirma que a JEP está tomando um tom revanchista e que o tribunal deveria servir apenas para julgar os guerrilheiros, sendo os eventuais abusos dos militares destinados a tribunais militares.

Essa hipótese ficou de fora do pacto, que desde 2016 está em vigor e não pode ser mudado apenas pela vontade de um presidente, porque foi integrado à Constituição. Duque tentou mudar o funcionamento da JEP, para tirar o foco dos militares, mas não conseguiu apoio no Congresso e na Justiça para ir adiante.

O desconforto das Forças Armadas com a candidatura de Petro, que defende uma aplicação intensa de todos os pontos do acordo de paz, que andaram em câmara lenta com Duque, foi expressa também por meio da renúncia do major Carlos Guillermo Ospina Galvis da Comissão da Verdade.

O órgão, que também foi criado em razão do pacto de paz de 2016, tem como objetivo criar um documento amplo que esclareça a maior quantidade possível de abusos cometidos tanto por parte das guerrilhas e das organizações paramilitares como por parte do Exército. Seu estatuto estabelece que deve ser formado por membros de diversos setores da sociedade que participaram de alguma forma do conflito e pelas vítimas. Ospina era o representante das Forças Armadas.

Ele abandonou o posto na última semana, oito semanas antes do término da redação do documento, fazendo críticas ao modo de funcionamento e às conclusões a que o relatório estava chegando. “Não estou de acordo com os capítulos apresentados, não estou de acordo que militares, empresários e o Estado estejam sendo apresentados mais como vilões do que a própria guerrilha. Meus comentários e observações sobre isso não foram levados em conta. Então não tinha outra opção e saí.”

Afirmou, ainda, que a Comissão da Verdade estava sendo alvo de ingerência política da esquerda, “levando a narrativa para a ideia de que a origem do conflito teve vários fatores e culpados, não que foi a guerrilha que começou com a violência.”

16 de maio de 2022

KEN STARR E JOSEPH MCCARTHY!

(Cesar Maia – Folha de SP, 27/06/2009) Escândalos envolvendo políticos são tão antigos quanto a própria história. Hoje esses registros, feitos com imagens, vozes e documentos gravados, são multiplicáveis ao infinito. Investigados e investigadores são atores deste drama. Os poderes têm regras para investigar e penalizar.

As pessoas, associações civis e meios de comunicação podem ser parte desses processos, investigando, denunciando ou opinando. A luminosidade dada a certos fatos, destacando os que investigam, denunciam e acusam, algumas vezes os atrai para o “estrelato” e o objetivo passa a ser a autoexaltação.

Dois documentários tratam de situações desse tipo. Um deles, “A Caça ao Presidente”, de H. Tomason e N. Perry, é sobre o promotor que tratou por anos de escândalos com Clinton. O outro, “Os Anos McCarthy”, especial da CBS com Walter Cronkite, é sobre o embate entre o legendário jornalista Ed Murrow e o senador McCarthy.

No primeiro, a “estrela” era o promotor Ken Starr, investigador pleno da vida de Clinton, das amantes até o caso Whitewater (um negócio imobiliário do qual os Clinton participaram). A busca desesperada por depoimentos terminou com polpudas indenizações às “namoradas”, com um suicídio e a condenação a dois anos de prisão de quem nada tinha a ver com nada. Os “namoros” de Clinton não implicavam em seu impedimento para governar. O caso Whitewater terminou em tragédias pessoais por efeito colateral, sem chegar ao alvo alucinante de Ken Starr: Bill Clinton.

O senador Joseph McCarthy (1950 e 1954) abriu fogo contra tudo e todos os que poderiam ter qualquer relação com o que ele entendia por comunismo. Fatos de 20 anos antes, mera leitura de jornais sindicais etc., eram evidências pré-julgadas.

Ed Murrow -com seu foco no detalhe- destacou dois casos de pessoas simples incluídas pela mente doentia de McCarthy: um tenente, cujo pai e irmã teriam tido algum contato socialista, foi julgado e expulso da Aeronáutica; uma servente que teria trabalhado no setor de decodificação do Pentágono e cujo marido teria comprado, uma vez, um jornal de esquerda.

Ed Murrow desintegrou as duas acusações, gerando uma solidariedade ampla com os acusados (“poderia ser qualquer um de vocês”).

O tenente foi readmitido. A servente não havia trabalhado no setor -era homônima. Desmoralizado nos dois casos, McCarthy declina e termina denunciado pelos excessos, no próprio Senado. Ed Murrow, na última locução sobre o caso, olhando como sempre para a câmera, em diagonal, de baixo para cima, arrematou: “A fronteira entre a investigação e a perseguição é uma linha tênue”. Anos depois, essa mesma máxima serviu para vestir Ken Starr.

11 de maio de 2022

OS PERIGOS DA CRISE UCRANIANA!

(Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE, fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia) O cínico ministro das relações exteriores de Napoleão, Talleirand, formulou uma frase de efeito que ficou na história. Referindo-se à ordem do célebre general e ditador francês que levou ao sequestro de um líder monarquista em um país vizinho e seu fuzilamento sumário ele comentou: “é pior do que um crime, é um erro”.

A frase pode ser aplicada à decisão de Putin de invadir a Ucrânia e provocar uma crise sem precedentes desde a instalação de foguetes russos em Cuba por Kruschev em 1962. Putin não contava com a reação militar dos ucranianos, que paralisou os seus planos de uma rápida
conquista da antiga colônia russa, desde os tempos dos czares até o fim da União Soviética.

Também não contava com a reação daquilo que, no passado, se chamava de “mundo livre”, os países capitalistas, em particular os organizados na União Europeia. Putin acreditava que a dependência energética da Europa em relação às exportações de petróleo e gás da Rússia faria com que as reações na forma de sanções econômicas seriam leves e palatáveis. O analista Pepe Escobar afirmou surpreso, quando as sanções se mostraram mais do que robustas: “foi um tiro no pé da União Europeia”. Putin também não contava com a reação pesada da opinião pública mundial, execrando a invasão. Reação orquestrada por uma mídia internacional totalmente aderente ao discurso anti-russo do governo americano, que, com certeza, efetivamente colocou Putin como uma ameaça ao equilíbrio mundial herdado da queda da União Soviética. A campanha anti-russa adquiriu tons de histeria ao ponto de esportistas e artistas russos serem banidos dos espaços internacionais.

Além dos problemas militares e econômicos provocados na Rússia pela invasão da Ucrânia, Putin tem agora que enfrentar uma OTAN revivida que vinha em lento processo de tornar-se um anacronismo. E a resposta do ditador, é dobrar a aposta e, escudado no controle da opinião pública no seu próprio país, agora ameaça o uso de armas atômicas. Os americanos tratam a ameaça como blefe e vem ampliando as suas provocações, buscando o que o governo Biden chama de sangrar os russos até, idealmente, a queda de Putin e a submissão total dos herdeiros dos antigos impérios, o dos czares e o dos comunistas. Os riscos para a humanidade vão crescendo na medida em que as alternativas para Putin vão se estreitando. No momento, tanto os ucranianos, como os países da OTAN, estão endurecendo suas posições e recuando de qualquer acordo para cessar fogo e negociação da paz. Levar um ditador absoluto como Putin para o corner e pretender abatê-lo com o sangue derramado pelos ucranianos, usando um armamento cada vez mais pesado fornecido por americanos, ingleses, alemães e até suíços é um risco que é melhor não correr.

Os americanos estão nadando de braçada nesta crise, em particular porque abriram um amplo mercado para fornecer petróleo e gás para os europeus, assim como para a sua pesadíssima indústria de armamentos. No momento em que o mundo deveria estar redirecionando
investimentos para enfrentar a crise do aquecimento global através da substituição dos combustíveis fósseis, o dito “mundo livre” expande o uso destes combustíveis e usa seus recursos para uma nova corrida armamentista.

Mas a histeria provocada pelo governo americano contra a Rússia foi muito além da justa indignação contra a agressão de Putin contra a Ucrânia, para se tornar uma manobra, visando a eliminação de uma superpotência militar e até a submissão de uma potência econômica (bem menor) aos interesses da decadente (mas ainda significativa) economia americana.

A posição de uma parte da esquerda assumindo a defesa de Putin como se fosse um baluarte do socialismo é pura visão do atraso e inteiramente anacrônica. Não estamos diante de um enfrentamento ideológico, mas de uma disputa geopolítica entre o capitalismo neoliberal e o capitalismo mafioso, que se estabeleceu na Rússia com a dissolução da economia estatal soviética no final dos anos oitenta.

Mas uma coisa tem que ser assumida por todos que tem um mínimo de bom senso (e hoje parece que são poucos): a ameaça nuclear russa não deve ser tratada levianamente e a corda não pode ser esticada até levar Putin a uma situação de desespero e a uma reação drástica que nos colocaria no limite de uma guerra atômica. Velhos guerreiros dos tempos dos Estados Unidos superpotentes dos anos 70 (antes que a derrota no Vietnam cortasse as asas dos “falcões”) estão palpitando que está na hora de calar as armas e buscar uma solução negociada, vide Henry Kissinger. Em particular, os europeus deveriam ser mais responsáveis, pois os americanos estão bem distantes da zona de conflito e parecem dispostos, pelo menos até as eleições de novembro, a empurrar os ucranianos a derramar até a última gota do seu sangue neste enfrentamento.

O Papa Francisco tem sido uma voz isolada, junto com o secretário geral da ONU (entidade que vem se mostrando uma peça vazia nesta crise), cobrando um movimento pelo silêncio das armas e a busca de um acordo negociado. Aqui no Brasil as vozes, tanto da esquerda como da direita, têm sido pela defesa de Putin (paradoxos do anacronismo político), enquanto a chamada grande imprensa reza pela cartilha de Biden.

Deveríamos estar nos movendo na direção da pressão por uma solução negociada e não entrar na torcida pelo ditador ou pelos aventureiros belicistas ocidentais. Não é hora de discutir se Zelenski é uma marionete da OTAN (na verdade dos Estados Unidos) e se Putin tinha boas razões para a invasão. A hora é de cobrar da diplomacia brasileira uma posição firme pelo cessar fogo imediato e pela paz negociada. No momento o governo brasileiro tem uma postura esquizofrênica, com o Itamaraty apoiando (no essencial) Biden, e o energúmeno e seus acólitos apoiando Putin. Em geopolítica e em confrontos militares com o nível de risco verificado nesta crise não importa quem tem razão e sim o que é preciso fazer para baixar a pressão e não jogar gasolina no fogo.

10 de maio de 2022

REDES E ANONIMATO!

(Leandro Karnal – O Estado de S. Paulo, 08) Alguns “ismos” colaboraram: Cristianismo, Islamismo, Socialismos… As redes sociais e a própria evolução da ideia de Democracia também ajudaram a ladrilhar este chão. Do que estou falando? Da construção de uma ordem simbólica baseada na ideia de igualdade. Se existe diferença social, ela teria sido baseada no pecado ou na construção de mecanismos injustos de exclusão econômica. Porém, no fundo, todos seríamos ou deveríamos ser iguais. A igualdade é concebida como a realidade e a desigualdade como uma anomalia produzida pelo desvio de um plano natural ou divino.

Para Rousseau, temos uma perfectibilidade que, juntamente com a liberdade, permite nossa distinção dos animais. Claro, o homem de Genebra também percebe que essa característica é fonte de quase toda infelicidade. Criamos um contrato social e, ao mesmo tempo, a desigualdade. Alguém se apropriou de uma parte da terra comum e ninguém o contestou. Em Rousseau, em Marx ou em Jesus, a igualdade era o plano original e feliz. Houve um desvio ou uma queda do homem natural para o que vemos agora.

Proposta por filósofos, defendida por profetas e estimulada por brechas abertas a partir da Revolução Francesa, paira sempre a ordem simbólica ideal da igualdade. O que mudou? O mundo é desigual há milênios, porém, agora, há redes sociais.

Há mais de 200 anos, se o povo quisesse ver Versalhes, teria de invadir o palácio em gesto com sangue e ousadia. Hoje, Maria Antonieta posta seus looks nas redes todos os dias: “Eu no Salão dos Espelhos com meus sapatos novos kkkkk”; “Sextei com brioches”… A vaidade, o interesse, a dor e toda espécie de novas formas de imaginário social elaboraram a explosão do ressentimento.

Ressentido é quem sente duas vezes. Sente pelo que não possui e tem nova dor pela alegria que identifica naquele que tem. Freud falou sobre a “covardia moral do neurótico”. O neurótico se considera superior, moralmente acima da vulgaridade do mundo, todavia, incapaz de mudá-lo. Não perdoa, não age, apenas sente e, ressente. O espaço de ouro para o ressentido é o mundo agressivo das redes. Lá, a covardia pode vir com anonimato, destilar veneno, atacar, agredir e mostrar como o meu inimigo é inferior e imbecil. O que deriva disso? Nada, é uma impotência reconhecida, diluída na incapacidade de o ressentido assumir seu próprio desejo e de agir.

Veja uma distinção importante: existe desigualdade no mundo. Há pessoas que se revoltam contra ela e agem para mudá-la. Caridade, política, revolução: são três caminhos comuns de reação à carência de muitos.

Há outros. Penso em quem não age, reflito sobre o ressentido. Ele interpreta a felicidade alheia como retirada dele. Aquele que sorri, no fundo, retirou do meu rosto a alegria. O bom corpo dela/dele estragou o meu. A viagem bonita foi feita em detrimento da minha. A vida que vejo na internet foi roubada de mim. Posso perdoar você por tudo, menos por ser mais feliz do que eu.

De novo: existe desigualdade social e algumas pessoas agem contra. O ressentido não está preocupado com ela, ele está irritado com o gozo material ou emocional que vê nas redes. Todavia, ele disfarça sua dor em julgamentos sociais. Alguém postou a compra de um celular de dois mil dólares? O ressentido grita: daria muitas cestas básicas para uma comunidade. Ele tem razão, e o celular que o ressentido usa para isso também poderia virar feijão para muita gente. Essa é a diferença entre consciência social e ressentimento, entre ação e pura dor, entre sentimento e ressentimento.

A pessoa que luta por justiça social, por motivos filosóficos ou religiosos, fica perturbada pelo fato de que alguns possam ter um tênis caríssimo e tantos não tenham comida mínima. O ressentido quer o tênis para ele e, não conseguindo, nega-o a qualquer pessoa. Muitos movimentos políticos foram feitos assim: substituir uma forma de dominação que não me beneficiava por uma que me traga vantagens. Claro: tudo em nome do bem…

Separar Freud de Marx pode ser necessário. A dor pessoal pode ser um ponto de partida para qualquer envolvimento político, nunca deveria ser o de chegada. Muitas vezes, Maria Antonieta nos irrita porque gostaríamos de comer brioches no ambiente luxuoso. Como isso é feio como sentimento, melhor afirmar que buscamos a justiça social e a igualdade. O ressentido é um invejoso fracassado tingido com o verniz de Madre Teresa de Calcutá. A busca de uma genuína melhoria da dor alheia por empatia pura é tão rara na luta política como a vocação da freira albanesa na Índia no campo religioso.

Ampliemos. Fui uma criança em uma geração limitada com regras severas e punições diretas. Por que será que crianças mimadas me irritam hoje? Vivem o deleite que me foi negado?

Conhecer a si é o desafio que o Templo de Apolo em Delfos nos envia sempre. Pelo menos saberíamos que estamos lutando com moinhos reais e não gigantes alimentados pela minha dor quixotesca. Essa tem sido a minha esperança: lutar com a minha dor de forma consciente e não ser dominado pelo que me incomoda.

09 de maio de 2022

O CORNETEIRO DE PIRAJÁ!

(Viriato Corrêa, “Meu Torrão: contos da história pátria” – Consciência.org, 17/05/2009) Quando se proclamou a independência foi a Bahia que mais custou a sair do jugo de Portugal.

O general Madeira de Melo não quis obedecer ao governo brasileiro. Para ele o Brasil era uma propriedade dos por­tugueses e, portanto, aos por­tugueses devia continuar sujeito, sem nenhum direito de libertar-se.

E comandando grandes for­ças armadas, compostas de gente portuguesa, tomou conta da província e não con­sentiu que os baianos gozassem, como os outros brasileiros, da independência proclamada.

Aquilo feriu a fundo o coração dos patriotas da Bahia. Era pela força que Madeira queria impor o jugo de Portugal, só pela força a província proclamaria a sua li­berdade.

E a Bahia inteira, a Bahia brasileira, pegou em armas para bater-se contra os inimigos da independência.

Foram penosos os primeiros encontros. Madeira é que tinha armas, munições, navios e dinheiro que lhe vinham constantemente de Portugal.

O governo brasileiro estava no momento cheio de difi­culdades e quase não podia ajudar os patriotas baianos.

Os patriotas baianos, porém, defendiam-se e resistiam como leões.

A melhor maneira de vencer as forças de Madeira era encurralá-las de modo que não pudessem receber auxílios. Para isso os baianos formaram postos de ataque aqui, ali, além, por toda a região que na Bahia se conhece pelo nome de Recôncavo.

Um desses postos, justamente o mais forte deles, o mais destemido, aquele em que se reuniam os mais valentes defensores da terra baiana, era o de Pirajá.

Um dia, quando o general Madeira abriu os olhos, Pirajá estava embaraçando os passos do seu exército. O general não podia receber víveres e reforços: tinham-lhe sido tomados os caminhos de terra e mar.

Era necessário, portanto, destruir Pirajá o mais de­pressa possível.

E as forças portuguesas atiram-se contra o posto bra­sileiro.

É a 8 de novembro de 1822, antes de raiar a manhã.

Deve ser segura, infalível a vitória. As tropas de Ma­deira, além de bem armadas e mais numerosas, vão fazer o ataque de surpresa.

Está ainda escuro quando os batalhões inimigos de­sembarcam cautelosamente nas praias de Itacaranhas e Plataforma, ao mesmo tempo que, pelos outros lados, o grosso do exército avança rapidamente.

Quando as sentinelas baianas, colocadas em Coqueiro e Bate-Folha, percebem o avanço, não é mais possível fazer nada.

É ao clarear do dia que pipocam os primeiros tiros.

Pirajá inteiro ergue-se para a peleja.

Começa o combate. Madeira, em pessoa, dirige os seus corpos. O que ele pretende é investir por Itacaranhas para cortar a retaguarda dos brasileiros. Mas os nossos vão resistindo e resistindo heroicamente.

Uma hora inteira de fogo.

O general português, surpreendido com aquela resis­tência, ordena que novas centenas de soldados avancem. Mas os baianos não se deixam vencer.

Mais uma hora de fogo.

Os portugueses vão pouco a pouco conquistando o terreno.

Barros Falcão, que comanda os nossos, percebe clara­mente a vitória inevitável do inimigo. Mas é preciso lutar. E luta-se mais uma hora.

Madeira está inquieto com a resistência. Agora ordena a novos corpos que avancem em grandes massas. Mas o fogo das linhas brasileiras não cessa um instante.

Novos corpos investem contra os nossos. Outra hora de peleja e de fogo.

Havia cinco horas que aquilo durava. Os portugueses tinham ganho tanto terreno que, em poucos momentos, os brasileiros estariam num círculo de balas.

Um minuto mais vai dar-se a ruína completa dos baia­nos. Não há mais resistência possível. Continuar a luta é sacrificar inutilmente centenas de vidas.

Barros Falcão, de um galope, percebe que chegou o momento de retirar-se. A dois passos está Luís Lopes, o cometa, que ele conservou sempre ao seu lado, esperando aquele instante desesperador.

— Toque retirada! ordena.

O cometa não se move.

— Toque retirada, já lhe disse! grita o comandante pela segunda vez.

O cometa vira-lhe as costas.

Barros Falcão avança de espada em punho para obri­gar o insubordinado a cumprir as suas ordens, mas, nesse momento, Luís Lopes cola a cometa à boca e claros sons metálicos retinem nos ares.

O comandante agita-se, surpreendido. —Que é isso? que é isso?

Não é o sinal de retirada que está ouvindo. É que a corneta está soprando loucamente no espaço é o sinal de “avançar cavalaria e degolar”.

Pararam todos, alarmados: o comandante, os oficiais, os soldados. Que cavalaria é aquela que aquele doido está mandando avançar?

No exército português é brutal a surpresa. É a confusão. Ê o pavor.

É a debandada louca.

Fogem todos alucinadamente daquela cavalaria que não existe.

Fogem todos, todos feridos por aquele toque de corneta que vale mais do que cinco horas de tiroteio, mais do que a própria voz dos canhões.

05 de maio de 2022

CUBA VÊ OPOSIÇÃO FRATURADA DIANTE DE ONDA DE CONDENAÇÕES APÓS PROTESTOS!

(Sylvia Colombo – Folha de SP, 25) Em seu apartamento no distrito de Alamar, na capital cubana, Leonardo Otaño, 30, mantém nove plantas em latas antes usadas para comercializar tomates. “Cada uma delas corresponde a uma das vezes em que fui preso ou chamado a depor”, diz o professor e doutorando em história na Universidade de Havana.

“Para cada momento ruim da vida, a gente espera um momento bom, por isso esse pequeno ritual.”

Entre livros e um aquário, o ativista pede desculpas pela falta de arrumação na casa, que ostenta uma foto dele com o papa Francisco, em 2015, quando o pontífice visitou Cuba. Otaño, que integrou o grupo Archipiélago, organizador dos protestos de 11 de julho de 2021 em mais de 50 cidades e da tentativa de manifestação em 15 de novembro —duramente reprimida—, é religioso, mas professa uma “versão progressista, de esquerda, da Igreja Católica”, além de ser admirador da Teologia da Libertação.

“Nada mais distante do que ser de esquerda e progressista do que o regime totalitário que há hoje em Cuba. Sou de esquerda e não aceito que digam que os que estão hoje no poder também são.”

Desde o início da repressão pós-11J, e ainda mais após o fracasso do 15N, Otaño se concentra apenas em amparar as famílias dos presos políticos que vêm sendo condenados por participarem dos protestos.

Dos 1.395 detidos em 11 de julho, 728 continuam presos —e os julgamentos se dão a conta-gotas. Desde então, segundo dados oficiais, 128 pessoas foram condenadas a um total de 1.916 anos de prisão.

Nas últimas semanas, sete jovens, entre 16 e 18 anos, receberam ordens de 19 a 25 anos de internação. Dados compilados pelas ONGs Cubalex, Prisoners Defenders e Anistia Internacional mostram que mais de 40 menores já foram alvo de decisões do tipo, com penas superiores a 15 anos de reclusão. As ONGs também acusam a ocorrência de torturas, privação de luz e comida, além de choques elétricos.

Esperanza (nome fictício), que aceitou falar com a Folha com a condição de que a reportagem caminhasse com ela pelo Malecón, principal via de Havana, para evitar a impressão de que estava sendo entrevistada, chora ao falar do filho, de 19 anos, condenado a 25 anos de prisão por “distúrbios à ordem pública”.

Ao mesmo tempo que destaca o esforço para obter uma anistia, ela afirma esperar que o rebento entenda o quão duro é para a família ser vigiada em idas ao mercado ou quando os irmãos vão à escola.

Assim que as condenações começaram a ser divulgadas, um grupo de 35 mães passou a atuar na coleta de assinaturas para a petição de anistia e no contato com tribunais e organismos internacionais.

As penas assustam os cubanos, principalmente os de bairros pobres da capital. Se nas ruas de Habana Vieja, o centro turístico, a presença de policiais e de militares é pequena, não é assim em Guanabacoa e Los Pocitos ou no interior do país, especialmente em Camagüey e Holguín, locais com tradição de rebeldia contra o sistema e que se manifestaram com intensidade no 11J.

O líder da ditadura cubana, Miguel Díaz-Canel, afirma não haver presos políticos na ilha e diz que as condenações são por crimes contra a segurança do Estado e por colaboração com forças estrangeiras.

Enquanto conversa com a Folha, Otaño mostra o bairro em que vive e que resume a degradação do sonho da revolução socialista, em 1959. Alamar foi um projeto encabeçado por Fidel Castro (1926-2016) e reúne prédios de inspiração soviética, com apartamentos pequenos, mas com “tudo que o uma família precisa”. As unidades são praticamente idênticas, e há imagens dos próceres da revolução em cada esquina. “A ideia era construir um bairro onde viveria o ‘homem novo’, que não buscaria ter mais do que os outros”, diz.

A realidade atual, porém, exibe espaços insuficientes, esgoto a céu aberto e reclamações constantes devido a apagões de eletricidade. Moradores de bairros pobres de Havana dizem que a falta de luz chega a durar cinco horas diárias —no interior, o relato é de dias inteiros sem energia.

De modo geral, a oposição está fragmentada. Há, por exemplo, ativistas que apostam em uma saída institucional, com uma anistia que viria por meio das vias legais. Muitos artistas, que com movimentos como o San Isidro e o espaço Aglutinador lutaram pela liberdade de expressão, deixaram o país.

Em seu ateliê, Sandra Ceballos, 61, oferece uma cadeira à reportagem avisando que não se trata de qualquer cadeira: “É uma das originais da mítica sorveteria Coppelia”, conta, com orgulho. A Coppelia ganhou projeção internacional com o filme “Morango e Chocolate” (1993), dos diretores Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, uma das primeiras obras a tratar da questão LGBTQIA+ em Cuba.

A sorveteria foi também um esforço pessoal de Fidel, que, determinado a fazer com que os cubanos tivessem “o melhor sorvete do Caribe”, importou em 1966 o maquinário mais moderno na Europa. Hoje um ponto turístico, o local, no entanto, vem perdendo qualidade. O aumento dos preços dos ingredientes e a falta de leite faz com que o produto muitas vezes venha aguado ou com gosto de soja. A história explica por que Ceballos guardou uma cadeira original.

Ex-integrante do Archipiélago, ela não tem esperança de novas manifestações. “As condições existem, mas também temos a certeza de que depois virá outra onda de repressão terrível”, diz. “Agora, com esses meninos condenados a passar mais de 20 anos na prisão, com denúncias de tortura, não tem jeito. Sou pacifista, mas a única maneira de tirar o regime é como eles fizeram com Fulgêncio Batista, em 1959. Com armas, uma guerrilha organizada vinda do interior, e derrubando o poder à força.”

Aqui, a oposição se mostra fraturada outra vez. Otaño diz não querer a derrubada de um totalitarismo com “as armas usadas pelo que pode se tornar outro totalitarismo”. “Afinal, quem disse que se derrubarmos o regime que temos agora não surja um Putin? Não queremos isso.”

Ceballos também faz críticas à abertura de espaços culturais com permissão do regime, como a Fábrica de Arte, local de shows e exposições que é a sensação entre jovens. No dia 15, com a casa abarrotada, a Folha assistiu à apresentação da Interactivo, conjunto de jazz e gêneros caribenhos que vem causando furor. Liderado pelo pianista Roberto Carcassés, o grupo de mais de 30 músicos toca de tudo, mas não fala uma palavra de política.

“Com a situação que vivemos, com artistas presos e exilados, existir um espaço cultural como esse é um absurdo. Também é um horror que artistas façam shows lá sem se manifestar sobre a repressão. Deveria haver uma greve de tudo nesse país —e também da cultura”, diz Ceballos.

Enquanto as condenações calam a oposição, a situação econômica, há décadas afetada pelas sanções impostas pelos Estados Unidos, vem se deteriorando ainda mais. Devido à pandemia de Covid, o PIB de Cuba sofreu uma redução de 11% em 2020, e a inflação chegou a 300%. Apesar da reabertura ao turismo, vem sendo difícil chegar aos níveis anteriores.

A Guerra da Ucrânia também piorou a situação, já que russos chegavam a compor 20% do turismo durante a alta temporada. Neste ano, por exemplo, houve 30 mil cancelamentos de reservas após as restrições impostas a voos de Moscou. Há, ainda, turistas russos sem saber como voltarão para casa.

Para fazer com que o envio de remessas do exterior retome o ritmo, o regime abriu canais para facilitar a saída de cubanos. Firmou com a Nicarágua, por exemplo, um acordo de não exigência de visto ou permissão para viajar, e, assim, desde outubro de 2021, mais de 200 mil cubanos emigraram para o país controlado por Daniel Ortega com a intenção de cruzar legal ou ilegalmente a fronteira com os EUA.

O caminho, porém, com poucos voos diretos para Manágua, custa só com passagens cerca de US$ 2.000 (R$ 9.830) por pessoa. E os coiotes cobram até US$ 10 mil (R$ 48,8 mil) para a jornada. Oficialmente, os EUA afirmam ter recebido no ano passado 32 mil cubanos que hoje estão sob custódia do Estado.

Segundo o Código Penal cubano, que terá uma nova versão neste ano, deixar a ilha de modo ilegal é crime passível a até 30 anos de prisão. O regime, porém, tem feito vista grossa, já que a economia precisa de divisas enviadas do exterior.

O número de “balseros”, que tentam chegar à Flórida por mar, aumentou sete vezes desde o ano passado. Os barcos de patrulha dos EUA vêm circulando com a placa “não se lancem ao mar” e têm devolvido muitos migrantes. O governo Joe Biden diz preferir que a entrada seja feita por terra, mesmo que a definição desses casos seja complicada, do que enfrentando os perigos da travessia marítima.

A ideia de deixar o país tampouco é a mais popular. Yulier (nome fictício), de Los Pocitos, lembra-se da “imensa família” que tem em Cuba e da mãe, que está doente. “Por que tenho de sair?”

Otaño, que viaja com frequência devido à atividade acadêmica, afirma ser errado pensar que o cubano só quer saber de ir embora. “Na verdade, quando viajo, o que mais temo é que me impeçam de voltar.” Ou, como disse o escritor Leonardo Padura, na Europa para promover seu novo livro, “Como Polvo en el Viento”: “Por que eu tenho que sair? Eu cheguei antes”.

04 de maio de 2022

ERRO DE DIAGNÓSTICO E ATRASO DOS BCS LEVARAM À RECESSÃO!

(Paulo Leme – O Estado de S. Paulo, 01) Há um ano, alertei que nos Estados Unidos “o excesso de gastos aumentará a dívida pública e a inflação, forçando o Fed a pisar fundo no freio monetário, o que levaria a economia a uma recessão e o mercado financeiro a um bear market”.

Infelizmente, a previsão se materializou: a inflação continua subindo e o PIB global já está se desacelerando.

Há um ano, já era claro que os bancos centrais das economias desenvolvidas tinham de ter iniciado o ciclo de aperto da política monetária, porque o risco inflacionário era alto e o custo de reduzir a inflação era baixo (a economia mundial e demanda agregada cresciam vigorosamente e o desemprego caía). Na outra ponta, o BC brasileiro acertou ao iniciar o ciclo de alta dos juros há um ano.

O erro de diagnóstico e o atraso dos bancos centrais deixaram a economia mundial exposta à sorte, o que é péssimo. No início de 2022, as perspectivas para a economia mundial eram boas, apesar de que o viés de risco era de inflação mais alta e crescimento do PIB mais baixo.

Desde fevereiro, a economia mundial sofreu dois choques que dificultaram a tarefa dos bancos centrais: a guerra na Ucrânia e o lockdown da China para controlar o surto de covid. O que parecia ser passageiro infelizmente se tornou duradouro, expondo a economia mundial a um poderoso choque contracionista da oferta agregada, oferta esta que se tornou mais inelástica devido à escassez de commodities, insumos e disrupções logísticas.

A resultante destas forças é um aumento expressivo e persistente da inflação e uma desaceleração brusca do crescimento econômico mundial.

Agora, os bancos centrais terão de correr atrás do prejuízo e acelerar o aperto da política monetária para reduzir a inflação, contrair a demanda agregada e aumentar o desemprego, quebrando a espiral da inflação aos salários.

O outro erro feito pelo Fed foi a falta de regras e de uma comunicação clara com o mercado. Parece um reality show: a cada dia que passa, os membros do Fed enviam mensagens contraditórias, aumentando a volatilidade dos mercados financeiros.

O resultado é que, hoje, a economia global corre o risco de sofrer estagflação (estagnação econômica com um aumento da inflação). Consequentemente, os mercados entraram em um bear market.

Mas nem tudo está perdido: um acordo de paz na Ucrânia e o fim da onda de covid na China, combinados com bancos centrais mais assertivos, poderiam reduzir a inflação e evitar uma recessão global

03 de maio de 2022

COLEÇÃO FOLHA PUBLICA ‘LEVIATÃ’, CLÁSSICO DA FILOSOFIA POLÍTICA, DE THOMAS HOBBES!

(Folha de SP, 29) A Coleção Folha Os Pensadores traz um dos maiores clássicos da filosofia política de todos os tempos: “Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil”, do inglês Thomas Hobbes (1588-1679), em tradução de Daniel Moreira Miranda.

O título da obra é alusivo ao monstro marinho mencionado na Bíblia como serpente tortuosa e veloz. Publicado em 1651 e posteriormente revisado em 1668, “Leviatã” foi escrito durante a Guerra Civil Inglesa (1642-1651), que opôs os partidários do Parlamento, liderados por Oliver Cromwell (1599-1658), e os do rei Carlos 1o —derrotado e executado.

Hobbes descreve o que ele chama de “estado de mera Natureza” como “estado de Guerra de todos contra todos”, e afirma: “a Causa Final, o Objetivo ou o Desígnio dos homens (que, naturalmente, amam a Liberdade e o Domínio sobre os outros) ao introduzirem restrições para si mesmos (com as quais os vemos viver em Estados) é a preocupação com sua própria preservação e em levar, como resultado disso, uma vida mais feliz; isto é, a preocupação em sair do miserável estado de Guerra, o qual é uma consequência necessária (como foi mostrado no Capítulo 13) das Paixões naturais dos homens, sempre que não existir um Poder visível que os mantenha intimidados e os vincule, utilizando o medo da punição para o cumprimento dos Pactos e a observação das Leis Naturais”.

Para ele, o Estado pode se organizar como monarquia, democracia ou aristocracia. E, ao comparar esses três sistemas, posiciona-se enfaticamente pelo modelo monárquico.

“Veja bem, em uma Monarquia, o interesse privado é o mesmo que o público. As riquezas, o poder e a honra do Monarca surgem apenas das riquezas, da força e da reputação de seus Súditos. Isso porque nenhum Rei pode ser rico, glorioso ou seguro quando seus Súditos são pobres, desprezíveis ou estão muito fracos, por causa da carestia ou dos desacordos, para conseguirem manter uma guerra contra seus inimigos”, argumenta.

“Já em uma Democracia ou Aristocracia, a prosperidade pública não acrescenta tanto à fortuna privada do corrupto ou ambicioso, como, muitas vezes, o fazem um conselho desleal, uma ação traiçoeira ou uma guerra civil.”

02 de maio de 2022

A COLÔMBIA PRECISA ESCAPAR DA POLARIZAÇÃO!

(O Estado de S. Paulo, 24) Em fevereiro de 2002, Ingrid Betancourt tinha pouco apoio nas pesquisas para a presidência da Colômbia. Crítica das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a então candidata independente foi sequestrada durante ato de campanha na região de Caguán.

Vinte anos depois, ela retorna à disputa presidencial, mais uma vez como candidata independente, após deixar a coalizão de centro, e aposta em ser a terceira via em uma eleição polarizada, marcada para 29 de maio.

Qual é a importância das eleições deste ano?

A Colômbia precisa escapar da polarização. Temos dois candidatos na liderança que são de extrema esquerda, (Gustavo) Petro, e de extrema direita, Fico (Federico Gutiérrez). E o que vemos é que a Colômbia está tentada a voltar a uma situação anterior ao acordo de paz, o que poderia levar novamente a situações de violência. Por outro lado, temos a crise na Ucrânia e a Colômbia se torna um espaço geopolítico de interesse para forças que estão gravitando na região por meio da Venezuela, os russos, que têm interesse em quebrar as alianças tradicionais da Colômbia com o Hemisfério Norte. Isso leva à tentação de cair em esquemas que colocam em risco a democracia e a liberdade de expressão na região.

O acordo de paz pouco avançou em cinco anos. O que precisa mudar?

Temos de acelerar a implementação do acordo. Por exemplo, não se acelerou a restituição de terras às vítimas deslocadas e não se está dando os títulos de posse das propriedades com celeridade suficiente. Se isso não for feito, as pessoas que voltam às suas terras não têm acesso ao crédito e não podem viver da terra. Outro gargalo é com as instituições de transição. A Justiça Transicional tem um número de processos enorme e pouco tempo, até 2028, para sentenciar e condenar os atores criminosos. Depois de cinco anos, ainda não temos nem a primeira sentença, mesmo em crimes tão óbvios, como os de sequestros das Farc. Por último, é muito importante que os colombianos que apostaram na paz tenham sua vida protegida. Tivemos mais de 600 assassinatos de pessoas vinculadas à desmobilização.

A senhora foi criticada quando pediu indenização pelo sequestro e por deixar o país. Como responde?

Essas críticas fazem parte da narrativa vendida por um Estado corrupto. A lei estabelece o direito às vítimas do terrorismo de recorrer a reparações. O Estado utilizou uma narrativa muito perversa, que foi dizer aos colombianos que querer a reparação era abusar do Estado. Há interesses políticos nessas críticas, mas elas também mexem com a realidade de milhões de colombianos que saíram da Colômbia por causa da violência.

Como é a relação com os ex-integrantes das Farc no contexto político?

Ela já existe porque eles já são um partido político. O que a Colômbia precisa é mais do que uma voz política por parte do (partido) Comunes, é uma reconciliação com o país. Essa reconciliação tardou porque havia uma dificuldade em criar cenários de reconciliação, na qual membros do secretariado das Farc pudessem entender a dor das vítimas e saíssem da narrativa de justificativa do que fizeram para uma narrativa de reparação.

Como enfrentar o narcotráfico e responder aos jovens que saíram às ruas do país nos últimos anos?

O tema da droga é crítico, já não somos apenas um país produtor, mas um país consumidor. Os consumidores colombianos também estão contribuindo para as rendas dos grupos narcotraficantes, todos os países consumidores estão. É preciso passar de uma política de criminalização do consumo para uma política de saúde pública do consumo. Todo o músculo financeiro dos Estados Unidos e o esforço militar da Colômbia não conseguiram acabar com essa situação, assim como no México e no restante da nossa região. Se conseguirmos um acordo desse tipo, teremos de ter a capacidade de enfrentar os danos locais. Na Colômbia, o desflorestamento em razão do tráfico de drogas é enorme e leva à perda da Amazônia.

Como foi a decisão de voltar ao país agora e se candidatar?

Levei tempo para tomar a decisão e foi pelo amor à Colômbia. Tenho aqui meus filhos e minha família. Ao sentir que a família voltou a ser família, se abriu a possibilidade de trabalhar com a família Colômbia.

Qual é a importância de uma mulher estar envolvida no processo político?

Falar como mulher é uma revolução na Colômbia, um país muito patriarcal, com esquemas machistas muito fortes, mas também com uma presença feminina muito importante, no sentido de que as mulheres fizeram a Colômbia. Esse é um país onde 40% dos lares têm uma mulher como chefe de família. As mulheres aqui aceitam ser mães, apesar de o homem não estar presente. Essa realidade traz uma responsabilidade e um compromisso muito forte. Durante 200 anos de nossa independência, fomos marcados por uma visão masculina de gerenciamento do tema público, ou seja, de confrontação verbal, física, de muita violência.

29 de abril de 2022

CARNAVAL DEU O RECADO SOBRE O PROTAGONISMO NEGRO NO BRASIL!

(Cida Bento, conselheira do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, doutora em psicologia pela USP – Folha de SP, 27) Se em algum momento pudemos ter dúvidas sobre o quanto ecoam nas periferias e favelas as vozes de intelectuais e ativistas que lutam por um país que reconheça a força da cultura que emana de sua população, os Carnavais dos últimos anos não deixam dúvidas.

A maioria das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro (oito em 12 escolas) e de São Paulo (sete em 14 escolas) trouxe para a avenida enredos que homenagearam personalidades negras, a cultura afro-brasileira e o protagonismo negro na história do país. E fizeram duras críticas ao racismo e ao assassinato da juventude negra.

O recado foi dado!

Esse processo não começa agora e não ocorre por acaso, mas atinge um pico neste período de nossa história, no qual, não por coincidência, alcançamos um nível de violência racial que é o maior dos últimos 30 anos, em cidades como o Rio de Janeiro, segundo demonstra o Mapa da Violência no Brasil.

Personalidades negras queridas e respeitadas pela população brasileira que haviam sido atacadas nos últimos seis anos por órgãos do governo federal numa tentativa de desonrá-las foram exaltadas, homenageadas nas ruas, por milhares de sambistas. Num dos maiores e mais lindos espetáculos a que temos o privilégio de assistir.

E é assim que constatamos que o que acontece de negativo no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, muitas vezes na calada da noite, vem sendo acompanhado por olhares atentos e críticos das periferias e favelas.

As escolas de samba são um território complexo onde muitas vezes não temos na liderança pessoas negras, como, aliás, acontece na maioria das organizações brasileiras e onde a luta pelo poder pode repetir a mesma lógica violenta e excludente que observamos em outras instituições brasileiras.

Mas é também um espaço de aquilombamento, de compartilhamento das raízes culturais pela música, pela dança e pelo teatro. E, nesse sentido, é território fértil para a ampliação da crítica social e da democracia, já que múltiplas vozes, LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência, pessoas negras e indígenas buscam se manifestar.

E um diferencial marcante nesse contexto de Carnaval vem sendo a maneira crescente com que aparece a valorização das religiões afro-brasileiras.

Num país que é laico, segundo a Constituição de 1988, não poderiam ocorrer relações de dependência com nenhum culto e, principalmente, não poderia haver perseguição ou impedimento do funcionamento de cultos de qualquer natureza.

Mas isso vem acontecendo!

A despeito de nossa Constituição ter consagrado o princípio de liberdade de crença, de culto, de liturgias e de organização religiosa, crescem as denúncias de violações de direitos no campo do credo religioso contra judeus, muçulmanos, dentre outros grupos. E as religiões afro-brasileiras vêm sendo duramente atingidas por diferentes formas de violência, como agressões físicas e verbais a religiosos, ameaças, pichações em templos e lugares públicos e propagandas de ódio veiculadas na internet.

São frequentes, ainda, as denúncias de invasão dos templos, praticadas por maus policiais, sem mandado judicial e a qualquer hora do dia ou da noite.

Assim é que foi muito animador ver as escolas de samba, em 2022, trazerem para a rua os orixás: narrarem a história de Oxóssi, cantarem Exu ou Oxalá, divindades das religiões de matriz africana.

Isso nos lembrou que a laicidade do estado brasileiro não é um elemento de restrição do pertencimento e expressão religiosos, pelo contrário, é uma riqueza que marca nossa sociedade tão diversa.

​Assim, que possamos contribuir para que essa crítica de parcela expressiva da nossa população à violência social, em particular a religiosa que se manifestou na avenida, se manifeste também nas eleições. Com a certeza de que podemos e vamos fazer a diferença.

28 de abril de 2022

A DESASTROSA POLÍTICA ECONÔMICA ATUAL!

(Claudio Adilson Gonçalez, diretor-presidente da MCM Consultores – Estado de SP, 18) O potencial de crescimento brasileiro declinou para patamar muito baixo, provavelmente algo entre 1% e 2% ao ano, com o País ainda pobre e desigual. Com PIB por habitante (conceito paridade do poder de compra) em torno de US$ 14 mil, o Brasil deve estar atualmente próximo à 100.ª posição no ranking organizado com base em dados do Banco Mundial. Uma vez atingido o pleno-emprego, a economia brasileira tem baixíssima capacidade de expansão da oferta de bens e serviços. Nessas condições, quando o Banco Central necessita elevar os juros para conter os efeitos inflacionários secundários de choques de oferta, como os que estão ocorrendo desde o segundo semestre de 2020, há um elevado risco de derrubar a taxa de crescimento para nível negativo, podendo jogar o País na recessão.

Além disso, a taxa estrutural neutra de desemprego, estimada pelos economistas em aproximadamente 9%, é muito elevada. Mesmo com a economia operando próxima ao ponto de equilíbrio não inflacionário, mais de 9 milhões de pessoas em idade ativa continuarão desempregadas. Se somarmos os desalentados e os subocupados, esse número quase dobra.

Esse elevado nível de desocupação tem múltiplas causas, mas a principal é a precária qualificação da mão de obra. Muitos que desejam trabalhar não têm as habilidades mínimas para conseguir um emprego. Claro, isso tem que ver com a fraca qualidade da educação, com a pobreza e com a enorme desigualdade de renda, que limitam as oportunidades para a formação profissional de uma enorme parcela da população.

Combater os pontos aqui levantados está longe do foco da política econômica capitaneada por Bolsonaro, Ciro Nogueira, Arthur Lira e, às vezes, por Paulo Guedes. Ao contrário, o que fizeram foi agravar as mazelas que sustentam o perverso círculo vicioso de baixa produtividade, elevado desemprego, pobreza e virtual estagnação da renda per capita.

Na educação, que tem muito que ver com economia, Bolsonaro já teve quatro ministros, incluindo Paulo Vogel, que ocupou o comando da pasta interinamente. Se houve abundância de ministros, inexistiu qualquer política para melhorar a qualidade de ensino.

Paulo Guedes e Arthur Lira mataram a excelente proposta de reforma tributária consubstanciada na PEC 110 do Senado, que, segundo estudos bem fundamentados, teria enorme impacto positivo no crescimento potencial. Da mesma forma, a reforma administrativa sucumbiu, as privatizações não andaram, anarquizaram-se as regras fiscais e faltou competência para ampliar a abertura da economia. Os investimentos da União, que já haviam caído muito, mesmo antes do atual governo, estão praticamente desaparecendo.

Talvez pior do que tudo isso é o Brasil ter se tornado um verdadeiro pária internacional, graças ao notório desprezo de Bolsonaro à democracia, aos direitos das minorias e ao meio ambiente.

18 de abril de 2022

BUSCA POR ‘DROGA SONORA’ PÕE SAÚDE DE JOVENS EM RISCO E PREOCUPA OS PAIS!

(O Estado de S. Paulo, 13) Vendidos pela internet, áudios com frequências e intensidades variadas podem afetar o aparelho auditivo.

Um adolescente ensina na rede social Tiktok a ficar “loucão” sem usar droga: segundo ele, bastaria ouvir um tipo de som em uma plataforma chamada i-doser para obter um efeito mental parecido ao de um alucinógeno. A busca na internet por essas “drogas sonoras” ou “drogas digitais” tem preocupado famílias e chamado a atenção de médicos. Não são entorpecentes. Especialistas dizem que esses áudios não trazem risco de dependência, mas recomendam cautela para não prejudicar a audição.

Mas o que são, exatamente, essas “drogas”? São áudios, com frequências e intensidades variadas, vendidos online, em sites ou aplicativos. Há também músicas do tipo gratuitas no Youtube. Elaborado com base em uma técnica conhecida como binaural beats, descoberta no fim do século 19, esse tipo de conteúdo não é novo, mas ganhou impulso com as redes sociais.

Mensagens na internet relacionam essas plataformas de som a efeitos alucinógenos e até a overdose – o que é falso. Ainda faltam evidências científicas para descrever consequências do consumo desses sons no organismo. Não é possível dizer que um adolescente que já ouviu esses áudios tenha sofrido algum dano cerebral. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomendou cuidado, no entanto, pelos riscos ao aparelho auditivo.

Adeptos das batidas binaurais dizem ouvir os sons para relaxar, trabalhar melhor ou ter experiências sensoriais novas. As batidas oferecem sons de frequências diferentes para cada ouvido – o que torna a experiência diversa da de ouvir uma música comum.

Um estudo australiano publicado no fim de março identificou, pela primeira vez, que parte das pessoas que escutam esse tipo de som busca, com a experiência, obter efeito semelhante ao de outras drogas. Na i-doser, uma das plataformas que vende as batidas, os nomes de alguns desses áudios fazem referência ao de drogas já conhecidas, como a maconha. Uma “dose” do aplicativo custa menos de R$ 7.

A pesquisa, publicada no periódico Drug and Alcohol Review, aponta que 5,3% dos entrevistados escutaram batidas binaurais para vivenciar estados alterados nos 12 meses anteriores. Desses, a maioria usou o recurso para relaxar ou dormir, mas 11,7% relataram usar os sons para simular a experiência com drogas. A pesquisa ouviu 30,8 mil pessoas em 22 países. Aqueles identificados com maior prevalência de uso das batidas foram Estados Unidos, México, Brasil, Polônia, Romênia e Reino Unido. A frequência de consumo desses sons é maior na faixa etária entre 16 e 20 anos.

A pesquisa não investigou se houve alteração cerebral entre quem relatou escutar essas batidas. “Não está claro se batidas binaurais são semelhantes em efeito às drogas psicoativas que buscam simular”, ponderam os cientistas, ligados ao Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na Austrália.

PLACEBO.

Especialistas destacam que áudios – mesmo esses de frequências variadas – não são capazes de viciar como as drogas. O que pode ocorrer, no entanto, é um efeito placebo. “Cria uma experiência sensorial auditiva incomum que faz com que uma pessoa sugestionada acredite que é o efeito de uma droga, psicodélico. Mas está longe disso”, explica o neurologista e neuroimunologista Thiago Taya, do Hospital Brasília, da rede Dasa.

Ele afirma que tem crescido a preocupação sobre esse tipo de consumo, mas o risco pode ser até inverso: ao experimentar essas batidas sonoras, vendidas como semelhantes a drogas, e identificar que parecem inofensivas, os jovens podem se sentir encorajados a buscar entorpecentes de verdade – esses, sim, com efeitos nocivos.

Diante do aumento da preocupação de famílias sobre as falsas drogas sonoras, a SBP divulgou este mês uma nota de alerta sobre o tema. O documento descreve o i-doser como um “fenômeno atual”, disseminado em vídeos nas redes sociais. A preocupação é com danos aos ouvidos de crianças e adolescentes e com a estimulação auditiva exagerada. “A estimulação exagerada e contínua pode ocasionar a perda da neuroplasticidade e assim, afetar as conexões necessárias para o desenvolvimento cerebral e mental saudável”, aponta a nota de alerta da SBP.

No vídeo publicado no Tiktok, o adolescente que incentiva outros a ouvir as batidas diz que a experiência só funciona com fones de ouvido em “um volume consideravelmente alto”. O documento da SBP destaca que o uso indiscriminado de fones de ouvido, em volumes acima do tolerável “vem repercutindo negativamente na audição, configurando um modismo que merece a atenção especial na era digital”.

RUÍDO.

A sociedade médica esclarece que o nível de intensidade de ruído de fones de ouvido varia entre 60-70 decibéis e 110-120 decibéis. Entre crianças e adolescentes, o nível seguro de ruído é de 70 decibéis. Para tentar obter o efeito alucinógeno prometido, é provável que adolescentes escutem essas batidas em níveis de intensidade superiores à recomendada. “Os adolescentes são curiosos, impulsivos, desafiam limites, e mesmo percebendo riscos vão tentar ‘esticar’ seus limites corporais”, diz Evelyn Eisenstein, coordenadora do Grupo de Trabalho Saúde Digital da SBP. Outro problema é a exposição prolongada a sons intensos, o que pode levar à perda auditiva.

Segundo especialistas, a nova moda ressalta a necessidade de que as famílias acompanhem a vida digital dos filhos e o uso que fazem dos eletrônicos. “É importante que os pais tenham calma para entender que não é tudo o que dizem por aí. E que os filhos sejam instruídos e façam uso com bom senso de qualquer experiência na vida, não só do i-doser”, diz Taya. A reportagem não conseguiu contato ontem com a plataforma i-doser.

14 de abril de 2022

COMÉRCIO E PAZ: A GRANDE ILUSÃO!

(Paul Krugman – O Estado de S. Paulo, 13) Em 12 de abril de 1861, a artilharia rebelde abriu fogo contra o Fort Sumter, dando início à Guerra Civil Americana. A guerra foi uma catástrofe para o Sul, que perdeu mais de um quinto de seus jovens. Mas por que motivo os secessionistas acharam que seriam capazes de vencer?

Uma razão foi que eles acreditavam ter em mãos uma poderosa ferramenta econômica. A economia do Reino Unido, a maior potência da época, era profundamente dependente do algodão do Sul, e os confederados achavam que uma interrupção do fornecimento forçaria os britânicos a intervir ao seu lado. Realmente, a Guerra Civil criou inicialmente uma escassez de algodão que deixou milhares de britânicos sem trabalho.

NEUTRALIDADE.

Por fim, evidentemente, o Reino Unido permaneceu neutro – em parte porque os trabalhadores britânicos consideraram a Guerra Civil uma cruzada moral contra a escravidão e se uniram em torno da causa da União, apesar do próprio sofrimento.

Por que recontar essa antiga história? Porque ela tem relevância óbvia com a invasão russa à Ucrânia. Parece bastante claro que Vladimir Putin considerou a dependência da Europa, e particularmente da Alemanha, em relação ao gás natural russo da mesma maneira que os donos de escravos consideraram a dependência britânica em relação ao Algodão Rei: uma forma de dependência econômica que coagiria essas nações a favorecer suas ambições militares.

ALEMANHA.

E ele não estava completamente equivocado. Na semana passada, castiguei a Alemanha por sua falta de disposição em fazer sacrifícios econômicos em nome da liberdade da Ucrânia. Não devemos esquecer que a resposta da Alemanha aos pedidos de ajuda militar da Ucrânia quando a guerra era iminente também foi patética.

Os britânicos e os americanos se apressaram em prover armamento letal, incluindo centenas de mísseis antitanque que foram cruciais para repelir o ataque russo contra Kiev. A Alemanha ofereceu e demorou para entregar 5 mil capacetes.

E não é difícil imaginar que, digamos, se Donald Trump ainda fosse presidente, a aposta de Putin de que o comércio internacional seria uma força de coerção, não de paz, seria comprovada.

Se você acha que estou tentando ajudar a expor a Alemanha para que o país se torne um melhor defensor da democracia, você está certo. Mas também estou tentando apresentar um argumento mais amplo a respeito da relação entre globalização e guerra, que não é tão simples como muitos acreditam.

Há uma crença antiga e persistente entre as elites ocidentais de que o comércio favorece a paz – e vice-versa. O extenso esforço dos EUA pela liberalização do comércio, anterior até mesmo à 2.ª Guerra, sempre foi parte de um projeto político: Cordell Hull, secretário de Estado do então presidente Franklin Roosevelt, acreditava firmemente que tarifas mais baixas e a intensificação no comércio internacional ajudariam a construir as fundações da paz.

A União Europeia também foi um projeto tanto econômico quanto político. Suas origens remontam à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, estabelecida em 1952, com o objetivo explícito de tornar as indústrias da França e da Alemanha tão interdependentes que jamais poderia haver outra guerra europeia.

VULNERABILIDADE.

E as raízes da atual vulnerabilidade alemã remontam à década de 60, quando o governo da Alemanha Ocidental começou a perseguir a Ostpolitik – “política oriental” –, buscando normalizar relações, incluindo relações econômicas, com a União Soviética, na esperança de que uma integração crescente com o Ocidente fortaleceria a sociedade civil do Oriente a caminho da democracia. O gás russo começou a fluir para a Alemanha em 1973.

Então, o comércio promove paz e liberdade? Em alguns casos, sem dúvida. Mas, em outros casos, governantes autoritários, mais preocupados com poder do que com prosperidade, podem considerar integração econômica com outras nações uma licença para mau comportamento, acreditando que democracias com um forte empenho financeiro em seus regimes farão vista grossa para seus abusos de poder.

Não estou falando apenas da Rússia. A União Europeia tem permanecido apática há anos enquanto vê Viktor Orbán, da Hungria, desmantelar sistematicamente a democracia liberal em seu país. A que medida essa apatia pode ser explicada pelos enormes investimentos na Hungria feitos por empresas europeias, especialmente alemãs, em busca de custos menores de mão de obra?

E então vem a questão verdadeiramente enorme: a China. Xi Jinping considera a íntima integração chinesa com a economia mundial um motivo para evitar políticas aventureiras – como invadir Taiwan – ou uma razão para esperar respostas subservientes do Ocidente? Ninguém sabe.

SEGURANÇA.

Mas veja, não estou sugerindo um retorno ao protecionismo. Estou sugerindo que preocupações de segurança nacional sobre comércio – preocupações verdadeiras, não visões fantasiosas e ridículas, como Trump invocando a segurança nacional para impor tarifas sobre o alumínio canadense – precisam ser levadas mais a sério do que eu e outras pessoas acreditamos anteriormente.

Mais imediatamente, porém, nações cumpridoras da legalidade precisam mostrar que não serão dissuadidas em relação à defesa da liberdade. Autocratas podem acreditar que o envolvimento financeiro dessas democracias com seus regimes autoritários fará com que esses países tenham medo de defender seus valores. Precisamos provar que eles estão errados.

E isso significa, na prática, que a Europa deve se movimentar rapidamente para cortar suas importações de petróleo e gás da Rússia; e o Ocidente precisa fornecer para os ucranianos as armas que eles precisam não apenas para deter Putin, mas para alcançar uma vitória incontestável. Não é apenas o futuro da Ucrânia que está em jogo

13 de abril de 2022

QUAL POLARIZAÇÃO?!

(Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Folha de SP, 07) Polarização é palavra da moda. Borda o debate público a torto, a direito e ao centro. Grudou na língua de presidenciáveis, que se propagandeiam como o meio entre “polos” igualmente extremados e indesejáveis.

Anda pop tratar o fenômeno como fruto das mídias sociais, mas a clivagem nós/eles está aí desde que o mundo é mundo —e com mais assiduidade que a tolerância. Sempre existiram comunidades autorreferidas, cujos membros se insulam, que respeitam somente opiniões, estilos, ações de seus compatriotas de grupo, enquanto depreciam, atacam e, se possível, destroem os que lhe são estrangeiros.

Nem é coisa nova, nem veste bem conjuntura eleitoral. Segundo turno só tem mesmo duas opções, obriga afunilar. O termo “polarização” ajuda quem se pretende o centro, pois bane o resto para os cantos, como extremos. A operação intelectual de equiparar adversários à direita e à esquerda —Lula vale tanto, ou tão pouco, quanto Bolsonaro— legitima a terceira via como uma necessidade.

A equivalência ajuda uns, reconforta outros, mas é falsa.

Não existem dois extremos na cena eleitoral. Há um conjunto de candidaturas dentro do espectro democrático —de moderadas a conservadoras. Não há candidatura radical à esquerda, disposta a desacatar resultados eleitorais e decisões judiciais, destruir instituições e pegar em armas para eliminar adversários. Tudo isso floresce exclusivamente em torno de uma única candidatura, à direita.

A retórica do “tudo farinha do mesmo saco” empana o fundamental: a candidatura Bolsonaro é uma candidatura extremista. Embora eleito por meio das regras democráticas, jamais ocultou a intenção de subvertê-las.

Extremismo que anima o jogo presidencial preferido, o do bem contra o mal. Assim insufla a ilusão da sociedade partida pela metade, quando é socialmente minoritário —conta com apoio contínuo e firme de cerca de 15% do eleitorado. Para atrair mais votos, é útil ao presidente desenhar a outra candidatura viável como um extremismo especular.

Assim, bolsonarismo a terceiraviismo se encontram na produção retórica de um “extremismo” de esquerda. Produção porque o “outro extremo” é, de fato, um conjunto vazio. A candidatura Lula-Alckmin é moderada, no máximo, de centro-esquerda.

Na ditadura, Lula, tido por radical, foi preso. Cumpriu a pena. Depois de presidir o país, acatou sentença judicial, quando tinha faca e queijo para se converter em líder político no exílio. Nos dois casos, não conclamou apoiadores à resistência armada, defendeu-se dentro das instituições. Nesta eleição, buscou vice na ala direita do PSDB, um político de proclamados valores conservadores.

A situação nada tem de bipolar. Há várias candidaturas democráticas e um único extremismo de tipo reacionário e autoritário.

O contraste ficou patente em episódio desta semana. Lula exortou sindicalistas a irem às residências dos deputados e pressioná-los: “não é para xingar não, é para conversar.” O cabo Junio Amaral, deputado pelo PL mineiro, logo deu seu endereço e o seu estilo de conversa, encerrou seu vídeo com pistola engatilhada. Carla Zambelli o secundou noutro vídeo, encimado pelo letreiro “Lula ameaça famílias”, no qual fala em “pregar bala” em “legítima defesa”.

Esta é a genuína polarização, entre os fiéis aos mecanismos democráticos da persuasão e do voto e os amantes das alternativas autoritárias e violentas

12 de abril de 2022

POPULISTAS DE DIREITA ESTÃO PROSPERANDO!

(Fareed Zakaria – Washington Post/Estado de SP, 09) Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, inúmeros comentaristas acreditaram que ao menos uma coisa boa decorreria dessa nuvem de catástrofe. O ataque de Vladimir Putin contra a ordem liberal, esperavam eles, exporia e deslegitimaria forças iliberais populistas que têm surgido há anos.

Um deles especulou que a guerra na Ucrânia poria fim à era do populismo. Outro, o acadêmico Francis Fukuyama, considerou o episódio uma oportunidade para as pessoas finalmente rejeitarem o nacionalismo de direita. Contudo, passadas seis semanas do início deste conflito, tais noções parecem ilusões otimistas.

ELEIÇÕES. Na Europa, duas eleições cruciais – na Hungria e na França – revelam a verdade. Até poucos dias atrás, era possível sugerir, como o fez um artigo da Atlantic, que a guerra na Ucrânia estava “agitando a política europeia” ao expor registros iliberais e próPutin da líder francesa de extrema direita Marine Le Pen e do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán.

Esses especialistas foram citados afirmando que Orbán “estava tentando desesperadamente reformular os acontecimentos da guerra” e prevendo que os franceses veriam o presidente, Emmanuel Macron, neste momento, “provavelmente como a única pessoa capaz de liderá-los através desta crise”.

Na realidade, Orbán acaba de ser reeleito – e para o quarto mandato consecutivo – por uma margem conveniente, com sua coalizão obtendo cerca de 53% dos votos e os opositores, aproximadamente 34%. No mesmo dia, eleitores da Sérvia reelegeram um presidente populista, convictamente próPutin, que venceu de lavada.

LE PEN. Na França, onde o primeiro turno da eleição presidencial ocorre amanhã, pesquisas sugerem que a liderança de Macron tem evaporado e Le Pen cresceu significativamente. Conforme afirmou a manchete do New York Times: “Mesmo antes de a França votar, a direita francesa é a grande vencedora”. Na Europa, pelo menos, o populismo de direita continua a prosperar.

Isso não significa que as ações da Rússia na Ucrânia sejam populares, mas elas não dominam a visão de mundo das pessoas. As reputações de políticos pró-putin não sofreram com a guerra da maneira que muitos esperavam.

Frustrado com o líder húngaro se aconchegando com Putin, Volodmir Zelenski apostou num ataque direto a Orbán, afirmando que ele é “virtualmente o único na Europa a apoiar Putin abertamente”. Isso não funcionou.

Nos EUA, é possível observar forças similares em ação, apesar de não serem tão fortes. Nas primeiras semanas da guerra, o Partido Republicano parecia ter revertido sua histórica belicosidade em política externa. Muitos republicanos da velha-guarda são veementemente anti-putin e próUcrânia.

Mas essa posição não descreve as opiniões do homem que continua sendo o líder mais popular do partido: Donald Trump, que tem elogiado Putin desde o início da invasão. O âncora mais graduado da Fox News, Tucker Carlson, que mais de dois anos atrás declarou que estava do lado da Rússia em sua batalha contra a Ucrânia, passou recentemente a repetir propaganda russa a respeito da existência de supostos laboratórios de armas biológicas na Ucrânia.

VANTAGENS. Vale notar alguns matizes. Orbán manipulou a democracia da Hungria de maneiras que lhe proveram vantagens estruturais. Em 2010, ele se movimentou para conceder cidadania a 2,4 milhões de húngaros étnicos que viviam no exterior e se retratou como o único defensor de seus direitos, o que lhe garantiu amplo apoio desses novos eleitores. Ele esmagou quase todos os meios de comunicação independentes.

O governo húngaro promove a imagem de Orbán, distribuindo pôsteres financiados com dinheiro público. Esse tipo de prática levou a Freedom House a classificar a Hungria como o único país da Europa que é “parcialmente livre”.

POPULISMO. Mesmo assim, o populismo de direita é genuinamente popular na Hungria e em outros países. Ainda que Le Pen tenha tirado vantagem da inflação em alta, culpando o governo de Macron por todo e qualquer aumento de preços, o magnetismo fundamental dela emana de seu estridente nacionalismo cultural. Orbán, Le Pen e outras personalidades da direita vociferam constantemente contra imigrantes, multiculturalismo e “lacração”, a nova palavra que aflora na França.

Ao mesmo tempo, esses líderes deixam de lado a economia de livre mercado da velha direita. Le Pen criticou muitas das reformas neoliberais de Macron e abraçou antigas políticas estatizantes da esquerda, como jornada de trabalho de 35 horas e aposentadoria antecipada. Ela especulou publicamente que poderia trazer membros da esquerda que concordem com suas ideias a respeito de protecionismo e política industrial. Orbán tem praticado há muito tempo um tipo de populismo estatizante que distribui generosos subsídios estatais para grupos que seu partido favorece.

Na França, Marine Le Pen, de extrema direita, subiu nas pesquisas às vésperas das eleições

ULTRAJES. Nos EUA, Carlson gasta pouco tempo com a guerra na Ucrânia, preferindo em vez disso colocar o foco de seu programa num cardápio diário de ultrajes contra políticas lacradoras e a cultura do cancelamento. Republicanos proeminentes, como o governador da Flórida, Ron Desantis, fazem o mesmo. Se você ouvisse a direita americana, você acreditaria que os temas mais prementes do mundo atual são diretorias de escolas que doutrinam crianças com ideias de fluidez de gênero.

É verdade que essas ideias atraem apenas parte do eleitorado – especialmente os eleitores mais velhos, mais rurais e menos educados. Mas já deveria estar claro que esses eleitores são numerosos o suficiente e apaixonados o suficiente para vencer eleições – nos dois lados do Atlântico.

11 de abril de 2022

QUAL É O FUTURO DOS BRICS APÓS GUERRA DA UCRÂNIA – E COMO BRASIL SE EQUILIBRA NO BLOCO?!

(BBC News Brasil, 05) Quinze anos depois de ser criado, o bloco de países emergentes formado por Brasil, Rússia, China, Índia e, mais tarde, África do Sul, e conhecido pela sigla Brics, está numa encruzilhada.

A Guerra da Ucrânia, iniciada por um de seus cinco membros, pode forçar o grupo a cumprir um dos destinos que analistas internacionais apontam como o futuro da instituição: de um lado, virar um “bloco zumbi”, sem impactos práticos para seus membros; de outro, se fortalecer a ponto de representar uma força alternativa ou antagonista a grupos dos países ricos como o G7 (composto por Canadá, França, Alemanha, Japão, Reino Unido, Itália e EUA).

Especialistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil se dividem sobre qual será o destino dos Brics mais de um mês após os tanques russos adentrarem as fronteiras com a Ucrânia, em uma guerra que já gerou milhares de mortos e mais de 4 milhões de refugiados na Europa.

“Instituições não somem e por isso os Brics devem seguir funcionando, mas com pouca relevância em termos de definições de posicionamentos e de peso geopolítico. O bloco flerta com a condição de zumbi, não há coesão ideológica e seus membros devem seguir com planos independentes paralelamente ao bloco”, afirmou à BBC News Brasil Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro do Policy Center for The New South, que acompanhou a formação e o desenvolvimento dos Brics.Manjari Chatterjee Miller, pesquisadora sênior para Índia, Paquistão e Sul da Ásia do Council on Foreign Relations, discorda do prognóstico de Canuto. Segundo ela, nos quase 16 anos de existência, os Brics permitiram a seus membros compartilhar informação (não só econômica, mas estratégica, como dados de segurança) e tirar do papel planos compartilhados, como a criação do banco do bloco, o New Development Bank (NDB).

O NDB, composto por cotas de 20% de cada um dos países membros, financia projetos em países emergentes a juros mais baixos e em moeda local, uma forma de proteger as economias desses países das oscilações do dólar.

No começo de março, o banco informou que, por decisão “técnica”, suspendeu as operações com a Rússia, depois que parte significativa do sistema bancário russo foi alvo de sanções e de exclusão do sistema internacional de transações financeiras, o Swift.

“Tudo isso foi feito em um espaço que excluía países ocidentais e os Estados Unidos. E foi muito importante para todos os seus membros porque fomentou a cooperação e permitiu a liderança. Duvido que veremos uma desintegração do Brics em breve, mesmo que haja bloqueios e recuos pontuais atualmente, como no caso do NDB, que suspendeu todas as novas transações na Rússia por causa da crise na Ucrânia”, disse Manjari à BBC News Brasil.

07 de abril de 2022

ENTREVISTA DE RODRIGO MAIA AO ESTADÃO (05/04) – PARTE II!

(O Estado de S.Paulo, 05) Ex-presidente da Câmara, deputado licenciado defende que tucanos se assumam como principal contraponto ao PT e busca experiência fora do Legislativo.

O antipetismo deixou de ser então o grande eleitor que foi em 2018?

O antipetismo é a mola mestra do presidente Bolsonaro, mas ninguém deu uma alternativa que o ocupe o lugar dele na centro-direita democrática. Temos que derrotar o Bolsonaro com uma candidatura que defenda aquilo que motivou o eleitor em 2018: um Estado moderno, eficiente, bom prestador de serviço e que segurança jurídica para o setor privado investir.

Qual a sua leitura sobre esse debate no PSDB sobre uma possível revogação das prévias pela convenção do partido e qual o valor dessa carta que o Bruno Araújo, presidente do partido, escreveu validando o resultado da consulta interna?

O governador Doria venceu um modelo de prévias que em tese era favorável ao governador Eduardo Leite. Ele (Doria) mesmo assim se dispôs a disputar. Não foi um voto para cada eleitor, mas com pesos diferentes para os líderes políticos. O melhor modelo era ser um voto para cada filiado ao PSDB. O processo escolheu de forma democrática o Doria e foi legitimado pelos adversários. Isso certamente tem muito mais valor que uma convenção. Mas não tenho nenhum interesse em participar desse debate, até porque isso pode enfraquecer o partido. O PSDB é o principal partido de contraponto ao PT, para não usar o termo centro direita, que alguns tucanos não gostam. Reclamam comigo quando eu uso. A gente devia ajudar o governador Doria a se viabilizar. Se lá em julho isso não acontecer, ele vai certamente construir uma solução. O nosso campo, que tem uma linha mais pró-mercado, está fora do debate. O debate está sendo feito entre valores conservadores – e muitas vezes reacionários – e por outro lado liberais demais com o PT e seus aliados.

Por que o sr. não encaminhou o processo de impeachment contra o Bolsonaro quando era presidente da Câmara?

Porque não havia apoio político. Uma vitória de Bolsonaro poderia fortalecer demais o presidente e organizar uma narrativa contra as instituições democráticas.

Avalia que a campanha do Rodrigo em São Paulo deve ser casada com a do Doria para presidente?

O governador Rodrigo precisa primeiro mostrar a sua história e sua experiência com 5 governadores e defender o Governo de São Paulo, que teve grandes acertos. Ele tem que ser o governador do Estado de São Paulo. Não tenho dúvida que ele chega ao 2° com pelos menos 25% dos votos.

Por que João Doria tem uma rejeição incompatível com a aprovação do governo?

Todos os políticos que se colocam no centro terão uma rejeição alta. Se você projetar a rejeição do Eduardo Leite e da Simone Tebet sobre o que eles têm hoje de imagem positiva e negativa, e o alto desconhecimento, eles chegarão a uma rejeição parecida a do governador Doria. Ele fez o enfrentamento a máquina bolsonarista, o que gera uma rejeição grande. Eles operam unidos. Não é à toa que o Tarcísio cresce rapidamente.

O sr não gosta do termo terceira via?

Não tem terceira via. O Tony Blair se dizia terceira via, mas não era. Eram os trabalhistas contra os conservadores. Depois de um ciclo longo com os conservadores no poder o partido trabalhista estava mofado. Tony Blair modernizou o partido e criou o termo terceira via apenas para sair isolamento da esquerda e caminhar para o eleitor de centro, que existe. O eleitor de centro pode decidir a eleição, mas não é majoritário no processo eleitoral em nenhuma democracia do mundo. Se você olhar as eleições no Brasil vai ver que sempre sobram os dois. Em 2002 Roseana (Sarney) foi alternativa e caiu. Depois veio o Lula disputar contra o Serra, que era o candidato do governo. Em 2018 o Bolsonaro ocupou o lugar do PSDB na polarização contra o PT. A polarização comandou o processo político brasileiro desde 1994.

A tendência então é a polarização se repetir esse ano?

Se nós não entendermos que o nosso campo é à direita do Lula, estaremos fora do segundo turno. Não é fácil ocupar esse espaço porque estamos no campo da direita com o Bolsonaro à nossa direita. Precisamos buscar esse 1/3 do eleitor do presidente Lula que não sairá com ele sendo agredido.

06 de abril de 2022

ENTREVISTA DE RODRIGO MAIA AO ESTADÃO (05/04) – PARTE I!

(O Estado de S.Paulo, 05) Depois de seis mandatos consecutivos no Congresso e de presidir a Câmara duas vezes, o deputado federal licenciado Rodrigo Maia (PSDB), 51, desistiu de concorrer novamente ao Legislativo e abriu caminho para sua irmã gêmea, Daniela Maia (PSDB), que deixou a presidência da RioTur.

Maia chegou a se licenciar do governo paulista na semana passada para cumprir o prazo a Justiça Eleitoral, mas na segunda feira, 4, reassumiu o cargo de secretário de Projetos e Ações Estratégicas.

Em entrevista ao Estadão no seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes, o ex-presidente da Câmara, que vai assumir a presidência da federação formada por PSDB e Cidadania no Rio de Janeiro, contou que segue como coordenador do plano de governo de João Doria e vai se dedicar a política fluminense nos finais de semana.

Após ser apontado como presidenciável no início dos debates sobre a sucessão de 2022 e visto como principal interlocutor entre os poderes nas crises provocadas por Jair Bolsonaro, Rodrigo Maia mergulhou de cabeça no projeto do governador Rodrigo Garcia e decidiu ficar fora das brigas internas de sua nova legenda no plano nacional.

O ex-presidente da Câmara prega que o PSDB se assuma como um partido de centro-direita e rejeita o rótulo de terceira via. “O eleitor de centro pode decidir a eleição, mas não é majoritário. O PSDB é o principal partido de contraponto ao PT, para não usar o termo centro-direita, que alguns tucanos não gostam. Reclamam comigo quando eu uso”, afirmou.

Maia disse, ainda, que se Lula e Bolsonaro forem para o segundo turno, votaria no petista. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

Por que o sr. desistiu de tentar o 7° mandato como deputado federal?

Eu fui tudo na Câmara dos Deputados e quero agora uma experiência fora do Legislativo. Tive a experiência com Doria e agora com o Rodrigo (Garcia), que é de fato o meu grande amigo, e vejo a possibilidade de ajudar no governo dele esse ano. E com a provável reeleição nos próximos quatro anos também. Ser deputado a carreira inteira não é ruim, mas quem chegou à presidência da Câmara já ocupou quase todas as posições na Casa. O político tem que estar sempre aprendendo. Talvez esse seja um dos problemas da política brasileira: as pessoas acabam se acomodando no papel de parlamentar. Quero cumprir um ciclo no executivo e me reciclar. Quero aprender mais sobre gestão e orçamento público para que no futuro eu possa ter outros desafios na política ou até no setor privado.

O sr. segue também como coordenador do plano de governo de João Doria. Acredita que vai haver de fato sinergia entre a campanha dele e a do Rodrigo Garcia à reeleição em São Paulo?

Na campanha do João eu coordeno o plano de governo. Quero me restringir a isso. Entrei no PSDB, mas existem muitos conflitos no PSDB dos quais eu não quero participar. O que me dá prazer na política hoje é aprender. Sou cristão novo no PSDB. Já em relação ao Rodrigo Garcia, é uma eleição diferente. Ele é meu amigo. Na eleição nacional vou me ater aos temas técnicos para construir um plano transformador da vida das pessoas.

O sr. vai estar na campanha do Rodrigo também?

Vou ajudar o Rodrigo no que ele precisar.

Como avalia o cenário no PSDB?

Como deputado e um filiado que acabou de entrar no PSDB, acho esse conflito muito estranho, mas não quero participar disso. Esse conflito vem de antes da minha entrada no partido. Teve prévias e foram questionar. Foi uma votação com 44 mil pessoas. Isso deve ser tratado por quem está no partido há mais tempo. Doria se viabilizou como candidato. Desde o governo Fernando Henrique Cardoso, o PSDB tem um problema de aceitar que está à direita do Lula. O PSDB precisa aceitar isso. É assim que a sociedade nos vê. A gente fez pesquisas por muitos anos. Se a sociedade entende que o Lula é esquerda, então o adversário tem que estar no outro polo. Precisamos resgatar o nosso eleitor e mostrar que nesse campo existe um caminho a ser ocupado.

Como o sr. avalia os encontros de tucanos como FHC, Aloysio Nunes e outros com Lula?

Como todos foram para a oposição ao Bolsonaro, que é considerado uma direita não democrática, isso confundiu a cabeça do eleitor. Se você olhar o cruzamento de pesquisas na avaliação positiva do governador João Doria, vai ver que o Lula tem 40% das intenções de voto. No cenário de São Paulo, o candidato hoje que tem os votos com perfil tucano é o Fernando Haddad, e não o Rodrigo Garcia ainda. Naturalmente o Haddad vai para a oposição e nós vamos ocupar aquele espaço da boa avaliação que o governo tem hoje. Nacionalmente, o nosso eleitor tem hoje mais restrição ao Bolsonaro do que vontade de apoiar uma candidatura fora da polarização. Um terço dos votos do Lula está no antibolsonarismo. O Churchill tem uma passagem muito interessante. Um jovem deputado chegou para ele no início da legislatura, olhou para o lado dos opositores e disse: ‘Primeiro-ministro, lá na frente eles serão nossos inimigos’. Churchill respondeu: ‘Não, lá na frente eles serão nossos adversários. Nossos inimigos estão aqui atrás’. É um pouco do que acontece hoje no PSDB e no nosso campo. Se conseguirmos ocupar um espaço, será tirando a vaga do Bolsonaro.

Qual deve ser o discurso para o PSDB entrar nesse jogo?

Não deve ser atacar o presidente Lula. Eu disse isso ao governador João Doria. Temos que dizer aos eleitores que se decepcionaram com Bolsonaro que temos uma alternativa que não seja a volta ao passado e o PT. A esquerda acha que se reduz desigualdade intervindo no Estado. Nós acreditamos que vamos redistribuir renda estimulando o setor privado.

05 de março de 2022

OS INIMIGOS DO LIBERALISMO MOSTRAM O QUE ISSO SIGNIFICA!

(O Estado de S. Paulo, 05) “Após duas décadas de dominância, o liberalismo político está perdendo espaço entre as mentes ocidentais”, escreve Matthew Rose em seu novo livro A World After Liberalism (Um mundo depois do liberalismo). Rose não se refere ao liberalismo político da maneira que empregamos o termo tipicamente. Ele se refere ao liberalismo enquanto conjunto de percepções compartilhadas no Ocidente: uma crença na dignidade humana, em direitos universais, no florescimento individual e no consentimento de quem é governado.

Esse liberalismo tem sido atacado por crises financeiras, pela crise climática, pelas questionáveis respostas à pandemia, por populistas de direita e pela China. Ele parece exaurido, moído, definido pelas contradições e promessas não cumpridas que se seguem à vitória, e não pela criatividade e a inspiração presentes na luta.

Pelo menos parecia ser assim. A recusa da Ucrânia em se ajoelhar diante de Vladimir Putin lembrou ao Ocidente que, para aqueles que não têm garantido o liberalismo, vale a pena lutar por ele. Mas uma renovação verdadeira exigirá mais do que horror em relação à invasão russa ou louvores à coragem ucraniana. Significará enfrentar as deficiências do liberalismo político e redescobrir o radicalismo em seu núcleo.

A World After Liberalism é um revigorante ponto de partida para iniciar essa redescoberta, em parte porque tanto da obra se passa na era de ascensão do liberalismo, mesmo enquanto se via sob violenta ameaça. No livro, Rose perfila Oswald Spengler, Julius Evola,

Francis Parker Yockey, Alain de Benoist e Samuel Francis, cinco pensadores de extrema direita do século 20 que estão experimentando uma popularidade renovada na atual direita – e cada vez mais no centro. Alguns deles influenciam nosso mundo diretamente.

ORIGENS. O argumento dos antiliberais é mais ou menos assim: nossas verdadeiras identidades têm suas raízes na terra em que nascemos e nos nossos parentes mais próximos. Nossas vidas ganham ordem e significado porque estão inseridas em uma estrutura maior e na luta pelo nosso povo.

O liberalismo político e, até certo grau, o cristianismo, envenenaram nosso solo cultural, deixando-nos à deriva em um mundo que privilegia o prazer e zomba da tradição. O multiculturalismo, nessa narrativa, torna-se um ideal conservador: deveríamos celebrar a força da distinção cultural, rejeitar as ocas compaixões universalistas dos progressistas e insistir na preservação daquilo que diferencia as pessoas. A genialidade dessa crítica, conforme escreve Rose, é que ela redefine as virtudes do liberalismo enquanto vícios.

Parte da sinistra relevância do livro decorre do papel que a Rússia desempenha na obra. Yockey, um dos mais notórios supremacistas brancos no zoológico de Rose, escreveu “à espera de uma Rússia ressurgente, que ajudará a corrigir um Ocidente decadente”. É justamente este o papel que Putin reivindica para si, insistindo numa identidade arraigada em solo e cultura, num imperialismo justificado por poder e passado; e num conceito de si e da Rússia enquanto bastiões solitários em luta pela cultura europeia tradicional.

O choque descabido ao ver Putin agir da mesma maneira que muitos líderes do passado agiram reflete o longo trabalho do liberalismo na reelaboração não somente o que acreditamos ser moral, mas também no que acreditamos ser normal.

Em sua melhor forma, e às vezes também na sua pior, o liberalismo político constrói o passado como uma terra verdadeiramente estrangeira, capaz de transformar aqueles que ainda o habitam em anacronismos em relação ao próprio tempo. Mas os progressistas enganam-se quando passam a acreditar que isso acontece apenas com os inimigos do liberalismo. Isso também acontece com pretensos amigos do liberalismo.

01 de abril de 2022

PENSANDO A UCRÂNIA!

(Renato L. R. Marques, embaixador do Brasil na Ucrânia entre 2003 e 2009 – Revista CEBRI, 28) A ofensiva armada da Rússia contra a Ucrânia é a face visível de uma operação muito mais complexa e articulada, que envolveu uma longa campanha prévia de desinformação e fakenews, destinada a desviar a opinião pública do que seria a maior operação bélica na Europa no século XXI, em total desconsideração aos princípios do direito internacional, à letra da Carta das Nações Unidas e a compromissos como os expressos no Memorando de Budapeste, de 1994. Naquela ocasião, a Rússia, os EUA e o Reino Unido ofereceram garantias de respeito à soberania e à integridade do território ucraniano, no contexto da devolução à Rússia, pelo regime de Kiev, do arsenal nuclear soviético existente no país.

Apesar disso, boa parte da comunidade internacional preferiu, no início, levar às últimas consequências o princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados, em que pese a óbvia ameaça contra a integridade territorial e a independência da Ucrânia, em franca contradição ao art. 2.4 da Carta da ONU. Preferiu debater os inúmeros e variados argumentos manipulados por Putin para “justificar” sua programada invasão da Ucrânia e revisão do mapa geopolítico da Europa. Campanha que, coerente com os propósitos de uma “guerra híbrida”, teve o mesmo efeito que os decoys lançados por aviões quando invadem o espaço aéreo inimigo, ao promover uma interferência magnética capaz de embaralhar a leitura do radar e impossibilitar a identificação do alvo. A atenção do planeta esteve, assim, praticamente hipnotizada pelo discurso do líder russo, embora parecesse impossível ignorar que a mobilização e estacionamento, em níveis sem precedentes, de tropas e material bélico na fronteira com a Ucrânia, representava, por si só, um instrumento efetivo de intimidação e coação do país vizinho.

O mundo perdeu um tempo precioso discutindo alegações descabidas, como as infantis acusações de ameaças ucranianas à Rússia (o que lembra a fábula do Lobo e do Cordeiro), a caracterização do governo Zelensky como “nazista” (quando sabidamente ucranianos e russos são oriundos da mesma matriz étnica eslava) e as notórias deturpações históricas do tortuoso e insinuante discurso de Putin, de 12 de julho de 2021, sobre a existência de um “estado trino”, integrado por Rússia, Ucrânia e Belarus. Uma “guerra de narrativas” aparentemente impossível, ante o grande arsenal de informações hoje ao alcance de todos e a ampla cobertura midiática dos acontecimentos. Algo que, para ser minimamente compreensível, teria que ser estudado contra o pano de fundo da formação de seu principal ator, indiscutivelmente o Presidente Putin, egresso da KGB no período soviético. Daí se poderia depreender seu apego à prática da “soberania limitada”, imposta a ferro e fogo aos países da Europa Oriental à época, cujos “desvios de conduta” (como o levante anticomunista na Hungria, em 1956, e a Primavera de Praga, em 1968) acionariam o “dever internacionalista de intervenção” da URSS (rótulo com que mascarou guerras de repressão e expansão). Agregue-se a isso a permanência, ainda que subliminar, da mentalidade imperial, perceptível no discurso de Catarina, a Grande, para quem “a única maneira de defender minhas fronteiras é as expandindo” (à que a voz corrente acrescentou “a Rússia termina lá onde termina o idioma russo”). Nesse sentido, a veemente contestação, por Putin, da existência da Ucrânia é também coerente com a doutrina do Kremlin de combate sistemático à ideia de “nação”, na medida em que operava contra os interesses do internacionalismo soviético e, em última instância, da hegemonia russa. Sintomas detectados pelo diplomata e estrategista americano George Kennan, em sua passagem pela embaixada em Moscou, em 1946, quando afirmou, em seu Longo Telegrama, que a URSS não poderia manter “uma coexistência pacífica permanente com o Ocidente”, como resultado de sua “visão neurótica dos assuntos mundiais” e do “instintivo sentimento russo de insegurança”.

Nesse contexto, a reivindicação de recuar a OTAN às suas posições anteriores a 1997 faz supor que o presidente russo busca reativar os entendimentos alcançados em Ialta, em fevereiro de 1945, por Stálin, Roosevelt e Churchill, para definir zonas de influência entre os vitoriosos, em circunstâncias radicalmente distintas das atuais. Hoje, depois de consolidado o novo quadro geopolítico, com a incorporação dos países da Europa Oriental e bálticos à OTAN, sem que disso tenha resultado nenhuma ameaça real à segurança da Rússia, a proposta soa extemporânea e revanchista. Mais ainda quando é estendida, inopinadamente, à Finlândia e à Suécia, o que revela, sem meios tons, que a intenção é aplicar o conceito de “soberania limitada” aos países que considera em sua “esfera de influência”, condenados, pela lógica de Putin, a se tornar “estados tampões” entre a Rússia e a Europa. A neutralidade da OTAN, tanto agora quanto nos episódios da independência de províncias da Geórgia, em 2008, e da Ucrânia, em 2014, reafirma o caráter defensivo da Aliança. Seu erro terá sido o de anunciar uma “política de portas abertas”, e de com isso induzir a população e os governos interessados a alimentar expectativas infundadas e a avaliar equivocadamente os riscos de eventuais ações militares. Ucrânia e Geórgia tinham, desde o início, chances muito frágeis de se tornarem membros da OTAN, por se manterem em estado de guerra não-declarada com o vizinho, por terem áreas de seus territórios contestadas e, por último, por um desafortunado fatalismo geopolítico. No caso da Ucrânia, acrescente-se, a presença de uma base militar estrangeira (a base naval russa de Sebastopol, na Criméia).  

Da mesma forma, no tocante à UE, a Ucrânia teria que cumprir com os requisitos básicos enunciados em Copenhague em 1993, que incluem a problemática estabilidade de suas instituições políticas e econômicas no day after e sua capacidade de incorporar e cumprir com o acervo jurídico comunitário. De quebra, a Ucrânia colocaria em cheque o funcionamento de um dos cimentos da unidade europeia, a onerosa Política Agrícola Comum (PAC), ao incorporar um dos países mais competitivos neste setor. O ingresso no atraente clube econômico está assim comprometido por interesses potencialmente afetados dos próprios europeus e pelos elevados suprimentos energéticos russos à Europa (que tenderão a recuperar importância política, quando a opinião pública se desmobilizar, por ação do tempo e na presunção de que a Alemanha e seus parceiros não encontrem fontes alternativas confiáveis no médio prazo). A preservação da economia ucraniana na esfera de influência russa a condenará à estagnação e praticamente anulará suas oportunidades de recuperação. Com o agravante que, ao contrário da época da antiga Guerra Fria, a Rússia não oferece à Ucrânia atrativos do ponto de vista político, nem ideológico nem econômico, por abrigar um regime crescentemente autoritário, com grande intervenção do Estado na estrutura produtiva e por sua condição de exportador de commodities energéticas e agrícolas (onde são concorrentes).

Isto posto, quem se debruçar sobre a história da região, identificará, sem maiores esforços, que a Rússia “nasceu” da diáspora de contingentes do maior estado da Europa medieval, entre os séculos IX a XIII, a Rus de Kiev. Esse principado, que teve seu apogeu com Vladimir, o grande (980-1015), implantou o cristianismo ortodoxo ainda vigente na Ucrânia e na Rússia. Após a morte de seu filho, Iaroslav, o sábio (1019-1054), a Rus de Kiev passou por um longo período de lutas internas e invasões mongóis. Como resultado, seus nobres se deslocaram para outras regiões, como Moscou, que se tornou o novo centro hegemônico. Ou seja, a Rus de Kiev, com seus belos mosteiros do século XI e XII, tem uma incontestada precedência histórica sobre os demais e teve sua existência reconhecida (e não “inventada”) por Lênin, como sugerido por Putin. Por outro lado, a necessidade de proteger “grupos étnicos russos” na Ucrânia é um jogo de palavras, tendo em vista que o Velho Continente, tradicional área de emigração, adota o jus sanguinis, pelo qual a cidadania é determinada pela nacionalidade dos ascendentes paternos ou maternos das novas gerações (ao contrário do Brasil e do Novo Mundo, que adotam o jus soli, que considera nacional os nascidos no país). A russificação imposta pelo Império Russo a seus domínios desde o século XVIII e a localização de russos no leste da Ucrânia – na esteira do vazio demográfico provocado pela “Grande Fome” de 1932-1933 (Holodomor), imposta por Stálin, para promover a coletivização forçada da agricultura – tornam inevitável a presença de “russos étnicos” na região (tanto quanto de “portugueses étnicos” no Brasil). Esse argumento não teria, entretanto, o peso que tem se, desde os anos 2003-2009, não tivesse a Rússia, segundo reiteradas denúncias do governo ucraniano à época, promovido frequentes “missões consulares” para oferecer passaporte e nacionalidade russa aos locais, em preparação para o presente cenário de guerra.

Qualquer que seja o desfecho da guerra, a invasão russa já provocou impacto e efeitos previsíveis no relacionamento internacional. No campo político, expôs novamente os limites da ação da ONU, em decorrência do poder de veto das cinco potências nucleares. A ONU foi, entretanto, importante como caixa de ressonância da consciência mundial, como comprova a condenação maciça da Rússia como “país agressor”. A crise promoveu um surpreendente consenso entre os países europeus, que alcançou áreas pouco suscetíveis de acordo no passado recente, como a decisão de restringir as importações de gás e petróleo da Rússia e a concordância da Alemanha em deixar inoperante o gasoduto Nord Stream 2, que proveria mais combustíveis ao seu território e vizinhos. Como resultado, é de se esperar uma aceleração da busca de fontes alternativas de energia, em consonância com os objetivos já acordados em matéria de política ambiental. Também a OTAN, que chegara a ser ameaçada de retirada de tropas e de corte de contribuições pelo governo americano, à época de Trump, atuou com uma única voz e recuperou seu prestígio como instrumento de defesa coletiva. Mas traz, em contrapartida, um renovado clima de belicismo e o rearmamento da Alemanha. A ação militar russa desviou, por sua vez, o foco dos EUA de suas divergências com a China, que assinou uma aliança com a Rússia de alcance ainda desconhecido. A China tem interesses econômicos que transcendem, no curto prazo, seus ganhos com a desestruturação da segurança na Europa, seu mercado preferencial. No âmbito econômico, a ruptura das grandes cadeias de fornecimento estimulam o offshoring por razões de segurança e, subsidiariamente, tenderá a reforçar correntes desenvolvimentistas favoráveis a velhas políticas, como a de substituição de importações e o relançamento dos mesmos “campeões nacionais” de sempre. Em que pese o impacto atual dessas tendências, deve-se supor que ao final prevalecerá a lógica econômica e a globalização retomará, mesmo que com dificuldades, seu curso anterior. Enquanto isso, o mundo sofrerá com aumento dos preços das commodities, inflação e menor crescimento econômico. Finalmente, o grande fluxo de refugiados deverá forçar a Europa a redimensionar seu programa de apoio e a buscar a difícil acomodação desses novos contingentes à sua estrutura produtiva.

Tudo somado, a ofensiva russa ainda tem que mostrar até onde pretende avançar. O estrago já realizado não deixa margem a dúvidas quanto aos objetivos expansionistas da iniciativa. Tal como se encontra o quadro atual, pode-se apenas descartar a hipótese de manter o país inteiro sob ocupação, dado seu alto custo militar, econômico e político, ante a exacerbação inevitável dos sentimentos nacionalistas e a recusa dos ucranianos em abandonar sua assumida vocação europeia. As fricções daí decorrentes levariam a uma grave instabilidade política, com riscos de atentados, ações de guerrilha e outras formas de autodefesa. Como as forças russas não são suficientes para assegurar a terceira etapa de uma invasão, o controle da população civil, a alternativa mais provável seria a instalação de um governo fantoche, de imprecisa duração. Não está claro onde a Rússia traçará os limites de eventuais novas anexações que, mesmo se restritas ao leste, provocariam uma radical desestruturação da base industrial do país (posto que ali se concentram suas minas de carvão, usinas siderúrgicas, fábricas de turbinas, altos-fornos, tratores, indústria espacial). Se abranger os portos de Mariupol (no Mar de Azov) e de Odessa (no Mar Negro), por onde escoam as exportações de aço, fertilizantes, trigo e produtos alimentícios, estaria estrangulando a economia e inviabilizando o país. O que será aceitável para as duas Partes, quando sentarem à mesa de negociação, tendo em vista que Putin não pode abrir mão do papel de vitorioso e Zelensky não pode fazer concessões que deem a entender que todo o esforço de resistência foi em vão? Qualquer que seja o desfecho, terá um alto custo em vidas inocentes, defensores de seu torrão natal e de capital humano para o futuro. Para concluir: a generosa ajuda que vem sendo oferecida ao país pelo Ocidente está destinada a que “Ucrânia”?