31 de maio de 2021

COM PAIXÃO, JAIME LERNER SE TORNOU UM DOS MAIORES URBANISTAS DO MUNDO!

(Mauro Calliari – Folha de S.Paulo, 27) Em 2017, a revista americana Planetizen, especializada planejamento urbano, colocou Jaime Lerner, morto nesta quinta (27), em segundo lugar numa lista com os urbanistas mais influentes da história, atrás apenas de Jane Jacobs e à frente de nomes como Le Corbusier, Jan Gehl ou Ebenezer Howard. A indicação destacava seu legado de planejamento urbano, transporte, programas sociais e ambientais.

Não parece ter sido exagero. Desde a primeira vez que foi prefeito (foram três), Lerner apontou para um caminho de transformação urbana que influenciou centenas de cidade pelo mundo e transformou Curitiba numa referência nacional e internacional.

O sistema de transporte baseado na priorização e vias exclusivas para os ônibus tem um quê de metrô, mas a custo muito mais baixo, e foi a base para o adensamento da cidade desde o final da década de 1960.

Naquela época, Curitiba tinha aproximadamente 450 mil habitantes, mais ou menos o tamanho de Mogi das Cruzes hoje. De lá para cá, a cidade que ganhou fama pela qualidade de vida viu explodir a população, mas ainda é possível perceber nela a estrutura que permitiu que o crescimento não fosse tão caótico como em outras cidades brasileiras: o planejamento do transporte público a partir do BRT, os parques maravilhosos, como o Barigui, bairros arborizados, as calçadas generosas, a preocupação com a vitalidade do centro e a vida pública.

Lerner amava Curitiba, mas amava as cidades. Seus livros, suas palestras, suas ações parecem conter sempre a preocupação de balancear as escalas: do local ao global, sem perder de vista os detalhes que fazem a diferença na vida cotidiana.

Assim, apesar de conhecer o mundo todo, gostava de contar em público como era a rua de sua infância. Narrou inúmeras vezes a história do motorista de ônibus que pensou numa solução caseira para organizar a parada na “estação-tubo”, um dos símbolos das reformas de Curitiba.

Elogiava a diversidade mas não se deslumbrava pelas palavras de ordem. Para ele, o uso misto era qualidade de vida. Sua solução de mobilidade urbana exportada para todo o mundo e tem gente que sai encantada com o que vê em Bogotá, sem saber que o modelo veio de Curitiba.

O ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, porém, sempre fez questão de dizer que foi de Lerner a inspiração para o Transmilênio, o premiado sistema de transportes. O modelo de expansão urbana acompanhando as linhas de transporte tem inspirado cidades pelo mundo, inclusive os princípios do Plano Diretor de São Paulo.

Acreditava na simplicidade, mas não abria mão da qualidade nem da velocidade da execução. A obra tem que ser boa e tem que ser rápida. Nessa linha, ele transformou um conceito –a acupuntura urbana, que gerou um livro de sucesso– em um poderoso modelo de transformação urbana. A rua 24 horas, por exemplo, é um projeto relativamente simples, mas de efeito transformador evidente para quem anda de madrugada na cidade.

Ele entendia o valor do carro (e até esteve envolvido com o planejamento de um carrinho que ocuparia menos espaço nas ruas), mas advogava que a cidade boa é aquela que dá mais valor ao transporte público. E sustentava que o uso indiscriminado do carro estava com os dias contados. A rua 15 de Novembro, a ‘”rua das Flores”, em Curitiba, uma das primeiras, senão a primeira rua de pedestres do Brasil ainda hoje é um exemplo de vitalidade urbana, com mobiliário desenvolvido pela sua equipe e usado até hoje.

Do ponto de vista de replicação de boas ideias, talvez a experiência mais interessante tenha sido a concepção do órgão de planejamento da cidade, o Ippuc ( Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba), da qual Lerner participou, que sobreviveu a inúmeras gestões municipais, com foco no ordenamento técnico.

Tive a oportunidade de visitar seus escritórios uma vez e era evidente como a independência era ressaltada pelos urbanistas como garantia de que os projetos não fossem alterados a cada mudança de gestão.

Poucas pessoas parecem escapar ilesas da experiência da gestão pública, e o arquiteto-gestor teve que arcar com processos ligados ao seu período como governador do Paraná (duas vezes). Depois, manteve o funcionamento de seu escritório, com projetos para várias cidades brasileiras e internacionais.

Seu maior legado, porém, foi o de transformar em ações práticas o encantamento com a vida urbana e a rua. Parece ser uma inspiração poderosa para qualquer candidato a prefeito, de qualquer cidade.

Em 2016, em um lançamento de documentário sobre sua obra, moderei uma conversa com Jaime Lerner e pude constatar seu carisma ao vivo. Depois do evento, pessoas da plateia subiram ao palco, tiraram selfies, pediram autógrafo, ansiosas por uma palavra e uma atenção, repetindo o que audiências fazem pelo mundo afora.

Deu para entender o porquê desse frisson todo. A “produção de cidades” não pode ser um ato mecânico. Sem paixão, as cidades são ruas, prédios e concreto. Com paixão, como a que Lerner professou e praticou, talvez abriguem vidas mais interessantes e plenas.

28 de maio de 2021

OS IMPACTOS DESIGUAIS DO DESEMPREGO!

(Editorial Econômico – O Estado de S. Paulo, 19) A crise do mercado de trabalho provocada pela pandemia de covid-19 é mais intensa e persistente do que a observada na recessão de 2015 e 2016, causada pelo desastre da política econômica do governo Dilma Rousseff. Mas não é apenas por sua intensidade que a deterioração do mercado de trabalho é mais nociva do que em outras épocas. Algumas de suas características e seu impacto mais acentuado sobre grupos mais vulneráveis a tornam mais perversa.

Em artigo publicado na revista Mercado de Trabalho do mês de abril, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que, embora já muito altas, as taxas de desocupação aferidas pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não retratam com toda a fidelidade o impacto das medidas de isolamento e restrições às atividades econômicas sobre a população em idade de trabalhar.

Não se trata, obviamente, de insuficiência ou imprecisão da pesquisa do IBGE, que traz o retrato mais completo da evolução do mercado de trabalho do País. Mas, como ressalvam os autores do estudo do Ipea, por se tratar de um indicador que sintetiza o comportamento da oferta e da demanda de mão de obra, a Pnad Contínua tende a atenuar certos aspectos das transformações do mercado de trabalho quando tanto a oferta como a demanda caminham na mesma direção.

Uma das características da atual crise apontada pelo Ipea é que, ao contrário do que ocorria nas anteriores, no caso de perder a ocupação, é mais intensa a passagem de um trabalhador não para a condição de desocupado, e sim para a de inativo. Assim, ele sai da população economicamente ativa (base sobre a qual se calcula a taxa de ocupação), que tende a diminuir. Dessa forma, cai a taxa de participação da força de trabalho (população economicamente ativa como porcentagem da população em idade de trabalhar).

Outra característica é a forma desigual com que a crise afeta os diferentes grupos. “Os grupos em desvantagem são os que apresentam os indicadores mais vulneráveis no momento da crise”, constata o estudo.

A taxa de desemprego cresce mais entre os membros desses grupos, separados por raça, idade e sexo. São negros, jovens e mulheres. Entre eles, as taxas de desemprego e de inatividade crescem mais do que as médias.

27 de maio de 2021

O FIM DA UNIPOLARIDADE!

(Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford – Folha de S.Paulo, 24) Nenhuma dimensão da diplomacia contra a pandemia parece tão estruturante quanto o avanço da China na América Latina. Após atingir um milhão de mortos e com apenas 3% da população vacinada, a região depende, na quase totalidade, da alavancagem econômica e da cooperação sanitária promovida por Pequim para ter chance de sair da crise.

O caso da Colômbia, fortaleza de Washington e membro da OCDE, é o mais ilustrativo desse novo momento geopolítico. A China enviou milhares de insumos e de ventiladores empacotados em campanhas com mensagens de Xi Jinping. Arrasado por uma explosão social, o governo de Bogotá não resistiu à operação de charme e desviou de décadas de alinhamento ocidental em nome da nova amizade.

A solidariedade chinesa é calibrada para atingir objetivos práticos. No caso do Paraguai e de Honduras, a China está aproveitando a pandemia para aprofundar o isolamento de Taiwan, independente desde 1949. Assunção chegou perto de aprovar o fim da aliança com Taipé no ano passado, e Tegucigalpa ameaça seguir o mesmo caminho.

Não deixa de ser curioso que a China avance com tanta facilidade numa região historicamente associada aos EUA. Afinal, uma das premissas das relações internacionais é que uma superpotência precisa, primeiro, controlar a sua própria sub-região. Essa visão tem orientado o projeto hegemônico dos EUA nas Américas desde a Doutrina Monroe.

Como explicar a crise do sistema unipolar? Entre outros fatores, a diplomacia de “alinhamento automático” promovida por Donald Trump e Jair Bolsonaro criou a ilusão de que Brasília atuaria como o primeiro defensor dos interesses de Washington na América Latina. Essa aposta desastrada nos talentos de Ernesto Araújo e de Eduardo Bolsonaro abriu espaço para a China. Na ausência do Brasil e de um poder moderador como o Mercosul, Pequim teve total liberdade para ampliar suas parcerias bilaterais. A administração Biden corre para reverter o desgaste, mas a América Latina parece ter entrado de forma irreversível numa nova era.

Resta saber como os governos latino-americanos vão tirar proveito da competição entre superpotências. O balanço atual é cheio de contrastes.

Enquanto o Chile conseguiu emergir como o “Israel do Sul Global” da vacinação graças à cooperação com a China, Bolsonaro continua infantilizando a política externa brasileira. As últimas semanas foram dedicadas a superar mais um surto verborrágico do presidente, que associou, de novo, a pandemia a uma “guerra química” dos chineses.

Outros já experimentam mudanças nos sistemas políticos. A virada autoritária do governo de extrema direita de El Salvador, criticada pelo governo Biden, não parece trazer constrangimento à China. Da mesma forma, a aproximação do país com Honduras ganhou outro significado desde que o irmão do presidente Juan Orlando Hernández foi condenado por tráfico nos EUA em 2019.

Num passado recente, Pequim deu respaldo decisivo a um projeto de poder antidemocrático na Venezuela. Para os progressistas, o desafio será fazer com que a presença da China potencialize a autonomia da América Latina sem agravar a crise democrática que corrói a região.

26 de maio de 2021

OS DESAFIOS DO NOVO PRESIDENTE EQUATORIANO!

(Sebastián Hurtado – Americas Quartely / O Estado de S. Paulo, 25) Ao assumir a presidência do Equador, Guillermo Lasso finalmente terá a chance de reformular a economia e as instituições orientadas para o mercado que prometeu nas suas três campanhas eleitorais consecutivas. Mas o caminho à frente pode ser mais difícil do que ele prevê.

O ex-banqueiro entrará no palácio presidencial com um mandato frágil, recursos fiscais limitados e muitos oponentes no Congresso. No primeiro turno das eleições deste ano, Lasso conquistou somente 20% dos votos e seu partido perdeu cadeiras no Parlamento. Na verdade, ele venceu o segundo turno, em abril, com menos votos do que na eleição que perdeu, em 2017, graças a um nível histórico de votos de protesto.

Mas os mercados têm muitas esperanças de que Lasso consiga reverter anos de uma estagnação econômica exacerbada pela pandemia. Os títulos públicos do Equador dispararam no mês passado, após a vitória do empresário, derrotando Andrés Arauz, candidato de esquerda do expresidente Rafael Correa. Mas, na presidência, Lasso será forçado a andar numa corda bamba, entre uma agenda de liberalizações, de um lado, e um Congresso de centro-esquerda e uma população frustrada, do outro.

No Congresso, composto por 127 parlamentares, os aliados de Correa formarão o maior bloco, com 49 cadeiras, e o partido de esquerda Pachakutik terá uma influência sem precedentes, com 45 assentos. O partido de centro-direita de Lasso contará com apenas 12 deputados e uma aliança prevista com o Partido Social Cristão, de direita, desmoronou em 14 de maio.

Assim, o novo governo terá de ser moderado em algumas das suas propostas em assuntos-chave, como reformas fiscal, trabalhista e da previdência social, e fazer concessões políticas para conseguir apoio do Legislativo. Por exemplo, apesar de Lasso ter descartado a criação de novos impostos, aliados potenciais no Congresso, provavelmente, exigirão algum tipo de imposto progressivo, mesmo que temporário, sobre a renda, bancados pelos ricos e pelas grandes empresas.

A pandemia já provocou debates similares em outros países latino-americanos e no mundo. Um programa de privatizações ou a favor do livre-comércio também terá forte oposição desses grupos.

O governo Lasso terá de enfrentar um público extremamente frustrado que exige ajuda do governo à medida que depara com uma receita reduzida, perda de emprego e a ameaça do vírus. Muitos equatorianos avaliarão Lasso quanto a se ele será capaz de restabelecer a economia, ajudar os mais vulneráveis e protegê-los contra a covid-19.

Por isso, intensificar a vacinação e fortalecer a rede de proteção social são medidas imperativas para o governo nos seus primeiros dias de mandato. Por exemplo, ajudar logo no início grupos sociais específicos por meio de programas sociais de grande impacto (como transferências diretas de dinheiro, por exemplo), será chave para criar a necessária força política e tentar algumas reformas de longo prazo importantes. Mas não será uma tarefa fácil no contexto da delicada situação das finanças públicas.

O precário contexto social também significa que Lasso terá de ser cauteloso ao propor reformas que pareçam radicais e provocarão uma forte reação contrária. A resistência virá especialmente do eleitorado que votou no candidato de Correa, que ainda desfruta de um grande apoio político, mas também de muitos eleitores indígenas que deverão ter pouca paciência com o novo governo.

Protestos recentes na Colômbia contra uma reforma fiscal realçam o quão delicado é o panorama social em grande parte da região. Embora no Equador a ameaça de protestos maciços tenha ficado latente desde os distúrbios em todo o país, em outubro de 2019, eles podem se materializar facilmente de novo.

Finalmente, o novo governo precisará confrontar muitas instituições de Estado, como a autoridade eleitoral ou a Controladoria-geral, cuja liderança foi substituída durante o controvertido processo de reforma institucional de Moreno, em 2018-2019, e cujo objetivo foi desmantelar a ordem política instituída por Correa e agora vem sendo contestada, não só pelos correístas, mas por muitas outras forças políticas. Instituições públicas frágeis e sem legitimidade podem criar instabilidade política e estimular uma demanda por alternativas populistas antiestablishment no próximo ciclo político, ou mesmo antes.

O complexo ambiente socioeconômico e político exigirá compromissos e cautela do governo de Lasso e limitará o ritmo e a magnitude do seu programa de governo. Entretanto, diante dos desafios populistas enfrentados por candidatos que endossam o liberalismo e a democracia em todo o mundo, o mero fato de um candidato liberal, pró-democracia e favorável às empresas ter sido eleito no Equador é um fato por si só encorajador.

A probabilidade de vitórias populistas em futuras eleições na América do Sul apenas mostrará quão rara é a oportunidade apresentada pelo triunfo de Lasso, oferecendo a chance de o Equador fazer uma transição de quase duas décadas de governos populistas para uma democracia liberal com base no Estado de direito.

25 de maio de 2021

ENTREVISTA: FILÓSOFO ANDRÉS BRUZZONE!

(Estado de S.Paulo, 23) O filósofo Andrés Bruzzone vive seu segundo confronto com a armadilha da polarização na política. Brasileiro nascido na Argentina, nutre desgosto pela divisão que se aprofundou nos anos de kirchnerismo no país vizinho, a partir da década de 2000.

Ele diz que vê, há pelo menos cinco anos, o mesmo ocorrer no Brasil. “Perdemos nuances, estamos entre branco e preto, doença ou saúde, não tem meio-termo”, disse ao Estadão o autor do recém-lançado Ciberpopulismo, um ensaio sobre o uso da tecnologia e das redes sociais pela extrema direita.

Estado de S.Paulo: O tom do seu livro parece pessimista. O sr. diz que expectativas frustradas explicam o surgimento da onda populista à direita, mas os movimentos democráticos ainda não têm uma resposta para isso. Ou têm?

Andrés Bruzzone: Acho que a democracia está encontrando mecanismos para se proteger, mas não sou otimista. Votamos com três órgãos do corpo. Com o coração – nos identificamos com uma pessoa, um partido.

Com o cérebro, fazemos escolhas racionais. Essas duas coisas funcionam, mas o populismo age no terceiro órgão: a tripa, as entranhas. O populismo apela de maneira mais intensa para paixões negativas. As redes sociais são muito mais eficazes para odiar do que para gostar. Há mais haters do que lovers. Quando se juntam esses dois fenômenos – das mídias digitais e do populismo – e os dois apontam para ódio, frustrações e canalização do medo, é muito difícil fugir da armadilha.

ESP: O ciberpopulismo é apenas o uso da tecnologia para promover a polarização, a mesma que já vimos no século 20, ou há mais do que isso?

AB: Ele nasce desse encontro entre o populismo tradicional e a tecnologia. Mas provoca uma mudança estrutural. Primeiro se aproveita de mudanças nos sistemas de meios de comunicação e de partidos e, ao mesmo tempo, acentua essas mudanças estruturais. Não é, provavelmente, um fenômeno provisório e, sim, algo que está instalado.

A democracia vai precisar lidar com esse encontro do populismo com as possibilidades que a tecnologia coloca à disposição dos especialistas em campanhas políticas.

ESP: Mais comunicação é um problema para a democracia?

AB: É um paradoxo. Por enquanto, o maior acesso a informações está enfraquecendo e ameaçando as democracias. Mas não deveria. Acredito que o que está faltando é o poder fiscalizador do Estado, a regulamentação dos processos de produção e distribuição de informações. Não acho que seja sustentável, hoje, que uma desregulação total seja positiva.

A esquerda está aprendendo a usar redes, vemos isso no cotidiano. E vem aí uma eleição que vai ser pautada pelos sistemas digitais de construção de discurso.

Cabe a cada um apostar a favor ou contra Tony Blair. (A eleição) terá, claramente, uma dinâmica de ciberpopulismo. Será uma polarização extrema, na qual quem eu odeio será tão importante quanto quem eu amo. O Brasil vai viver essas polarizações sobrepostas.

ESP: Em um cenário conflagrado como esse, o “centro democrático” ou a “terceira via” perdem?

AB: Estão fora do jogo – o que é muito triste. Perdemos nuances, estamos entre branco e preto, entre doença ou saúde, não tem meio-termo. É muito ruim para a democracia.

ESP: Existe alguma saída para a armadilha do ciberpopulismo?

AB: Diria que somente com um acordo muito claro das forças democráticas. Acho que um pacto democrático seria a única saída para essa armadilha. Havendo esse pacto entre as forças de esquerda e direita democráticas, dá para deixar de fora os antidemocráticos. É preciso fomentar o diálogo. Tem alguém querendo tacar fogo no circo, não podemos deixar. Se o circo queimar, estamos todos incinerados.

24 de maio de 2021

REESTATIZAR O ESTADO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 23) O caso da manipulação do Orçamento para favorecer políticos aliados do governo é um exemplo da confusão dos limites entre o público e o privado.

O Estado brasileiro há muito tempo foi capturado por grupos de interesse e por frentes políticas que só se formam para explorar as inúmeras possibilidades de se assenhorear de bens e recursos públicos.

O caso da manipulação do Orçamento para favorecer políticos aliados do governo, revelado pelo Estado, é o exemplo de que essa confusão dos limites entre o público e o privado não arrefeceu, a despeito das solenes garantias republicanas dadas pelo presidente Jair Bolsonaro na campanha que o elegeu.

No momento em que se cobra do governo maior celeridade ao prometido programa de privatizações, vendido como base do compromisso bolsonarista de otimizar o Estado, a maior tarefa do País talvez seja, antes, reestatizar o Estado, loteado pelos privilegiados de sempre.

Nenhum projeto de modernização do Estado pode ser levado a sério se o governo desconsidera o caráter público do Orçamento – que deve ser, em essência, o resultado do debate democrático a respeito das expectativas e demandas do conjunto da população.

Se, como parece ser o caso, alguns parlamentares, por sua proximidade do governo, têm poder de definir o destino de recursos orçamentários sem qualquer possibilidade de escrutínio público, então parte do Orçamento está sendo tratada como se coisa privada fosse.

Como se sabe, todos os parlamentares, independentemente de sua filiação partidária ou de sua inclinação política, têm direito de apresentar emendas ao Orçamento para destinar recursos como bem entenderem. Pode-se questionar se essa é a melhor maneira de gerenciar o Orçamento, dado o caráter claramente eleitoreiro dessas emendas, mas ao menos o valor é limitado a R$ 16,2 milhões por ano e, mais importante, é franqueado a todos os congressistas, sem diferenciá-los de nenhuma maneira.

No caso levantado pelo Estado, contudo, o governo abriu a parlamentares camaradas a possibilidade de determinar de que maneira parte dos recursos alocados ao Ministério do Desenvolvimento Regional seria utilizada, embora essa função fosse exclusiva do Executivo. A razão dessa exclusividade é simples: a execução deve ser estabelecida pelo Ministério, e não por um ou outro parlamentar, justamente para reduzir a possibilidade de que interesses privados prevaleçam na hora de estipular o gasto público.

Os governistas têm dito que não há qualquer irregularidade nisso, pois seria parte do jogo político legítimo. No raciocínio do governo, é natural que os parlamentares governistas tenham poder de definir o destino dessa fatia discricionária do Orçamento, no Ministério do Desenvolvimento Regional ou em qualquer outro, porque são, afinal, a base de apoio.

Obviamente nada disso é republicano, tampouco democrático. Nenhuma república democrática é digna do nome quando a administração do dinheiro público está à mercê de influências pessoais de forma tão escancarada.

À semelhança das antigas monarquias absolutistas, em que os cortesãos podiam tudo e os demais súditos deviam se limitar a trabalhar e pagar impostos, esse modelo defendido pelo governismo bolsonarista privilegia os amigos do rei – como se o dinheiro recolhido dos contribuintes, uma vez despejados nos cofres do Tesouro, deixasse automaticamente de ser público.

Essa ratio do governismo atual é sintomática do profundo abismo que há entre o discurso de modernização do Estado e a prática clientelista e personalista do presidente Bolsonaro e do Centrão, que ora coloniza o governo.

São muitas as expressões dessa contradição, desde as gestões do presidente em órgãos de Estado para proteger os interesses de sua família, até o encaminhamento de medidas que privilegiam os grupos que orbitam o presidente – cujo mais recente exemplo foi a portaria do Ministério da Economia que permitiu ao presidente e seus ministros militares acumularem aposentadoria e salário mesmo que o resultado supere o teto constitucional para o funcionalismo.

Sob o governo Bolsonaro, o processo de privatização do Estado foi acelerado, mas não para aperfeiçoá-lo, e sim para rateá-lo entre os amigos e parentes.

21 de maio de 2021

INOVAÇÃO LIDERADA POR PI: PARA ONDE VAI O BRASIL!

(Robert Grant, diretor sênior de assuntos internacionais do Centro de Política de Inovação Global da Câmara de Comércio dos EUA – O Estado de S. Paulo, 19) No começo de abril, o número de mortes no Brasil causadas pela covid-19 ultrapassou a marca de 4 mil por dia, agravado pela segunda onda do vírus e novas variantes. Cerca de 20 dias depois, embora ainda em lenta progressão, esses números começaram a declinar, chegando à metade.

Embora estejamos longe de declarar vitória, pesquisadores, fabricantes e governos avançam no desenvolvimento e distribuição das vacinas, com resultados notórios no combate à pandemia no mundo. Tudo isso foi apoiado por uma estrutura cuidadosamente calibrada de normas e leis: o ecossistema internacional de Propriedade Intelectual (PI). Em apenas um ano, essas regras foram testadas como nunca, comprovando seu valor na abordagem dos problemas mais desafiadores da sociedade global.

Como uma das maiores economias da América do Sul, o Brasil reconhece que uma estrutura de PI unificada pode não apenas ajudar a enfrentar situações tão graves como uma pandemia, mas proporcionar um ambiente saudável para o crescimento socioeconômico.

Por muitos anos, o governo brasileiro endossou essa relevância, promovendo mudanças positivas que se refletiram nos principais estudos globais sobre inovação e PI, como o Índice Internacional da Câmara de Comércio dos EUA. Nas nove edições deste ranking anual, a pontuação do País passou de 38,28% em 2012 para 42,32% em 2021, ocupando o terceiro lugar do Brics em termos de ambiente favorável para a inovação, na frente da Índia.

É preciso destacar que algumas medidas já surtiram efeito, como o esforço para acabar com o grande backlog de patentes, que fazia com que empresas nacionais e internacionais tivessem de aguardar mais de 10 anos para análise e aprovação das solicitações. Houve ainda a modernização de alguns sistemas e redução da burocracia. Mas uma questão recente causa preocupação à comunidade internacional de PI.

Neste período de transição para processos mais eficazes, o artigo 40 da Lei Nacional de Propriedade Intelectual estabelecia o prazo mínimo de validade de 10 anos para as patentes de invenção e 7 anos para modelo de utilidade, a partir da data de concessão. Por causa do atraso que ainda se combate, era uma ferramenta crucial para os detentores de patentes que investem no Brasil e, em última instância, oferecia proteção para todos os setores da economia. Contudo, uma decisão do Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional o artigo 40, modulou o alcance da medida e derrubou os prazos extras para medicamentos e equipamentos de saúde, sob a ótica da pandemia e sua urgência. Independentemente da intenção, a aplicação desta decisão é preocupante por diversas razões.

É consenso que indústrias com uso intensivo de PI dependem de segurança jurídica para fazer negócios em um determinado mercado, por mais relevante que seja. Embora entendamos que a decisão tomada não se aplica retroativamente para a maior parte dos casos, estabelece um precedente de risco perigoso.

Uma estrutura de PI unificada proporciona um ambiente saudável para o crescimento do País – muito parecido, aliás, com a discussão na OMC de renúncia total aos direitos de propriedade intelectual para vacinas e todos os produtos relacionados ao combate à covid-19. Nesta questão, o Brasil se posicionou em sintonia com a estratégia que ora desenvolve para fortalecer seu ambiente de inovação e, por consequência, atrair negócios e desenvolvimento econômico.

É preciso que se estabeleça uma atuação uniforme e coerente também no que tange à proteção assegurada pela Lei Nacional de Propriedade Intelectual. Caso contrário, investimentos e esforços consideráveis em termos de legislação, capacitação, tecnologia e adequação para acordos internacionais podem ser desperdiçados e, em última e prejudicial instância, impedir o progresso econômico e sustentável do Brasil.

20 de maio de 2021

ZEINA LATIF – SILÊNCIO ENSURDECEDOR SOBRE A EDUCAÇÃO!

(O Globo, 12) Sou fruto de um Brasil que poderia ter dado certo. Estrangeiros enxergavam o País como uma terra de oportunidades. A julgar pelas amplas evidências empíricas sobre as razões para as diferentes performances dos países, nosso maior erro histórico foi a atenção tardia e insuficiente à educação básica. Universalizamos o ensino, mas insistimos no erro da baixa qualidade de gestão.

Meus avós eram quase analfabetos. Do lado materno, chegaram ao Brasil como mão de obra braçal no interior longínquo de São Paulo. Os imigrantes valorizavam o estudo mais do que os brasileiros de renda equivalente, além de muitos deles terem maior capital humano.

Assim contribuíram para o investimento estatal na educação, no Chile e na Argentina, e também em algumas regiões do Brasil, como São Paulo e Rio Grande do Sul.

Analisando as imigrações patrocinadas por São Paulo entre o final do século 18 e o início do 19, Rudi Rocha, Claudio Ferraz e Rodrigo Soares encontraram relação entre cidades que receberam estrangeiros e o maior avanço da escolaridade, com benefícios de longo prazo para suas economias.

Na Primeira República, São Paulo tornou-se um dos líderes da educação primária do país, aponta Renato Colistete. Houve reforma no ensino e criação de grupos escolares, favorecidos pela receita orçamentária gerada com a valorização do café – mas não na mesma proporção -, em meio a pressões sociais e ao reconhecimento entre políticos e intelectuais do atraso educacional e suas consequências.

Os indicadores de escolaridade evoluíram bastante, ainda que não o suficiente para equipará-los aos da Argentina, por exemplo, e a evasão era elevada, pois muitas crianças trabalhavam na lavoura de café.

Minha mãe beneficiou-se dos avanços no ensino e escapou da armadilha que reservava às classes populares o trabalho manual – visto ainda hoje com preconceito. Bem formada, pôde ingressar na Universidade de São Paulo (USP). Prestou concorrido concurso para o magistério na rede pública e tornou-se professora do ensino médio em 1961.

Professores eram relativamente bem remunerados, mas a cobrança era grande. Exigia-se dedicação e desempenho em sala. Atrasos, aulas e provas mal elaboradas ou turmas indisciplinadas, por exemplo, eram repreendidos e dificultavam promoções na carreira. Havia concorrência entre diretores de escolas por performance.

Ilustra o grau de engajamento dos docentes o grupo de professoras, do qual Dona Arminda participava, que voluntariamente se reuniu para estudar genética – matéria recém introduzida no ensino universitário com a descoberta e pesquisas do DNA -, e inseriu o tema no currículo do ensino médio nas escolas de Campinas.

O governo militar contribuiu para a extensão da escolaridade obrigatória de 4 para 8 anos e isso implicava a ampliação da rede, mas junto veio a piora paulatina na qualidade de ensino. Minha mãe lamentava as menores exigências a cada concurso público e sofreu o achatamento salarial ao longo dos anos, agravado pela crise econômica e facilitado pela inflação galopante.

Martelava a frase do governador Paulo Maluf, em 1981, “professora não é mal paga, é mal casada”. As prioridades dos militares eram outras, não só o ensino universitário, que se revoltava, mas certamente o impulso artificial à economia. Duplo erro e grande oportunidade perdida.

Na transição democrática, ela se preocupava com a politização nas escolas que comprometia o ensino. As sequelas do regime militar se estendiam à rede pública. Os ressentimentos por conta de perseguições políticas e a desvalorização da carreira alimentaram a sindicalização, enquanto desapareciam as cobranças por desempenho e a meritocracia nas promoções e nas indicações de postos mais elevados na hierarquia.

Salários têm sido recuperados nos últimos anos, mas seguem os problemas de qualidade de ensino, exposto na fraca performance dos alunos.

O desastre da educação está escancarado nos muitos Jacarezinhos espalhados pelo país e a pandemia agrava o quadro seriamente. É necessário corrigir o atraso no ensino e as sequelas da interrupção das aulas, e viabilizar o uso de novas tecnologias.

A adesão das empresas a princípios ESG – o S é de social – precisa se traduzir em oportunidades para a educação básica e para o treinamento e inserção produtiva dos jovens, com envolvimento da comunidade. Enquanto isso, nem uma palavra do governo federal.

19 de maio de 2021

AMÉRICA LATINA SOFREU MAIS COM A COVID-19!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 16) Antes da pandemia, Jaime Alirio Pinilla, um homem de 45 anos que vive em Bogotá, capital da Colômbia, trabalhava em construção. “Mas, por causa dessa porcaria, perdi o emprego e agora ganho a vida na rua”, afirma ele, de trás do carrinho de metal que lhe serve como loja de suco de laranja, doces, cigarros e café. A Colômbia teve um dos lockdowns mais duradouros do mundo; e agora testemunha conflitos diários entre manifestantes e forças de segurança, enquanto protestos contra a situação econômica entram na terceira semana. “Ficamos trancados mais de um ano – e não conseguimos mais suportar essa situação”, afirmou Pinilla. “A economia está arruinada, não vivemos mais, estamos apenas sobrevivendo.”

A pandemia de covid-19 provocou a mais profunda recessão global desde a 2.ª Guerra. Mas uma região piorou mais economicamente do que qualquer outra – muito mais. O PIB mundial contraiu-se em 3% no ano passado, mas a taxa na América Latina e Caribe caiu 7%, o pior resultado registrado em qualquer região monitorada pelo FMI (mas o PIB da Índia, que equivale quase a um continente, caiu mais). Em 2020, os habitantes da América Latina trabalharam 16% menos horas, quase o dobro na diminuição global. Vários países da região tiveram quedas extraordinárias: o PIB do Peru, por exemplo, caiu 11% no ano passado. E ainda que algumas economias estejam agora retomando o ritmo, com o levantamento das restrições, na América Latina o clima é de pessimismo.

A explicação mais simples para o terrível desempenho da região está relacionada a saúde pública. Um modelo de estudo de mortes da Economist estima que América Latina e Caribe têm o mais alto índice de excesso de mortes durante a pandemia em relação à população dentre todas as regiões do mundo. Enquanto as vacinações em outras partes do planeta reduzem a disseminação da doença e os danos que isso causa, em muitas partes da América Latina o coronavírus se espalha livremente. No Brasil, onde o presidente populista, Jair Bolsonaro, se recusa a usar máscara e se vacinar, o número de mortes diárias chegou a ultrapassar 4 mil (agora está em cerca de 2 mil). Mesmo países que anteriormente foram bem-sucedidos em controlar a pandemia, como o Uruguai, estão vendo os números de casos explodir.

A disseminação da doença fez com que alguns governos da região implementassem os mais severos lockdowns do mundo. Uma metodologia de quantificação do Goldman Sachs, um banco, confere uma nota de zero a 100 para avaliar a severidade das regras de lockdown de um país, o grau de adesão às restrições e qualquer tipo de distanciamento social voluntário. Habitantes de nenhuma outra região ficaram tanto em casa durante um ano de pandemia quanto os da América Latina, onde o isolamento social foi 70% maior do que na América do Norte.

Argentina e Chile foram o segundo e o quarto país, respectivamente, com mais restrições no mundo. O Peru ocupa o topo da lista. Por lá, o primeiro lockdown lembrou os dias mais sombrios da guerra contra os insurgentes maoístas, no começo dos anos 1990. Ninguém tinha permissão para sair, a não ser para comprar alimentos. Policiais e soldados faziam cumprir estritamente o toque de recolher. Lockdowns tão severos tornam a atividade econômica impossível, mesmo que muitas das pessoas mais pobres da região não tenham outra escolha a não ser desafiar as ordens de ficar em casa e sair às ruas para tentar ganhar a vida.

De maneira incomum, grande parte dos habitantes da América Latina – uma região de enormes desigualdades – trabalha nas casas dos ricos, o que implica inerentemente numa mistura de lares. Para um artigo recente, Louisa Acciari, da University College London, pesquisou com colegas o trabalho doméstico em vários países e descobriu histórias de uso inadequado de equipamentos de proteção individual e violações de direitos. A primeira morte oficial de covid-19 no Rio de Janeiro, ocorrida em março de 2020, foi de uma empregada doméstica que havia sido infectada por sua patroa, de acordo com autoridades de saúde do Estado, que tinha viajado para a Itália e, segundo o relato, não se incomodou em chamar a empregada para trabalhar em sua casa mesmo sabendo que estava doente.

O fator final por trás do péssimo desempenho econômico da região é política fiscal. Uma maneira de medir se a resposta fiscal de um país à pandemia foi suficiente envolve a comparação de dois elementos: mudança no déficit orçamentário do governo do país e a sua perda na produção de riqueza. Tomando emprestada uma metodologia desenvolvida na pesquisa de um estudo do Goldman Sachs, The Economist calculou a adequação dos estímulos em reação à pandemia em 193 países. Muitos governos ao redor do mundo incrementaram seu gasto em um dólar para cada dólar de produtividade perdido. Uns poucos países, como Estados Unidos e Austrália, foram substancialmente mais generosos. A América Latina, apesar de implementar estímulos fiscais mais generosos do que em recessões passadas, foi mesquinha mesmo em relação a outros mercados emergentes, com países medianos injetando apenas US$ 0,28 em gastos extras deficitários para cada dólar perdido na produtividade.

Estímulos. O planejamento dos estímulos também foi insuficiente. Países com os planos mais bem-sucedidos repassaram enormes quantidades de dinheiro diretamente à população. Isso ajudou a quebrar o ciclo de perda de emprego e cortes em gastos domésticos, o que sustentou as economias. A América Latina, em contraste, concentrou seus principais recursos em outras áreas, incluindo o fortalecimento de mal financiados sistemas de saúde.

Mas nem todos os países latino-americanos tomaram esse caminho. No Brasil, os gastos do governo Bolsonaro compensaram quase completamente as perdas no PIB. Isso ajudou a reduzir a incidência de pobreza extrema mesmo com a pandemia dominando o país, apesar do nível de ajuda emergencial para lares pobres ter diminuído recentemente, apesar da fome e outras formas de privação estarem novamente em ascensão.

Ainda assim, alguns governos agiram de maneira curiosamente austera. Em nenhum lugar isso é tão verdadeiro como no México, liderado pelo autoproclamado esquerdista Andrés Manuel López Obrador. O insignificante programa de estímulo mexicano (de US$ 0,17 para cada dólar perdido) se origina nas sensibilidades monásticas e autárquicas de López Obrador, que o tornam instintivamente esquivo em relação a endividamentos, especialmente quando financiados por estrangeiros.

Na Colômbia, os protestos foram desencadeados por uma tentativa do governo de Iván Duque de implementar uma reforma tributária, em 28 de abril, que cresceram e passaram a abranger muitas outras insatisfações. Grande parte do descontentamento tem origem na percepção de uma resposta inadequada e incorreta à crise da covid-19, que levou 2,8 milhões de pessoas à extrema pobreza.

A carnificina econômica não durará para sempre. Mas o crescimento anual no PIB de 3 a 4% que América Latina e Caribe podem esperar, uma vez que as restrições sejam levantadas com segurança é bem mais baixo do que as taxas esperadas nos EUA e em outros países. Uma recente elevação nos preços da commodities vai ajudar menos do que muitos esperam: o índice geral de preços de commodities no mundo permanece abaixo de onde esteve durante grande parte do período seguinte à crise financeira global. E por causa dos estímulos pífios, os lares não acumularam poupanças significativas como nos países mais ricos, então, não haverá nenhuma onda de gastos pós-pandemia. Como demonstram os protestos na Colômbia, a região mais atingida pela pandemia está diante de mais problemas.

18 de maio de 2021

VITÓRIA DE INDEPENDENTES NA CONSTITUINTE CHILENA CELEBRA REFORMISMO E VIRA RECADO A PARTIDOS!

(Sylvia Colombo – Folha de S.Paulo, 18) Além de representar uma derrota para os partidos tradicionais e para a gestão do presidente Sebastián Piñera, a eleição da nova Assembleia Constituinte chilena, realizada no sábado (15) e no domingo (16), marcou a ascensão de independentes e de nomes de esquerda e de centro-esquerda, o que deve dar o tom do órgão que reformulará a Carta do país.

O duro revés imposto às legendas de direita não se limitou à composição da assembleia e se estendeu também às disputas de governadores, prefeitos e vereadores —até mesmo em locais importantes que elas dominavam havia décadas. A aliança governista, que concorreu em uma lista única, conseguiu apenas 37 das 155 cadeiras (24%) do órgão constituinte. Já a esquerda, dividida em duas relações, conquistou ao todo 53 assentos (34%), enquanto os independentes elegeram 65 membros (42%).

O desempenho dos conservadores terá efeito direto na formulação da Constituição, uma vez que, para aprovar a inclusão de uma pauta no documento, é necessário o apoio de dois terços do plenário. Assim, as 37 cadeiras obtidas no órgão não oferecem força suficiente para, sem alianças, barrar propostas que não desejam, como a diluição do sistema de pensões privadas, a aprovação do aborto, a gratuidade da educação superior e a maior autonomia aos povos originários.

“Ganham as pautas transversais, que já pertencem aos que querem reformas. E aí se unem independentes de centro e de esquerda, indígenas e até alguns setores da direita. Por isso, a divisão entre esquerda e direita não explica tão bem o processo. O vencedor desta eleição é o desejo de reforma”, diz à Folha Macarena Venegas, que concorreu de modo independente. Ela, no entanto, não foi eleita.

Para o cientista social Octavio Avendaño, da Universidade do Chile, o mecanismo de aprovação via apoio de dois terços da assembleia oferece uma dinâmica de grandes acordos e negociações. “Quem se propõe a tal processo é quem quer reformar, e não quem quer barrar ideias. Ainda que consensos sejam difíceis, foi uma vitória dos reformistas.” Andrés Velazco, da London School of Economics, corrobora a posição de Avendaño, porque “quem ganhou espaço são os que têm grandes convicções em mudanças”.

A redação da nova Carta começa em junho e levará até um ano. Depois, haverá novo plebiscito, no qual a população decidirá se aprova ou não a reformulação. Nesse meio tempo, o país passará por uma sucessão presidencial que escolherá o substituto de Sebastián Piñera, hoje com 9% de aprovação popular.

Em parte, a insatisfação com o atual líder chileno determinou o fraco desempenho dos partidos alinhados ao governo, já que a administração de Piñera foi marcada pela repressão aos protestos que, entre outras demandas, pediam a elaboração de uma nova Constituição. O presidente também é criticado por políticas de ajuste fiscal, oposição aos planos de saques de aposentadoria e pela má gestão da pandemia de Covid-19 quando o vírus chegou ao país. Hoje, por outro lado, o Chile é um dos líderes de vacinação no mundo.

Assim, a coalizão Chile Vamos perdeu espaço em praças importantes, como Santiago, Maipú, Valparaíso e Viña del Mar. Já o pré-candidato à Presidência pelo Partido Comunista e atual prefeito de Recoleta, Daniel Jadue, foi reeleito com mais de 60% dos votos, oferecendo uma boa largada para a corrida de novembro. A rejeição a Piñera também apareceu nas declarações de outra pré-candidata de esquerda, Pamela Jiles, do Partido Humanista, que, ao acompanhar o marido na votação neste domingo, xingou o presidente.

Ainda que a proposta de elaborar uma nova Carta tenha surgido nas intensas manifestações que tomaram diversas cidades do país a partir de outubro de 2019, o furor das ruas não se refletiu no comparecimento ao pleito deste final de semana. A baixa participação, de 43,4%, índice inferior ao do plebiscito que autorizou a escolha da composição da Constituinte (50,95%), é vista por especialistas como a diferença entre a raiva de quem pede mudanças e o engajamento num processo político formal.

A cientista social Claudia Heiss Bendersky, por exemplo, argumenta que hoje, no Chile, “não há uma associação direta entre a rua e a urna”. “Saiu às ruas quem não queria mais o atual estado das coisas. Não necessariamente significa que queriam ir votar”, diz ela. “Por outro lado, apesar de ser um comparecimento baixo, [a votação] exigiu muita informação. Os votos refletem informação, gente que leu e refletiu sobre os candidatos, porque não eram escolhas fáceis de fazer entre tantas ofertas.”

Entre as novidades desta eleição, a paridade de gênero, mecanismo instituído para garantir a participação de homens e mulheres na mesma proporção, acabou gerando um efeito curioso. Tradicionalmente menos votadas em outros pleitos, as mulheres receberam, em alguns distritos, mais apoios, e o órgão eleitoral teve de fazer 17 correções de resultados para garantir igualdade —em 13 delas, foi preciso tirar uma candidata eleita para colocar um homem, de acordo com dados do Servel, o serviço eleitoral chileno.

O mesmo ocorreu em relação à cota de 17 assentos dos povos originários, o que favoreceu quatro homens. À Folha o líder mapuche Adán Cheuquepil chamou a presença de indígenas na assembleia de histórica e celebrou o desgaste dos partidos de direita que “sempre negaram os nossos direitos”.

“Não acreditamos que uma cota de indígenas possa mudar nada sozinha, mas entramos com a determinação de usar todos os espaços possíveis, pensando numa mudança a longo prazo do nosso país. Não vamos ter dois terços sozinhos para aprovar nada. Mas estaremos presentes e seremos ouvidos.”

No fim da noite de domingo, Piñera fez um pronunciamento. No Palácio de La Moneda, o presidente disse que o país havia enviado “uma mensagem clara e forte para o governo e para todas as forças políticas tradicionais”. Naquele momento, já frente aos números que indicavam de modo claro a rejeição às suas alianças, o líder chileno admitiu que a administração “não está sintonizada adequadamente com as demandas e desejos da população”. “Sua voz será escutada, porque para isso serve a democracia.”

17 de maio de 2021

O DESMONTE DO CONHECIMENTO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 15) Se em seus primeiros meses o governo federal começou relegando para segundo plano as áreas de ensino, ciência e pesquisa, contingenciando verbas e bloqueando recursos, com o advento da pandemia e da crise econômica por ela deflagrada a situação se agravou ainda mais, tornando-se dramática.

No Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), a redução do orçamento obrigou o órgão a financiar em 2021 somente 13% das 3.080 bolsas de pós-graduação e pós-doutorado que já haviam sido aprovadas. A informação foi divulgada recentemente pelo próprio órgão, deixando a comunidade científica perplexa. Já a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) perderá neste ano quase um terço do que recebeu em 2019. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) também sofreu cortes drásticos, segundo levantamento da Academia Brasileira de Ciências, da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif). Essas entidades também lembraram que o orçamento previsto para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), em 2021, equivale a menos de um terço do que foi repassado uma década atrás.

No ensino superior, as universidades federais enfrentam graves dificuldades para pagar despesas de custeio, como água, energia e segurança, não dispondo também de recursos para manter pesquisas em andamento. Por causa dos cortes, o orçamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) voltou ao patamar de 2008, quando tinha 20 mil alunos. Hoje ela conta com mais de 36 mil alunos, dos quais 8,5 mil são apoiados por programas de ações afirmativas. Na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o reitor Marcus David informou que as atividades de ciência e tecnologia estão “acabando” na instituição.

Já na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Reitoria anunciou que o orçamento aprovado para 2021 equivale ao do exercício de 2010 e alegou que a redução de recursos orçamentários, conjugada com contingenciamentos, está levando à “destruição” da instituição. A reitora Denise de Carvalho e o vice-reitor Carlos Rocha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicaram artigo no jornal O Globo alertando para o risco de a instituição “fechar as portas” a partir de julho. “A universidade está sendo inviabilizada”, concluíram.

Outra instituição importante, a Universidade de Brasília (UNB) distribuiu nota lembrando que “a redução crescente dos recursos, associada a bloqueios e contingenciamentos, prejudica a execução do planejamento da instituição. A política de contínua redução orçamentária trouxe dificuldades e desafios nunca antes vivenciados”. Por seu lado, o MEC lamenta a redução dos recursos da rede federal de ensino superior e informa que não tem medido esforços no Ministério da Economia para tentar “uma recomposição e/ou mitigação das reduções orçamentárias das instituições federais de ensino superior” e obtido um repasse que, apesar de pequeno, garante a elas algum fôlego financeiro para os próximos meses.

Independentemente desses esforços, a situação em que as áreas de ensino, ciência e pesquisa se encontram não se deve apenas à crise econômica. Ela trouxe inúmeros problemas, não se pode negar. Mas a verdade é que as dificuldades enfrentadas por essas três áreas decorrem do fato de elas jamais terem sido consideradas prioritárias desde o início de um governo que não sabe o que é planejamento e não tem noção de futuro.

Determinado por razões políticas e ideológicas no início do governo, o desinvestimento no CNPQ, na Capes e nas universidades federais vem, paradoxalmente, ocorrendo no momento em que o Brasil mais necessita de pesquisadores e universidades trabalhando a pleno vapor. Por isso, atribuir a asfixia financeira do ensino, da ciência e da pesquisa às dificuldades econômicas causadas pela pandemia, como as autoridades educacionais vêm fazendo, é mais do que escamotear a verdade. É um crime praticado contra os cidadãos e as futuras gerações.

14 de maio de 2021

O MEDO DE INFLAÇÃO NOS ESTADOS UNIDOS!

(Celso Ming – O Estado de S. Paulo, 13) Há dias grande número de analistas não vinha escondendo sua preocupação com a possibilidade de uma disparada da inflação nos Estados Unidos. Pois nesta quarta-feira saíram as informações sobre o Índice de Preços ao Consumidor (CPI, na sigla em inglês) e a surpresa foi geral: em abril, a inflação dos Estados Unidos subiu 0,8%, de 4,2% em 12 meses, mais do que o dobro dos 2,0% ao ano perseguidos pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano).

Foi o salto de vara mais alto em um único mês para um período de 12 meses nos últimos 12 anos. As projeções eram de inflação em abril em torno de 0,3%. É fato novo que terá impacto não só nos Estados Unidos, mas no mundo.

A reação do mercado financeiro foi imediata: os juros praticados na revenda dos títulos saltaram; as bolsas de Nova York, que já vinham operando em baixa há alguns dias pelo medo da inflação, caíram ainda mais; e o dólar se valorizou diante das outras moedas.

As autoridades do Fed já tentavam desarmar os espíritos com a explicação de que a possível esticada seria devida aos gargalos nas cadeias globais de produção em consequência da pandemia – que paralisou a atividade econômica em muitos países. Com base nesse diagnóstico, a inflação seria temporária. Por não ser produzida por demanda excessiva, o Fed não teria de combatê-la com redução do volume de moeda (alta dos juros).

O mundo dos negócios pareceu insatisfeito com essa explicação e passou a temer pelo fim do ciclo de baixa dos juros. Mesmo que esse aperto monetário aconteça só dentro de alguns meses, todo o mercado, que se baseia em contratos de longo prazo, sentiu a necessidade de fazer ajustes imediatos.

Levaram em conta outras análises: as de que a inflação tem origem menos no aumento dos custos dos suprimentos de materiais, peças e insumos e mais na demanda produzida pela abundância de recursos. Por isso, embora os dirigentes do Fed venham tentando afastar a hipótese do aperto monetário, se persistir essa inflação, acabariam por optar por juros crescentes até o nível que controlasse a alta.

Assim, o primeiro impacto seria na atividade econômica. O crescimento do PIB, que se previa promissor, acabaria por ser mais baixo, embora não seja possível agora uma quantificação dessa quebra. O segundo seria nas aplicações do mercado financeiro. Juros mais altos voltariam a puxar a procura por títulos de renda fixa, especialmente os do Tesouro dos Estados Unidos (treasures). E, na medida em que houvesse redução do volume de recursos no mercado, seria inevitável alguma valorização do dólar. Como tudo o que diz respeito a dinheiro mexe com os bolsos e atiça medos de perda, os mercados levarão alguns dias para avaliar o novo ponto de equilíbrio. Se a perspectiva de alta dos juros persistir, espera-se alguma migração das aplicações financeiras da renda variável para a renda fixa.

13 de maio de 2021

FUTURO ESTÁ NA UNIÃO DA AGENDA SOCIAL COM A AMBIENTAL, AVALIA ADRIANO PIRES!

(Poder 360, 11) Com a realização da reunião Leaders’ Climate Summit, a Cúpula de Líderes sobre o Clima, o presidente Biden cumpriu mais uma promessa da sua campanha e se projeta como uma grande liderança mundial dos próximos anos. A pandemia trouxe para o centro de debate duas questões. A 1ª é a preservação do meio ambiente, chamando a atenção para as consequências graves que podem atingir a humanidade com as mudanças climáticas. A 2ª questão é a concentração de renda: os pobres ficaram miseráveis e os ricos mais ricos.

A preocupação com o meio ambiente tinha perdido um pouco o foco com o negacionismo liderado pelo ex-presidente Trump. Durante o governo Trump, os Estados Unidos abandonaram o Acordo de Paris. Agora, com a eleição de Biden, o país volta com força e com metas mais ambiciosas do que as colocadas no governo Obama.

Um dos focos principais que vão permitir atingir essas metas é o setor de energia. A chamada transição energética até aqui tem tido como grande estrela o gás natural, que é reconhecido como a ponte para uma matriz com emissão zero. O mundo foi e ainda é dominado pelo consumo das fontes fosseis: petróleo e carvão. Uma característica nos últimos 2 séculos foi o monopólio do carvão mineral, que viabilizou a Revolução Industrial inglesa, e o petróleo, grande responsável pela hegemonia política e econômica dos Estados Unidos.

As transições energéticas são lentas. Foi assim com o carvão para o óleo e o próprio crescimento do gás natural na matriz energética mundial. O protagonismo do gás natural na matriz energética mundial tem duas explicações: o fato de ser a energia fóssil mais limpa e o aumento da sua oferta em função da tecnologia da liquefação e do surgimento da produção shale gas (gás de xisto) no mercado norte-americano. Isso possibilitou uma queda no preço do gás, descolando a sua trajetória dos preços do petróleo.

Nos Estados Unidos, o gás substituiu o carvão nas térmicas e agora começa a competir com o diesel como combustível para caminhões, navios e trens. Porém, diferentemente do carvão e do petróleo, o gás não tem e nem terá posição monopolista na oferta de energia. A tendência é termos matrizes cada vez mais diversificadas que aproveitem as vantagens comparativas como produtoras de energia das diferentes regiões do mundo.

Mas porque o gás é a energia da transição? Porque as energias renováveis, como a eólica e a solar, que são as grandes apostas do Plano Biden, têm como característica serem intermitentes e, no curto e médio prazo, vão atingir no máximo 20% da matriz energética mundial. Além disso, com o processo de eletrificação do mundo, um dos desafios será aumentar o consumo per capita de energia dos países mais pobres. Nesse caso a solução são as térmicas, o gás natural e as nucleares. O gás funcionaria como uma espécie de bateria virtual para as renováveis, garantindo a segurança de abastecimento. As baterias capazes de armazenamento hoje ainda são muito caras. A energia nuclear também deve ser a solução na configuração atual em que há a busca pela redução de emissões em prol do clima global, ao tempo em que garante a resiliência do sistema elétrico, que dará suporte ao processo de eletrificação.

Outro fato a ser destacado é que as transições energéticas se darão em tempos distintos nas várias regiões e países do mundo. E isso está diretamente ligado ao nível de renda e ao consumo per capita de energia por região do mundo. O mundo é muito desigual e, nesse contexto, o maior esforço para reduzir as emissões obrigatoriamente tem de vir dos países ricos, que também são os principais emissores. Enquanto o Brasil é responsável por 3% das emissões, os Estados Unidos, 15%, e a China, 28%.

Diante disso, a agenda ambiental precisa andar de mãos dadas com uma agenda que combata e crie soluções para desconcentrar a renda e eleve o consumo per capita de energia para os países mais pobres. Da mesma forma que temos de preservar o meio ambiente, temos de dar uma condição digna e qualidade de vida para todos no planeta. Existe uma correlação direta entre o consumo de energia e a qualidade de vida das populações. A solução ambiental, assim como a de uma melhor distribuição de renda, tem de ser global, precisa atingir a todos. Caso contrário, por melhor que sejam as intenções de diferentes governos, das grandes empresas e dos fundos de investimento, vai crescer o abismo climático –e o social– entre países ricos e pobres.

12 de maio de 2021

OS DESAFIOS DO MULTILATERALISMO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 09) O fato desconcertante sobre o multilateralismo hoje é que o momento em que ele é mais necessário para enfrentar desafios globais, como as mudanças climáticas, a não proliferação nuclear ou a regulação do universo digital, é o momento em que ele está mais debilitado. A pandemia acentuou esta contradição. “O vírus não vê diferenças entre um brasileiro, um americano e um chinês”, disse o pesquisador do Asia Research Institute Kishore Mahbubani. “No passado, 193 países viviam como que em 193 barcos. Se um barco pegasse um vírus, ninguém dava a mínima. Hoje não vivemos em 193 barcos, mas em 193 cabines do mesmo barco.”

Junto com Mahbubani, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais recebeu diplomatas e pesquisadores para debater os desafios do multilateralismo. “Há um chamado renovado para o multilateralismo”, disse a mediadora, Anna Jaguaribe, “mas que não envolve simplesmente um retorno às negociações do passado.” Hoje “falta um consenso sobre se a política multilateral deve ser orientada por valores ou negociada com base em interesses nacionais”.

Considerem-se, por exemplo, os conflitos entre EUA e China que condicionam o universo geopolítico. Pesquisadores como N. Anderson e B. Posen creem que prevalece em Washington uma orientação bipartidária de que a ascensão da China torna imperativa uma hegemonia liberal guiada pela política apta a implementá-la. Henry Kissinger, por sua vez, alega que a política internacional deveria ser guiada por um novo equilíbrio de poder que conjugue competição e cooperação entre as partes.

As negociações deveriam evitar a busca por soluções definitivas.

O seminário ilustrou notavelmente estas visões contrastantes. Mahbubani, por exemplo, se mostrou otimista: nunca a humanidade viveu tal progresso socioeconômico, e isso se deve em boa medida às organizações globais. Para ele, elas devem ser “rejuvenescidas”.

Em oposição, para Richard Haass, do Council of Foreign Relations, as chances de uma “reforma significativa” de organismos desenhados no pósguerra são “essencialmente zero”. Para ele, há um dilema entre organismos amplamente representativos, mas ineficazes (como a Assembleia-Geral da ONU), e blocos regionais menos representativos, mas eficazes (como a Otan ou a UE).

A seu ver, a imobilidade dos organismos globais em conflitos como o genocídio em Ruanda, a guerra nos Balcãs ou a invasão da Ucrânia sugere que, se o multilateralismo tem um futuro, será por meio de algo como um “minilateralismo”.

Seu modelo de “coalizões de vontades” é baseado na experiência federativa norte-americana, na qual os Estados são como que “laboratórios da democracia”, nos quais novas ideias são introduzidas, desenvolvidas e, se bem-sucedidas, adotadas ou adaptadas em nível nacional. “Mais do que ver o multilateralismo como um conceito universal de cima para baixo, devemos pensá-lo em uma perspectiva funcional muito mais flexível, de baixo para cima.”

Esta flexibilidade parece especialmente pertinente quando se pensa, por exemplo, que cerca de 90% das mudanças climáticas são causadas por 15 países, ou quando se consideram os desafios da regulação do ciberespaço ou da saúde global sem o envolvimento direto das Big Techs ou da indústria farmacêutica.

Não obstante, a metáfora do barco único de Mahbubani é incontornável. E a afirmação do ex-chanceler Celso Lafer de que no comércio interconectado contemporâneo é inviável substituir uma instituição como a OMC por entendimentos regionais é irrefutável. O próprio Haass, apesar de seu ceticismo sobre os organismos multilaterais, sugeriu: “deveríamos pensar não em rejuvenescê-los, mas em suplementálos”. Suplementar é bem diferente de descartar.

Tal solução de compromisso sugere que o dilema contemporâneo talvez não seja insolúvel. Talvez a política multilateral, para ser eficaz, tenha de ser construída em blocos, de baixo para cima, com base em interesses nacionais. Mas, para que sejam legítimas, essas negociações devem ser inelutavelmente condicionadas, de cima para baixo, por valores universais.

11 de maio de 2021

EMBATES ENTRE EXECUTIVO E JUDICIÁRIO SE MULTIPLICAM NA AMÉRICA LATINA E PREOCUPAM JURISTAS E ONGS!

(O Globo, 10) Depois da decisão da Assembleia Nacional de El Salvador, de maioria governista, de destituir todos os juízes da Câmara Constitucional da Corte Suprema de Justiça e o procurador-geral, o governo da Argentina redobrou na semana passada os ataques à Corte Suprema de Justiça, que deu aval ao funcionamento presencial das escolas da cidade de Buenos Aires, derrubando um ponto central de recente decreto do presidente Alberto Fernández e se alinhando com a política sanitária do prefeito opositor Horacio Rodríguez Larreta. Para a vice-presidente argentina, Cristina Kirchner, a ação da Corte foi um “golpe institucional”.

Os embates entre os Poderes Executivo e Judiciário em países da região, entre eles o Brasil, preocupam juristas e organizações como a Human Rights Watch (HRW), que observam uma tendência autoritária de governos eleitos. Na visão de José Miguel Vivanco, diretor da divisão das Américas da HRW, “não se trata de casos isolados. Pouco a pouco, está se impondo um discurso autoritário, de caudilhos que tentam convencer as sociedades de que devem ter a última palavra”.

— Estão sendo desafiados princípios básicos da democracia nos últimos três séculos, entre eles o da separação de Poderes — enfatiza Vivanco, em entrevista ao GLOBO.

Depois de anunciada a decisão do Supremo argentino sobre as escolas, Fernández afirmou que a resolução refletia a “decrepitude” da Justiça.

— A Justiça causou muito dano, o Estado de Direito precisa de uma institucionalidade adequada. Escolham o candidato a presidente que quiserem, mas não usem as sentenças para favorecer seus candidatos — declarou Fernández, em referência à suposta tendência da corte em favor do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019).

Já Cristina, que enfrenta oito processos por suposta corrupção e nos últimos meses intensificou sua ofensiva contra os tribunais, escreveu em sua conta no Twitter que “está muito claro que os golpes contra as instituições democráticas eleitas pelo voto popular já não são como antes”.

A Associação de Magistrados e Funcionários da Justiça Nacional, o Colégio de Advogados e a ONG Seremos Justiça divulgaram comunicados repudiando a atitude da Casa Rosada. O presidente da Associação de Magistrados, Marcelo Gallo Tagle, disse sentir “profunda preocupação pela sucessão e o estilo de declarações das mais altas autoridades políticas da nação”.

Na opinião de Daniel Sabsay, professor de Direito Constitucional da Universidade Nacional de Buenos Aires, “pela primeira a Corte Suprema tratou de atos de um governo em exercício, de forma constitucional, porque a sociedade está farta desse tipo de decretos e a palavra do presidente perdeu autoridade”.

— A cidade de Buenos Aires é autônoma, está em nossa Constituição. Várias câmaras inferiores deram razão ao chefe de governo portenho, e a corte simplesmente deu a última palavra — explica Sabsay.

O jurista lamenta que a vice-presidente “ataque para tentar garantir sua impunidade”.

— O maior problema de Cristina é que o governo não tem maioria parlamentar para lhe dar proteção e promover, por exemplo, uma ampliação do número de membros da Corte ou alguma outra reforma — diz Sabsay. — A Argentina é mais um exemplo de tentativa de cooptação do Judiciário na região.

A tensão entre Executivo e Judiciário tem se acentuado em vários países latino-americanos. Dirigentes de esquerda e direita questionam as decisões e posicionamentos dos mais altos tribunais de seus países. No México, o presidente de esquerda Andrés Manuel López Obrador, o AMLO, conseguiu aprovar uma reforma do Judiciário que ampliou o período de mandato do presidente da Corte Suprema, hoje seu aliado, de quatro para seis anos. A oposição considera a reforma inconstitucional.

— Cada vez que a corte faz alguma coisa que AMLO não aprova, o presidente acusa o tribunal de ser neoliberal e corrupto. Os presidentes da região têm um cardápio de ataques a serem usados contra os tribunais — ressalta Vivanco.

Segundo o diretor da HRW, governos como os de Bolsonaro, Fernández e Nayib Bukele, em El Salvador, “usam argumentos fraudulentos para questionar os que colocam pedras em seu caminho” . Para este tipo de líderes, disse Vivanco, “quem ganha uma eleição leva tudo. (Hugo) Chávez foi o grande precursor da tese”.

— As democracias têm uma legitimidade de origem, que é o voto popular, mas também uma legitimidade que deve ser preservada no exercício do poder. Caso contrário, os presidentes viram tiranos.

Ele lembrou que, na Bolívia, 90% dos juízes são provisórios, o que torna o Judiciário dependente dos governos de turno. No Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro voltou a ameaçar o Supremo de baixar um decreto para garantir a circulação de pessoas na pandemia, desautorizando prefeitos e governadores, Vivanco acredita que “a democracia está sólida, em grande medida, pela atuação do STF frente a um governo despótico”.

Na eleição presidencial peruana, também está em debate a independência dos tribunais. Antes do primeiro turno, o candidato de extrema esquerda, Pedro Castillo, que disputará o segundo turno com Keiko Fujimori em 6 de junho, prometeu “desativar o Tribunal Constitucional” e promover a eleição popular de novos juízes e promotores.

10 de maio de 2021

CIDADES INCLUSIVAS!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 08) Na era industrial, o desenvolvimento urbano nas Américas obedeceu a um padrão: crescimento rápido, desordenado e focado no transporte individual. O resultado são as chamadas cidades 3D: distantes, dispersas e desconectadas. Mas, se nos EUA a expansão se deu com subúrbios de baixa densidade ocupados pela classe média, nas cidades brasileiras prevaleceu a segregação de pessoas de baixa renda nas periferias, de onde realizam longos deslocamentos diários em transportes públicos precários para acessar ofertas de emprego, educação, saúde, lazer e serviços nas regiões centrais.

Muitos municípios brasileiros estão em vias de implementar ou revisar seus Planos Diretores. Oportunamente, o Banco Interamericano de Desenvolvimento lançou um guia para a implementação do Desenvolvimento Orientado para o Transporte (DOT).

O DOT envolve a articulação dos componentes urbanos com os sistemas de mobilidade para estimular a concentração de habitações e atividades socioeconômicas próximas aos corredores e estações de transporte público de massa. O objetivo é reverter o modelo 3D para uma cidade 3C: compacta, conectada e coordenada.

Isso implica a redução no tempo dos deslocamentos; a otimização do uso de recursos e serviços; a contenção do crescimento dispersivo; e a redução das emissões de gás carbônico. O modelo DOT envolve tipicamente uma multiplicidade de núcleos adensados e de uso misto, envoltos por áreas de menor densidade. Isso viabiliza um zoneamento equilibrado que promove a habitação socialmente diversa; a interconexão de serviços e atividades produtivas; e um espaço público e verde condizente com os padrões internacionais de bem-estar.

A viabilidade dos projetos de DOT depende da concatenação de 6 linhas estratégicas: i) mecanismos de governança que superem barreiras institucionais e facilitem a cooperação entre setores públicos e privados; ii) marcos legais capazes de viabilizar os projetos; iii) ferramentas que integrem a gestão do solo ao planejamento espacial e às redes de transporte público; iv) instrumentos econômicos e fiscais para mobilizar recursos; v) mecanismos de integração de políticas setoriais e de desenvolvimento urbano; e vi) a verificação e modelagem dos impactos ambientais, sociais e econômicos resultantes de uma intervenção.

A publicação oferece diversos estudos de caso em que estas estratégias foram aplicadas com sucesso. Em Washington, o bairro Noma se destacou pela utilização de formas inovadoras de atração de atores privados para prover sustentabilidade econômica a um projeto DOT. Bilbao, na Espanha, foi um caso particularmente bem sucedido de conjugação de interesses locais com estratégias e instituições regionais e nacionais. Tóquio é um exemplo de revalorização do solo urbano por meio de mecanismos de reajuste de terras e de modelos de financiamento por intermédio de parcerias público-privadas. Em Londres, foi possível reverter uma situação urbana de baixa densidade e degradação em torno da estação de metrô de King’s Cross por meio de um consórcio privado aliado à gestão pública nacional.

No caso de uma federação ampla e heterogênea, como o Brasil, a governança depende crucialmente de uma coordenação de arranjos institucionais e de políticas públicas entre os setores e jurisdições envolvidos. O estudo oferece diversas estratégias de incorporação dos princípios do DOT aos quadros legais. Também oferece novos instrumentos para a operacionalização dos projetos.

Para financiá-los, é necessário aperfeiçoar os mecanismos de arrecadação; implementar instrumentos de recuperação do valor fundiário; e diversificar formas de participação entre investidores públicos e privados. No plano concreto, essas estratégias devem promover a melhoria da rede de transporte coletivo e sua integração com a cidade, concomitantemente com a inibição da circulação de veículos individuais.

Ao confinar os cidadãos em suas casas, a pandemia os separou de sua cidade. Essa introversão forçada é uma oportunidade para repensar um modelo de desenvolvimento urbano 3I: intenso, inteligente e inclusivo.

07 de maio de 2021

REPRESSÃO ESTATAL ENFURECE COLOMBIANOS!

(O Estado de S. Paulo, 05) A repressão aos protestos contra a reforma tributária na Colômbia agravou a revolta contra o presidente Iván Duque, que ontem convocou os diferentes movimentos setores da sociedade para conversar, resolver problemas nacionais e pôr fim à violência. Desde que a onda de manifestações começou, na semana passada, 20 pessoas já morreram e mais de 800 ficaram feridas.

Como um rastilho de pólvora, o movimento ganhou caráter nacional, as reivindicações se ampliaram e agora incluem gritos contra a pobreza, o desemprego e a desigualdade. Ontem, manifestantes tomaram novamente as ruas e montaram bloqueios em rodovias de Bogotá e Cali, a terceira cidade do país e a mais afetada pelos distúrbios. A reforma tributária, apresentada por Duque no dia 15 de abril, previa o aumento de impostos sobre serviços e mercadorias, incluindo a gasolina, e ampliava a base de contribuintes do imposto de renda. A oposição e os críticos do projeto acusaram o governo de sacrificar a classe média em plena pandemia.

Duque defende que uma reforma tributária é necessária para dar estabilidade fiscal, proteger os programas sociais e melhorar as condições de crescimento em razão dos efeitos da pandemia. O objetivo do governo é arrecadar cerca de US$ 6,3 bilhões (R$ 34,43 bilhões) entre 2022 e 2031.

Na segunda-feira, diante da pressão, o ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla, renunciou, alegando que “sua continuidade no governo dificultaria a construção de consensos necessários para levar a reforma adiante”. Logo em seguida, o presidente colombiano retirou a proposta do Congresso, mas garantiu que apresentará um outro projeto em breve.

Duque vem definindo as manifestações como “terrorismo urbano de baixa intensidade”. Segundo o jornal El Tiempo, a sistemática e a agressividade dos ataques levaram as autoridades a suspeitarem que existe infiltração de organizações criminosas nos protestos. O ministro da Defesa, Diego Molano, afirma que dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) estão por trás dos excessos em Cali.

Mas à frente das manifestações estão sindicatos, líderes indígenas, organizações civis e estudantes, que exigem uma mudança de rumo do governo conservador de Duque. As mobilizações refletem também o desespero causado pela pandemia, que já matou mais de 75 mil colombianos e infectou quase 3 milhões de pessoas em uma população de 50 milhões.

No ano passado, o PIB da Colômbia teve seu pior desempenho em meio século, caindo 6,8%. Em março, o desemprego subiu para 16,8% e quase metade da população vive hoje na informalidade e na pobreza, de acordo com dados oficiais.

O índice de rejeição a Duque chegou a 60%, segundo o instituto Gallup, o mais alto desde que assumiu o governo, em 2018. A ONU condenou o “uso excessivo da força” na Colômbia. “Estamos profundamente alarmados pelos acontecimentos em Cali”, afirmou Marta Hurtado, porta-voz do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos.

Os EUA recomendaram prudência ao governo colombiano. “Pedimos a máxima moderação às forças públicas para evitar mais perdas de vidas”, afirmou Jalina Porter, porta-voz do Departamento de Estado. “Os cidadãos dos países democráticos têm um direito inquestionável de protestar pacificamente.”

Até Shakira, uma das maiores estrelas da Colômbia, criticou a repressão violenta aos protestos. “É inaceitável que uma mãe perca seu único filho em razão da brutalidade, que outras 18 pessoas tiveram suas vidas tiradas em um protesto pacífico”, escreveu no Twitter.

Os protestos também afetaram o futebol. A Conmebol decidiu ontem suspender dois jogos da Copa Libertadores que seriam realizados na Colômbia esta semana. Independiente Santa Fe e River Plate, em Bogotá, e Atlético Nacional e Argentinos Juniors, em Medellín, serão jogados no Paraguai.

06 de maio de 2021

EXPANSÃO APÓS PANDEMIA – O QUE A HISTÓRIA MOSTRA!

(The Economist/Estado de SP, 04) A pandemia de cólera no início dos anos 1830 atingiu a França com força. Dizimou cerca de 3% dos parisienses em um mês, e os hospitais ficaram lotados de pacientes cujas aflições os médicos não conseguiam compreender. O fim da praga ocasionou uma retomada da economia, e a França seguiu o Reino Unido na revolução industrial. Mas qualquer pessoa que tenha lido Os miseráveis sabe que essa pandemia também contribuiu para um outro tipo de revolução. Mais prejudicados pela doença, os pobres avançaram contra os ricos, que haviam fugido para suas casas de campo para evitar o contágio. A França testemunhou instabilidade política nos anos que se seguiram.

Hoje, mesmo com a covid-19 devastando países mais pobres, a parte rica do mundo está à margem de um boom pós-pandemia. Governos estão suspendendo impedimentos à circulação das pessoas à medida que as vacinações reduzem a quantidade de hospitalizações e mortes decorrentes do vírus. Muitos analistas preveem que a economia dos Estados Unidos crescerá mais de 6% este ano, ao menos quatro pontos porcentuais mais rapidamente do que no período pré-pandemia.

Outros países também tendem a um crescimento rápido e incomum. A situação é tão inusitada que economistas estão se voltando à história para saber o que esperar. Os registros sugerem que, após períodos de grandes perturbações não financeiras, como guerras e pandemias, o PIBretorna aos níveis anteriores. Primeiro, ainda que as pessoas queiram sair de casa e gastar dinheiro, a incerteza persiste. Depois, as crises encorajam as pessoas a encontrar novas maneiras de fazer as coisas, o que apruma a estrutura da economia. E, finalmente, conforme demonstram Os miseráveis, a agitação política frequentemente se segue, com consequências imprevisíveis para a economia.

Comecemos pensando no gasto dos consumidores. Registros de pandemias anteriores sugerem que, durante as fases agudas, as pessoas se comportam da mesma maneira que se comportaram no ano passado em relação à covid-19, economizando dinheiro à medida que as oportunidades de gastar se esvaem. Na primeira metade da década de 1870, durante um surto de varíola, a taxa de poupança nos lares britânicos dobrou. A taxa de poupança no Japão mais que dobrou durante a 1.ª Guerra. Em 1919 e 1920, quando a gripe espanhola se disseminou, os americanos guardaram mais dinheiro no colchão do que em qualquer outro ano até a 2.ª Guerra.

A história também oferece um guia a respeito do que as pessoas fazem uma vez que as coisas voltam ao normal. Elas gastam mais, o que ocasiona uma recuperação no emprego, mas não há muita evidência de excessos. A noção de que as pessoas celebraram o fim da peste negra com “fornicação selvagem” e “regozijo histérico”, como supõem alguns historiadores, é (provavelmente) apócrifa. Um estudo recente do banco Goldman Sachs estima que, entre 1946 e 1949, os consumidores americanos gastaram somente cerca de 20% do que pouparam. Esses gastos extras certamente contribuíram para o boom do pós-guerra, apesar de os boletins mensais de “situação econômica” do governo a partir da segunda metade da década de 1940 estarem repletos de preocupações a respeito de uma iminente desaceleração (e a economia de fato entrou em recessão entre 1948 e 1949).

A segunda grande lição dos booms pós-pandemias é relacionada ao “lado da oferta” na economia – maneiras e locais de produção de mercadorias e serviços. Apesar de as pessoas parecem menos propensas a frivolidades após uma pandemia, algumas podem ficar mais dispostas a tentar novas maneiras de ganhar dinheiro. Historiadores acreditam que a peste negra conferiu mais ousadia aos europeus. Embarcar em um navio a vela para desbravar novas terras parecia menos arriscado quando tantas pessoas morriam em suas casas. De fato, um estudo do Escritório Nacional de Pesquisa Econômica dos EUA publicado em 1948 constatou que o número de novas empresas explodiu a partir de 1919.

Outros economistas estabelecem ligação entre pandemias e uma outra alteração no lado da oferta na economia: o uso de tecnologia que prescinde de mão de obra. Chefes podem querer limitar a disseminação da doença, e robôs não adoecem. Um estudo do FMI analisa vários surtos recentes de doenças, incluindo ebola e Sars, e constata que “pandemias aceleram a adoção de robôs, especialmente quando o impacto na saúde é severo e é associado a uma queda significativa na economia”.

Se a automação rouba ou não o emprego das pessoas, porém, é outra questão. Algumas pesquisas sugerem que os trabalhadores, na verdade, se beneficiam após as pandemias. Um estudo do Federal Reserve Bank de São Francisco constata que as remunerações reais tendem a aumentar. Em alguns casos, isso ocorre por meio de um macabro mecanismo: a doença mata trabalhadores, deixando os sobreviventes em uma posição melhor para negociar o valor dos salários.

Em outros casos, porém, aumentos nos ganhos são produto de mudanças políticas: a terceira grande lição dos booms históricos. Quando grande parte da população sofre, a iniciativa política se volta para os trabalhadores. É o que parece estar acontecendo: formuladores de políticas de todo o mundo estão mais interessados em diminuir o desemprego do que em reduzir dívida pública ou evitar inflação. Um novo estudo de três acadêmicos da London School of Economics também constata que a covid tornou os habitantes da Europa mais avessos à desigualdade.

Em alguns casos, tais pressões detonaram a desordem política. Pandemias evidenciam e acentuam desigualdades preexistentes, fazendo com que os menos favorecidos busquem reparação. Uma pesquisa recente do FMI leva em conta o efeito de cinco pandemias, incluindo ebola, sars e zika, em 133 países desde 2001. E constata que elas ocasionaram um aumento na agitação social.

“É razoável esperar que, quando a pandemia desaparecer, a agitação volte a emergir em localidades onde existia anteriormente”, escrevem pesquisadores em um outro estudo do FMI. As agitações sociais parecem atingir picos dois anos após o fim das pandemias. Aproveite o próximo boom enquanto ele durar. Em breve poderá haver uma reviravolta na história.

05 de maio de 2021

A REFORMA TRIBUTÁRIA DE ADAM SMITH!

(Rodrigo K. Spada e Jefferson Valentin, presidente da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais e agente fiscal de Rendas do Estado de São Paulo – O Estado de S. Paulo, 04) “É necessário que todo imposto seja planejado de tal modo que as pessoas paguem ou desembolsem o mínimo possível além do que se recolhe ao tesouro público do Estado.” Adam Smith publicou essa máxima em 1776, que repetida por Ricardo e Stuart Mill, entre outros, ganhou uma obviedade tal que não há, hoje, voz que contra ela se levante.

Mas no Brasil atual, quase 250 anos depois, ainda é tempo de discutir o óbvio.

A necessidade de redução do tamanho do Estado, convicção que sempre esteve presente por aqui, intensificada nos últimos anos, encontra, na prática, duas formas de se viabilizar: deixar de prestar determinado serviço público ou prestar o serviço público com maior eficiência, otimizando os recursos disponíveis.

Por se tratar de atividade incontestavelmente essencial ao Estado, o Fisco só pode dispor da segunda opção.

Quando se discute reforma tributária, muito se ouve sobre a necessidade de redução dos custos de compliance para que se possa aumentar a competitividade das empresas, custos esses majorados pela complexidade das normas tributárias no Brasil.

Mas pouco se discute sobre o custo que tem o Estado (o contribuinte) para manter o enforcement compatível com esse nível de complexidade e o quanto isso dificulta a tarefa do Fisco na prestação dos serviços que lhe são pertinentes: garantir arrecadação, combater a sonegação, evitar a concorrência desleal, etc.

Pouco se discute, ainda, sobre a possibilidade da adoção de medidas de enforcement que levariam a um maior nível de conformidade de todos. Algumas medidas poderiam ser discutidas, tais como: endurecimento da pena para sonegação fiscal; execução fiscal administrativa; redução de níveis de contencioso (administrativo e judicial), criação de instrumentos mais eficientes de combate à fraude estruturada, como, por exemplo, whistleblower (cidadão que faz denúncia de ilícitos tributários e recebe um porcentual dos valores recuperados), entre outras, certamente resultariam numa resposta social no sentido da conformidade e, consequentemente, na necessidade de um aparato estatal menor, com custo menor para a sociedade.

Há poucos dias foi divulgada uma carta aberta assinada pelos representantes das Administrações Tributárias dos Estados – Comsefaz, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), a Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), além de organizações da academia e da sociedade civil, para tentar convencer o Congresso Nacional, mas, sobretudo, o setor privado, a lutar por uma reforma tributária que traga simplificação para a matriz tributária brasileira, o que resultaria, sem sobra de dúvidas, em redução dos custos de compliance tanto para o setor produtivo quanto para os governos em geral.

Mas, se os próprios Estados e municípios, outrora tão refratários, e os próprios servidores públicos, operadores da máquina arrecadatória, clamam por uma reforma tributária simplificadora, por que ela simplesmente não acontece?

Simplesmente porque o tão propagado “manicômio tributário” não é prejudicial a todos. Há muitos setores econômicos que são extremamente beneficiados por esta complexidade e pela consequente ineficiência do aparato estatal. Essa complexidade permite esconder todo tipo de privilégio fiscal que, por sua vez, contraria outro princípio escrito por Adam Smith, o da capacidade contributiva, que diz que cada um deve ser tributado “proporcionalmente às suas respectivas capacidades”.

A atual organização tributária é, antes de tudo, resultado da cooptação do Estado por setores do poder econômico que, nas palavras do filósofo britânico, são “classes de homens cujo interesse nunca coincide exatamente com o público”.

04 de maio de 2021

A CLASSE MÉDIA E O CENTRO POLÍTICO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 03) Estudos têm constatado haver significativa redução da classe média, com mais famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, em razão da crise social e econômica que já existia no País e se agravou durante a pandemia de covid19. Segundo o Instituto Locomotiva, a partir dos dados do IBGE, 4,9 milhões de pessoas saíram da classe média no último ano. Com isso, pela primeira vez em dez anos, o estrato social intermediário passou a representar menos da metade da população brasileira.

Com uma resposta lenta, desorganizada e insuficiente – quando não claramente negacionista –, o governo federal foi incapaz de proteger a população dos efeitos sociais e econômicos da pandemia. Sintoma especialmente dramático dessa disfuncionalidade do Palácio do Planalto é o aumento da fome.

A diminuição da classe média tem notórias consequências sociais e econômicas. Por exemplo, com a diminuição de renda familiar e o aumento do desemprego, mais jovens estão em situação de vulnerabilidade social. Houve aumento da evasão escolar.

É comum falar que a pandemia de covid-19 trouxe um cenário de acentuadas incertezas. No entanto, para muitas pessoas, o futuro não está apenas mais incerto. Ele está inexoravelmente mais penoso e mais limitado.

A redução da classe média tem também importantes efeitos econômicos. Com mais pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, a recuperação econômica do País torna-se necessariamente mais lenta, em razão, por exemplo, do endividamento das famílias e da redução do consumo.

Como tem sido lembrado pela OCDE, uma classe média próspera é decisiva para a economia e para a coesão social de um país. A classe média sustenta o consumo e a arrecadação de impostos – viabilizando, por exemplo, as políticas públicas de proteção social – e impulsiona o investimento em áreas fundamentais, como educação, saúde e moradia.

A diminuição de pessoas no estrato social intermediário produz também importantes efeitos políticos. O aumento da vulnerabilidade social e econômica contribui para uma maior adesão a propostas populistas, que, sem enfrentarem a causa dos problemas, prometem soluções fáceis, rápidas e inviáveis.

O quadro é de enorme perversidade. De alguma forma, a ineficiência do governo populista – que, se esquivando de fazer as reformas, não promove o desenvolvimento social – faz com que parte da população se torne (em razão da vulnerabilidade social e econômica) ainda mais refém desse mesmo governo, ou de sua antítese ideológica, igualmente populista.

Além das dificuldades sociais e econômicas, a redução da classe média representa, assim, um especial desafio político para o País. De forma muito concreta, o encolhimento do estrato social intermediário traz dificuldades adicionais para a viabilidade política de um candidato de centro à Presidência da República em 2022.

Vale ressaltar que o encolhimento da classe média não é um fenômeno que se iniciou agora, tampouco está restrito ao Brasil. Por exemplo, a redução do estrato médio tem sido observada na maioria dos países da OCDE. As novas gerações têm encontrado mais dificuldades para alcançar a renda da classe média, definida pela OCDE como os rendimentos entre 75% e 200% da renda nacional média. Na geração dos baby boomers, quase 70% das pessoas na faixa dos 20 anos pertenciam à classe média. Na geração dos millennials, esse porcentual é de 60%.

No entanto – e aqui está o quadro especialmente desafiador para o Brasil –, a pandemia de covid-19, junto ao despreparo e ineficiência do governo de federal, tem acelerado esse processo de encolhimento da classe média. Há mais famílias pobres. Há mais pessoas vulneráveis.

Mais do que induzir a paralisias, essa situação desafiadora clama por uma urgente e especial responsabilidade para com o País. Não cabe assistir passivamente ao empobrecimento da população e, consequentemente, à sua subjugação a manobras populistas. Uma proposta política viável de centro deve contemplar, de forma muito realista, a defesa e o fortalecimento da classe média.