28 de fevereiro de 2019

“CUBA ADOTA AS REDES SOCIAIS”!

(The Economist/Estado de S.Paulo, 24) Regime cubano está tuitando, o que não o torna mais democrático ou tolerante com a dissidência.

Um dia antes de Miguel Díaz Canel se tornar presidente de Cuba, em abril, um âncora da TV estatal pediu aos cubanos que se unissem num “tuitaço”. As hashtags que ele propôs foram #PorCuba e #SomosContinuidad. O próprio Díaz-Canel criou uma conta no Twitter em agosto. Nas primeiras semanas, ele seguiu apenas Nicolás Maduro, o problemático déspota da Venezuela, e Evo Morales, primeiro presidente de esquerda da Bolívia. Em dezembro, na tentativa de tornar mais explicável para o povo a ditadura de Cuba, ele determinou aos departamentos do governo que se tornassem mais visíveis na rede social. Hoje, 24 dos 26 ministérios estão no Twitter, assim como a maioria dos ministros que os chefiam.

Um número cada vez maior dos 11 milhões de cidadãos cubanos pode tuitar de volta. Em dezembro, pela primeira vez, as redes de celulares 3G ficaram acessíveis a qualquer um na ilha comunista. Anteriormente, o principal acesso dos cubanos à internet eram os pontos públicos de wi-fi, que cobravam por hora. Apenas 37 mil residências tinham conexões com a web.

O acesso ao 3G, cobrado por megabites, está encorajando os cubanos a migrar de plataformas famintas de dados, como Facebook e Instagram, para o Twitter, menos voraz. Até o fim de janeiro, os 5,3 milhões de usuários de celular do país haviam adquirido 1,4 milhão de pacotes de 3G.

O Twitter de duas vias parece estar reduzindo a distância entre governantes e governados. Depois que um tornado se abateu sobre Havana, em janeiro, a ministra do Comércio Interior, Betsy Díaz Velásquez, tuitou uma lista de alimentos com desconto disponíveis à população da área afetada.

Quando pessoas criticaram o governo, pelo Twitter, por não cuidar daqueles que haviam perdido suas casas, a ministra ofereceu a elas comida grátis. “Um ano atrás, eu não saberia dizer o nome de um único ministro cubano”, disse em dezembro o empresário Camilo Condis. “Agora, sei os apelidos de todos eles, reconheço seus rostos e tenho até a chance de interagir com alguns.”

Ultimamente, porém, a conversação vem se tornando mais raivosa. O malestar vem da tentativa do governo de modificar a Constituição por meio de um referendo marcado para hoje. Haveria mudanças modestas, como a legalização da propriedade privada (sujeita a regulamentação pelo Estado) e o limite de dois mandatos de 5 anos para o presidente.

Os ânimos se exaltaram depois que a Assembleia Nacional anunciou, em dezembro (via Twitter), a derrubada da emenda que permitia o casamento no mesmo sexo. Em seu lugar surgiu um remendo reconhecendo o casamento como uma “instituição social e legal”, a ser definida posteriormente.

Cubanos defensores dos direitos dos gays manifestaram sua fúria usando a hashtag #YoVotoNo. A hashtag foi ampliada para incluir outras queixas, como a não permissão para os cubanos elegerem diretamente seus líderes. Poucos esperam que o referendo seja uma votação justa. A hashtag ficou tão popular que o governo se viu obrigado a contra-atacar com um #YoVotoSi.

Essa nova hashtag está colada em ônibus, mercearias estatais e quiosques de sorvete. No desfile de 28 janeiro, em honra de José Martí, herói da independência, o governo distribuiu camisetas – um luxo em Cuba – ostentando a hashtag pró-Constituição. Pessoas que discordavam mais ativamente das mudanças foram detidas e hostilizadas pela polícia. Os dirigentes de Cuba podem ter aprendido a tuitar, mas não esqueceram como se cala a população.

27 de fevereiro de 2019

BRASIL PIOR DO QUE HÁ SETE ANOS!

(Editorial do Estado de S. Paulo, 25) Com mais informalidade, mais desocupação e mais subemprego, as condições de trabalho são hoje muito piores do que eram em 2012.

Com mais informalidade, mais desocupação e mais subemprego, as condições de trabalho são hoje muito piores do que eram há sete anos, segundo o retrospecto recém-publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A degradação do mercado de trabalho tem uma história mais longa do que em geral se imagina, quando se comparam as condições atuais com as de antes da recessão. No ano passado houve em média, no Brasil, 32,93 milhões de empregados com carteira assinada no setor privado. Em 2012, esse contingente era 34,31 milhões. Em 2014, quando o País se aproximava da recessão, o número chegou a 36,61 milhões, o maior desse período. No trimestre final de 2018, os trabalhadores com carteira, no total de 32,99 milhões, ficaram pouco acima da média anual, mas a melhora foi quase insignificante. Nada sugere, por enquanto, um breve retorno ao número de sete anos atrás. Os números são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua.

A piora em relação a 2012 é até maior do que possa parecer, porque nesse período a população em idade de trabalho cresceu seguidamente. Em termos proporcionais, portanto, o quadro é mais feio do que quando se consideram só números absolutos.

No ano passado, a parcela de empregados com carteira assinada, de 74,6%, foi menor que em 2012, quando ficou em 75,6%, e bem menor que em 2015, quando atingiu 78%. A porcentagem diminuiu em 17 unidades federativas, aumentou em 8 e em 2 foi igual à de 2012. Em São Paulo, o Estado mais industrializado e com maior Produto Interno Bruto (PIB), a proporção passou de 83,2% em 2012 para 81,4% em 2018, tendo atingido o ponto mais alto, 85,2%, em 2014. No ano passado, a menor proporção, de 50,8%, foi observada no Maranhão.

A informalidade aumentou de forma preocupante a partir da recessão, mas já era um problema grave bem antes disso. Em 2012, as taxas de emprego formal eram inferiores a 70% em 14 unidades da Federação. Em 2018, isso ocorreu em 16.

Quando se examina a desocupação, observa-se alguma melhora no último ano, mas a maior parte das novas contratações foi informal, sem garantias para o empregado e, de modo geral, sem benefícios além do salário.

O desemprego médio recuou de 12,7% em 2017 para 12,3% em 2018. A menor taxa havia sido a de 2014, quando 6,8% dos participantes do mercado de trabalho ficaram desocupados. Em 2012, a taxa nacional havia atingido 7,4%, um nível ainda distante e só atingível depois de mais alguns anos de crescimento econômico. Em todo o País, a taxa de desocupação aumentou 81% entre 2014 e 2018.

A maior deterioração ocorreu no Rio de Janeiro, onde os desempregados passaram de 6,3% para 15% da população economicamente ativa, num salto de 138%. Essa piora refletiu, certamente, um conjunto incomum de desastres, incluídas a crise política e fiscal e a interrupção de projetos importantes, como o do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj). Não só no Rio, mas de modo especial nesse Estado, o agravamento das condições do emprego foi uma das consequências de um extraordinário surto de corrupção retratado parcialmente na Operação Lava Jato.

Também piorou, nos últimos sete anos, o grau de aproveitamento da mão de obra disponível. O aumento do desemprego mostra apenas uma parte da mudança. A população subutilizada passou de 18,82 milhões em 2012 para 27,40 milhões em 2018 – números médios de cada ano.

O menor contingente, de 15,50 milhões, foi o de 2014, pouco antes do início da recessão. Os desocupados são menos de metade do contingente mais amplo. Eram 7,10 milhões em 2012, 6,74 milhões em 2014 e chegaram a 12,84 milhões em 2018. O grupo total dos subutilizados inclui também os desalentados e os ocupados por menos tempo do que gostariam.

Confiança é a primeira condição para se reduzir esse enorme desperdício de capacidade produtiva e melhorar a vida dos brasileiros. Mais que promessas, a criação dessa confiança requer bons projetos e muita competência política.

26 de fevereiro de 2019

O DISCURSO E A PRÁTICA!

(Editorial O Estado de S. Paulo, 25) O TechCrunch, site americano especializado em tecnologia, revelou que o Facebook paga US$ 20 por mês a pessoas de 13 anos a 35 anos pelo uso do aplicativo Research, que dá à empresa de Mark Zuckerberg acesso a todo o histórico de telefone e web dos usuários, incluindo atividade criptografada, mensagens e e-mails privados. O aplicativo permite também que o Facebook veja como os amigos dessas pessoas, que não consentiram em coletar seus dados, interagiram com esses usuários. Houve casos, inclusive, em que o programa pediu que os usuários compartilhassem capturas de tela de suas compras na concorrente Amazon. A descoberta do TechCrunch mostrou que o compromisso repetido nos últimos tempos pelo Facebook, de que está tentando melhorar o seu relacionamento com os usuários, dentro de um marco de maior respeito à intimidade e à privacidade, é ainda mero discurso, muito distante da realidade.

Em primeiro lugar, está o problema do frágil consentimento. Na prática, os usuários não sabem o que estão autorizando. O aplicativo Research dá acesso total às ações e informações do usuário em seu smartphone. No entanto, o contrato diz apenas que o usuário, ao aceitar as condições, está “permitindo que nossos clientes coletem informações sobre quais aplicativos você tem no seu celular, como e quando você os utiliza, atividade de navegação e até mesmo quando o aplicativo utiliza criptografia”.

“Trata-se de um programa que dá ao Facebook acesso contínuo dos dados mais sensíveis do usuário. Muitos não serão nem capazes de dar seu consentimento a esse acordo, porque não há nem como explicar toda a dimensão do poder que é entregue ao Facebook quando um contrato desses é assinado”, disse Will Strafach, especialista em segurança de dados, ao TechCrunch.

Além disso, o usuário não tem consciência de que, com o uso do aplicativo, é ao Facebook que está dando o acesso de seus dados. O programa é administrado por outras empresas, Applause, BetaBound e uTest, que prestam serviços de testes de aplicativos. Com isso, a participação da rede social no projeto de pesquisa fica oculta.

Aspecto especialmente negativo para o Facebook foi a revelação de que a empresa, ao criar o Research, praticamente replicou a infraestrutura e o código do Onavo, um aplicativo espião que já havia sido banido pela Apple, por violar suas regras. Ou seja, o Facebook deu continuidade a práticas que reconhecidamente iam muito além do razoável. Em 2017, o Wall Street Journal mostrou que o aplicativo Onavo foi essencial para o Facebook espionar a empresa Snapchat, antes de lançar ferramentas de mensagens semelhantes à da rival, como o Instagram Stories e o WhatsApp Status. A startup que criou o Onavo foi comprada, em 2013, pelo Facebook por US$ 120 milhões.

Diante da descoberta sobre o funcionamento do Research, o Facebook alegou que o aplicativo nada mais era do que um serviço de pesquisa de mercado, permitindo que a empresa detectasse ameaças competitivas. Isso não serve de desculpa, pois toda pesquisa deve respeitar a privacidade e contar com a plena anuência dos usuários. Logo após o

TechCrunch ter noticiado sobre o aplicativo, o Facebook tirou do ar a versão iOS.

Também foi revelado recentemente que o Google manteve um aplicativo de monitoramento similar ao Research, chamado Screenwise Meter. Os usuários ganhavam valecompras em troca de informações sobre o modo como usam a internet e o smartphone. O aplicativo do Google, no entanto, não tinha acesso a dados criptografados.

A tecnologia oferece muitas possibilidades para as empresas conhecerem seus clientes e concorrentes. Ponto fundamental em todo esse processo é a transparência. Só assim o usuário poderá ter a segurança de não ser transformado em peça manipulável. Sua privacidade e sua liberdade são – devem ser – fundamentais.

25 de fevereiro de 2019

POR QUE A CRISE NA VENEZUELA INTERESSA TANTO PAÍSES COMO RÚSSIA, CHINA E TURQUIA?

(Stefania Gozzer – BBC News Mundo, 24) A Venezuela de Nicolás Maduro (e antes disso, a de Hugo Chávez) é um assunto polêmico inevitável em debates eleitorais de nações tão diferentes quanto Espanha e Irã.

As notícias sobre a Venezuela ganham destaque em países muito além da América Latina. Seja no alfabeto latino, cirílico ou persa, o país sul-americano desperta interesse em todo o planeta – mesmo em Estados com os quais a Venezuela não tem laços históricos ou comerciais.

Provoca divisão, inclusive, entre parceiros políticos. Foi o que ocorreu com o Movimento 5 Estrelas e La Liga, que governam juntos a Itália, mas têm posições opostas em relação à legitimidade de Maduro como líder do Executivo – por isso, os grupos decidiram não reconhecer nem Maduro nem Juan Guaidó como presidentes da Venezuela.

Acima de tudo, a Venezuela mantém em compasso de espera as nações que não têm boas relações com os Estados Unidos.

Mas o que há de tão especial na Venezuela que atrai a atenção de tantos países?

China de olho nos seus investimentos
A razão da China para acompanhar de perto o que acontece na Venezuela tem 11 números.

O país asiático é o maior credor de Caracas. Enquanto o resto dos agentes econômicos duvidava cada vez mais da capacidade do país sul-americano de saldar suas dívidas, Pequim emprestou mais de US$ 50 bilhões para a Venezuela (alguns analistas estimam que o valor seja ainda maior, na ordem de US$ 67 bilhões).

Acredita-se que boa parte desse empréstimo já tenha sido paga pelo país sul-americano. Segundo Carlos de Sousa, especialista na América Latina da empresa de análise e previsão econômica Oxford Economics, ainda faltaria pagar pelo menos cerca de US$ 16 bilhões.

Foi justamente essa falta de transparência que fez com que a opinião pública chinesa ficasse desconfiada dos investimentos feitos na Venezuela.

Vincent Ni, analista da BBC para a China, explicou à BBC World que o governo “geralmente é muito aberto” em relação a seus investimentos no exterior. Então, o fato da China não “querer revelar quanto emprestou à Venezuela diz muito”.

Diante da censura a que está submetida a população chinesa, é preciso recorrer à internet para saber o que os chineses pensam sobre esse tema. “Basicamente, (os chineses) dizem que a China ainda é um país em desenvolvimento e que há muitas pessoas vivendo na pobreza. (Assim, como pode) estar dando tanto dinheiro a outros países?”, disse Ni. O especialista ressaltou, porém, que é difícil saber o quão representativos são comentários anônimos na internet com esse teor.

Mas a decisão chinesa de investir na Venezuela é estratégica. “(A China) sempre teve uma visão de longo prazo em relação à Venezuela: sendo este o país com as maiores reservas de petróleo do mundo, fazia sentido investir ali como uma forma de garantir uma fonte de petróleo, (produto) que é necessário para seu crescimento”, disse Carlos de Sousa, da Oxford Economics.

Russ Dallen, um dos sócios do banco de investimentos Caracas Capital Markets, disse ao canal americano CNBC que os chineses temiam que a oposição venezuelana não reconhecesse as dívidas contraídas pelo país durante os anos de Hugo Chávez – ou então que encontrariam “brechas legais” para não honrar com os pagamentos.

“Os chineses não sabem o que fazer. Os homens de Maduro não estão pagando… e a situação continua se deteriorando”, disse Dallen.

Porém, Guaidó já tentou dissipar as dúvidas e os receios chineses. “Nosso governo vai agir com respeito às leis e às obrigações internacionais (da Venezuela)”, disse Guaidó em entrevista ao jornal chinês South China Morning Post, no início de fevereiro. “Todos os acordos que foram assinados com a China de acordo com a lei serão respeitados.”

Pequim, por ora, já demostrou seu apoio a Maduro. Mas também admitiu ter falado com “todas as partes” do conflito. Mais do que fidelidade política, a prioridade chinesa é assegurar seus interesses econômicos.

“A China ainda não sabe que lado escolher”, disse Ni. “Durante a Primavera Árabe, (a China) apoiou (o falecido líder líbio) Khadafi até sua queda. Mas, quando ele caiu, (a China) mudou de lado e ninguém se importou”.

A Rússia e os dois campos de batalha
A Venezuela tem forte presença na mídia russa e até no Parlamento do país.

Para a Rússia, a Venezuela representa um interesse geopolítico “muito importante” para “neutralizar os interesses” dos Estados Unidos em áreas tradicionalmente consideradas de influência russa, explicou Carlos de Sousa.

“(O envolvimento dos EUA no confronto com a Ucrânia) foi uma situação muito incômoda para a Rússia”. Então, o governo Putin está fazendo o mesmo na Venezuela: ‘bem, agora sou eu que te incomodo’. Então, (a questão venezuelana) não é algo essencial, mas é interessante para que a Rússia tenha alguma influência no ‘quintal’ dos EUA”, acrescentou o especialista.

Para os russos, a Venezuela não apenas representa um campo de batalha externo, mas também interno.

O editor do serviço russo da BBC, Famil Ismailov, afirmou em dezembro: “Geralmente, o povo russo está cansado de ajudar governos como o sírio e o venezuelano, em vez de ver esse dinheiro investido dentro do país. Mas o governo russo tem uma máquina de propaganda muito forte”.

O presidente Vladimir Putin apoia fortemente Maduro, e a imprensa russa oficial questiona o apoio popular à oposição venezuelana.

“Também há interesses econômicos muito importantes. A Rússia investiu cerca de US$ 10 bilhões (na Venezuela)”, apontou Sousa. Alguns analistas acreditam que o número pode ser ainda superior, de cerca de US$ 17 bilhões.

“Os russos viram (a situação da Venezuela) de forma oportunista. A recessão no país e a queda na produção de petróleo já haviam começado. Então, a Rússia viu uma oportunidade de comprar ativos da indústria petrolífera a preços muito baratos”, disse o analista da Oxford Economics.

Os deputados russos questionam frequentemente sobre o futuro do dinheiro emprestado para a Venezuela. Um dos motivos é que, na Rússia, muitos pensam que esse dinheiro não vai ser recuperado.

“Quando os russos investem em um país, fazem isso pela política, não por razões econômicas. Esse dinheiro (emprestado para a Venezuela) não vai voltar. É um pagamento feito à Venezuela pelo seu apoio à causa russa”, continuou Ismailov.

“É importante mostrar para o público interno que a Rússia desempenha um papel de superpotência e tem países amigos. (A ideia então é que) vale a pena pagar por isso”.

“A oposição venezuelana já indicou tanto para a Rússia quanto para a China que quer continuar a fazer negócios com esses países no futuro, quando estiver no governo”, afirma Sousa. “Obviamente, quando a oposição assumir o governo no futuro, se assim for, toda a dívida com a China e a Rússia terá de ser reestruturada… E, sobre isso, eu não tenho a menor dúvida: todos vão perder em alguma medida.”

Irã e a ‘venezualização’
Apesar de estarem separados por mais de 12 mil quilômetros, o Irã e a Venezuela mantêm uma relação que, segundo o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, é “sagrada”. O Irã tem sido um dos poucos países a demonstrar apoio a Maduro, chamando a autoproclamação de Guaidó de “tentativa de golpe”.

Chávez e o ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad foram os responsáveis por fortalecer os laços entre os dois países. Desde então, ocorreram diversas visitas oficiais dos dois lados.

Mas a aliança entre a Venezuela e o Irã é de natureza diferente, como explica o editor da emissora persa da BBC, Ebrahim Khalili: “O governo apoia a Venezuela porque sua estratégia é ser contra tudo que os Estados Unidos são a favor. Fala abertamente que devemos estar perto dos inimigos dos nossos inimigos”.

Turquia em busca de ouro venezuelano
Maduro também é muito conhecido na Turquia. Em setembro do ano passado, por exemplo, um vídeo do venezuelano saindo de um restaurante de luxo em Istambul provocou controvérsia.

Era a quarta visita de Maduro à Turquia desde 2016, quando as relações entre as duas nações começaram a florescer. Naquele ano, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan sofreu uma tentativa de golpe, e Maduro foi um dos primeiros líderes mundiais a apoiá-lo.

Não surpreende, então, que Erdogan tenha criticado os Estados Unidos por apoiarem Guaidó.

O parlamento turco tem, inclusive, um grupo dedicado à “amizade” turco-venezuelana. Segundo seu presidente, Kerem Ali Surekli, do partido de Erdogan, “ambos os países resistem a intervenções externas, rechaçam intervenções externas e bastam a si mesmos”.

Além dos paralelos políticos, há um fator econômico que leva os turcos a manterem os olhos na Venezuela. “A Turquia é um importante produtor de jóias e um dos maiores importadores de ouro do mundo”, explica Sousa. “E, no ano passado, se tornou um dos parceiros comerciais mais importantes da Venezuela, porque compra muito ouro do país sul-americano.”

Índia teme que o petróleo encareça
A situação venezuelana não ganha muito destaque na imprensa da Índia, mas o setor econômico do país não perde um detalhe sobre o que ocorre no país latino-americano. O motivo é que, já há uma década, a Índia é o segundo ou terceiro maior comprador de petróleo venezuelano.

“A Índia provavelmente pode se beneficiar de sanções (dos Estados Unidos à estatal do petróleo venzuelana PDVSA), porque é outro mercado para o qual a Venezuela poderia redirecionar algumas das suas exportações”, afirma Sousa.

“(A Venezuela) não faria isso (redirecionar suas exportações) com a China, já que, segundo acreditamos, está atrasando pagamentos de dívidas contraídas com o país asiático desde maio de 2018. Então, se a Venezuela exportar mais petróleo para a China, seria simplesmente uma amortização mais rápida da dívida que contraiu, em vez de obter uma receita maior de petróleo. Já a Índia pagaria em dinheiro”.

Mesmo assim, Sousa acredita que a Venezuela poderá redirecionar para a Índia apenas uma fração de todas as suas exportações para os Estados Unidos.

O ministro do Petróleo e chefe da PDVSA, Manuel Quevedo, viajou em março para a Índia, onde diz ter tido “um encontro muito produtivo”. “Vamos continuar a trabalhar através da troca de petróleo”, afirmou.

O conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Bolton, reagiu no Twitter com uma advertência: “Os países e empresas que apoiarem o roubo que Maduro faz dos recursos venezuelanos não serão esquecidos”.

Para o especialista em estudos energéticos e ambientais do Conselho Indiano sobre relações globais Gateway House, Amit Bhandari, a preocupação da Índia é que a queda da produção venezuelana produza um aumento nos preços do petróleo. O país é o terceiro maior importador de petróleo bruto do mundo, atrás de China e dos Estados Unidos.

“A maior preocupação da Índia é que importamos cerca de 85% de todo o petróleo que consumimos. Se a Venezuela, com sua significante oferta de petróleo, ficar fora do mercado, o preço vai subir para todos, sejam clientes da Venezuela ou não” , considera Bhandari.

Zimbábue, a ‘Venezuela da África’
O interesse que a Venezuela desperta em outros países nem sempre deriva de fatores econômicos ou geopolíticos. É o caso do Zimbábue, que não é um importante parceiro comercial do país latino.

“Ambos os países foram prósperos no passado e tinham líderes pitorescos que desafiavam o Ocidente: Hugo Chávez e Robert Mugabe”, explica Shingai Nyoka, correspondente da BBC no Zimbábue.

Em 2008, o Zimbábue teve a segunda maior hiperinflação já registrada no mundo: 79.600.000.000%, de acordo com a Tabela de Hiperinflação Global da Hanke-Krus. Hoje, sua moeda caiu em desuso e as transações são feitas com moedas estrangeiras, especialmente dólares e randes sul-africanos.

A imprensa do Zimbábue está acompanhando de perto o que ocorre na Venezuela. O motivo é que, apesar dos países estarem tão longe um do outro e serem tão diferentes, a população zimbabueana compara a situação da Venezuela com a sua própria há anos.

“Os dois países têm problemas econômicos e políticos que incluem hiperinflação, escassez de alimentos e governos em desacordo com o Ocidente. O presidente Maduro e o ex-presidente Mugabe culpavam o ‘imperialismo’ pelos seus infortúnios”, diz Nyoka.

“Alguns chamam o Zimbábue de ‘a Venezuela da África”, completa.

Enquanto alguns pensam que a situação do Zimbábue deve servir de advertência para a Venezuela, mostrando o quão difícil pode ser “conservar um Estado falido”, outros pensam que Maduro “está sendo sabotado por países que querem o petróleo da Venezuela”.

“Eles acreditam que a crise econômica (da Venezuela) é produto de sanções e sabotagem – da mesma forma que acreditam que essas são as causas dos problemas econômicos do Zimbábue”, afirma Nyoka. “Acham que Maduro está pagando o preço por ter enfrentado o Ocidente.”

22 de fevereiro de 2019

SARTORI, “ZEBRA” DA DIREITA, AVANÇA NO URUGUAI!

(Sylvia Colombo – Folha de S.Paulo, 21) A corrida presidencial uruguaia começa a esquentar com os anúncios das pré-candidaturas. Num cenário em que os eleitores escolherão entre dar continuidade aos 14 anos de governo da esquerdista Frente Ampla ou optar pela alternância com alguma força de centro ou de direita, surge um opositor com o discurso de “correr por fora da política tradicional”.

​Já popularmente chamado pelos locais de “Bolsonaro uruguaio” ou “Macri uruguaio”, o bilionário Juan Sartori, 38, apresenta-se como um pré-candidato que promete acabar com o excesso de gastos sociais do atual governo —”um assistencialismo que nem os pobres querem”—, tornar o Mercosul mais flexível e menos ideologizado e romper com um governo de esquerda que, segundo ele, tornou a administração do país uma máquina lenta e ultrapassada para dar respostas a uma economia mundial mais moderna.

As linhas de seu discurso são ainda bastante genéricas, mas é inevitável ver semelhanças com os dos presidentes brasileiro e argentino. Como o último, Sartori pertence a uma das famílias mais ricas do país e diz, assim como prometia Macri, que não quer a Presidência “para me mostrar publicamente e depois tirar proveito para meus negócios”.

Sartori é fundador da Union Group, uma empresa de gestão de investimentos, principalmente na área agroprecuária, de onde vêm os principais produtos que o Uruguai exporta. A Union Group também atua nas áreas energética, de mineração, gás e construção de infraestrutura.

Assim como Macri, é ligado ao mundo do futebol, sendo um dos principais acionistas do time britânico Sunderland. É casado com Ekaterina Rybolovleva, filha de um magnata russo dono da empresa de fertilizantes Uralkali e do time francês de futebol Mônaco.

A cerimônia de casamento de ambos ocorreu na ilha grega de Skorpios, a mesma em que Aristóteles Onassis se casou com Jacqueline Kennedy.

Há pouco mais de dois anos, Sartori começou a dar palestras sobre o futuro da economia do Uruguai, animando o público local de investidores. Daí, saltou para a política e decidiu concorrer por um dos partidos mais tradicionais do país, o Nacional, de centro-direita.

Ali, disputará internamente com um desacreditado Luis Lacalle Pou, perdedor nas últimas eleições, nas primárias, que ocorrem em junho.

O empresário diz estar, por enquanto, financiando sua própria campanha. Ele esteve no último Fórum de Davos, para se encontrar com líderes e empresários. Também esteve com o presidente Jair Bolsonaro.

Segundo a imprensa uruguaia, Bolsonaro teria dito a Sartori que “varresse a esquerda do Uruguai”. Questionado sobre a veracidade da frase, Sartori disse que teve um “ótimo diálogo” com o brasileiro e que isso serviria para “nosso relacionamento no futuro”, pois via que ambos tinham várias semelhanças na visão da região.

Sobre a frase que teria sido dita por Bolsonaro a ele sobre a esquerda, apenas disse “não confirmo nem nego”.

Sartori tem feito sua campanha pensando em dois públicos. Um, o empresariado, com quem segue tendo encontros e dando palestras. Há duas semanas, esteve em Buenos Aires para uma série de reuniões com empresários locais.

O outro público tem sido o dos rincões do Uruguai e as classes populares. Fez atos junto a pequenos e médios agricultores, que reivindicam uma redução dos altos impostos.

Sartori tem realizado encontros com ele e feito cavalgadas ou caravanas em trator, vestindo roupas populares entre os camponeses e acompanhado da bela esposa russa, também vestida a caráter. Também tem visitado as periferias e torcedores dos times populares, como o Peñarol.

Em entrevista a um veículo argentino, Sartori disse que “os uruguaios cada vez veem menos oportunidades em seu país, enquanto o custo de vida está muito alto”. “Não estamos gerando um contexto em que as pessoas possam almejar uma melhora em seu padrão de vida.”

Sua crítica à Frente Ampla, partido do atual presidente, Tabaré Vázquez, é que as políticos do partido “geraram um Estado muito grande que hoje asfixia empresários e produtores, e também os trabalhadores, com cada vez mais impostos e com tarifas de serviço mais altos.”

Embora o alto custo de vida seja, de fato, uma das principais reclamações dos uruguaios, o desempenho macroeconômico do país nos últimos 14 anos são de dar inveja aos vizinhos Argentina e Brasil.

O Uruguai teve um crescimento ininterrupto, tendo crescido 3,4% em 2018, acima da média da região. Deve fechar 2019, segundo o FMI, com crescimento de 3,1%.

Outro ponto do discurso de Sartori é o aumento do número de homicídios e a sensação da falta de segurança, temas muito citados entre as preocupações dos uruguaios.

Em 2018, o número de assassinatos cresceu 66% em relação ao ano anterior, uma cifra altíssima para um país considerado tão pacato.

Sartori acusa a esquerda de não ter pulso forte suficiente em relação ao crime organizado, também aí com discursos sincronizados aos de Bolsonaro e Macri.

Ainda assim, a corrida acaba de começar, e há oito meses de campanha pela frente. Apesar de o nome de Sartori vir despontando, as pesquisas, ainda sem o nome dos candidatos dos partidos (que serão definidos nas primárias de junho), mostram a Frente Ampla na liderança, com 37% das intenções de voto, seguidas pelo partido Nacional, com 28%.

21 de fevereiro de 2019

POLÍTICAS DEMOCRÁTICAS VERSUS NEOLIBERAIS E POPULISTAS!

(José Emílio Graglia, 13/02/2019) A política ruim (nem antiga nem nova, ruim) perdeu as chaves do tesouro. A boa política (nem nova, nem velha, boa) deveria procurá-las. Em toda a América Latina, isso é inovar a política: encontrar ou reencontrar as chaves que abrem o tesouro da confiança perdida. Nada mais, nada menos. Para isso é necessário que as democracias formais sejam, também, verdadeiras democracias, que os cidadãos votem e, com base nisso, que as pessoas melhorem a qualidade de suas vidas.

Hoje, a grande maioria dos latino-americanos desconfia do Poder Executivo (Governo) e do Poder Legislativo (Congresso ou Parlamento). Tampouco confia no Poder Judiciário de seus respectivos países. Segundo dados do Latinobarómetro (2018), apenas 22% confiam no Governo e 21% confiam no Congresso ou no Parlamento, enquanto apenas 24% confiam no Poder Judiciário. Ao que foi dito sobre a imensa desconfiança nos três ramos do Estado, deve-se acrescentar que 79% dos latino-americanos percebem que seus respectivos países são governados por alguns grupos poderosos em benefício próprio.

Do nosso ponto de vista, na América Latina, a desconfiança dos cidadãos é um dos resultados do pêndulo entre o neoliberalismo e o populismo. Os países da América Latina oscilaram de um extremo para o outro, sem interrupção. Os defeitos dos governos neoliberais dão lugar aos populistas e, por sua vez, os excessos dos governos populistas dão lugar aos neoliberais. Aqueles ajustam as despesas porque esses esbanjaram os recursos e, paradoxalmente, esses desperdiçam os recursos porque aqueles ajustaram as despesas. Essa oscilação de fracassos e frustrações tem prejudicado muito a eficiência econômica e o bem-estar social de nossos países.

A crítica do neoliberalismo não vai contra a economia de mercado. A rigor, admite duas abordagens diferentes: a economia liberal de mercado e a economia social de mercado. Uma coisa é aceitar o mercado como uma forma de organização econômica da sociedade e outra, muito diferente, é atribuir sua configuração política e social às forças de oferta e demanda de bens e serviços. Não se trata de negá-los, mas de regulá-los legalmente, para que a liberdade econômica não cause deslegitimação política ou desigualdade social. O neoliberalismo professa a economia liberal de mercado. Do humanismo cristão, por outro lado, aderimos à economia social de mercado.

Da mesma forma, a crítica ao populismo não vai contra a noção de povo. Pelo contrário, é uma reivindicação do povo. Segundo se diz, o populismo exalta as pessoas. Mas, na verdade, as deprecia. O povo é uma comunidade organizada de pessoas que, com base em suas diferenças, alcançam coincidências. Pelo contrário, para o populismo, o povo é uma massa uniforme de indivíduos que seguem um líder, condenando o resto à categoria de anti-povo. Não há coincidências e diferenças: existem eles e os outros, seus inimigos. O populismo prega o confronto militante. O humanismo cristão, ao contrário, adere à busc a do bem comum.

O neoliberalismo que criticamos promove um Estado ausente, que desconsidera as necessidades sociais, e uma sociedade individualista, que elimina a comunidade. O pragmatismo neoliberal despreza ou deprecia os valores. O neoliberalismo acredita no derrame dos ricos como uma fórmula para o desenvolvimento e na eficiência privada como a solução para todos os problemas. O formalismo neoliberal limita a representação às formas de instituições representativas republicanas, é institucionalista. Finalmente, para os neoliberais, a democracia parte do mérito dos indivíduos e acaba aceitando as desigualdades sociais como algo natural, por não garantir a igualdade de oportunidades.

O populismo que criticamos propicia um Estado onipresente, que assume as necessidades sociais, e uma sociedade corporativista, que suprime a pessoa. O dogmatismo populista impõe seus valores. O populismo depende da assistência aos pobres como uma fórmula para o desenvolvimento e no designo messiânico como solução para todos os problemas. O personalismo populista restringe a representação à vontade do chefe, que por sua vez é voluntarista. Finalmente, para os populistas, a democracia parte dos desejos ou intenções do líder ou caudilho e acaba por admitir a obsequiosidade política como algo lógico, por não garantir a liberdade das divergências.

20 de fevereiro de 2019

É A MESA DE SEIS PERNAS!

(Sonia Racy – Direto da Fonte – Estado de SP, 16) Pergunta que não quer calar: por que os mercados estão tão entusiasmados, batendo recordes de alta e movimentação, mesmo ante a dramática situação fiscal e previdenciária brasileira?

Esse otimismo, segundo se apurou ontem, não se restringe à expectativa favorável com relação à melhora da economia e à aprovação da reforma da Previdência – mesmo que ela não seja ainda a ideal.

O fato se deve também à forte influência positiva provocada pelo cenário externo.

Entretanto, nem todos fazem parte dessa manada que estourou apostando no bom caminho da economia de maneira generosa, minimizando os possíveis percalços políticos pela frente.

Para alguns integrantes da área financeira faltam peças importantes de sustentação nesse quebra-cabeça.

Segundo relata reconhecido investidor – também perspicaz observador histórico dos movimentos econômicos e políticos no Brasil –, o governo de Jair Bolsonaro tem se sustentado em uma mesa de seis pernas.

Três delas, segundo ele, teriam solidez. As formadas pelos militares e pela equipes de Paulo Guedes e Moro – grupos cujos objetivos e rumos são fáceis de entender.

As outras três pernas ele considera “temerárias” e as divide entre três forças diferentes. A primeira, batizada de “grupo dos templários”, incluiria os ministros da Educação, do Itamaraty, mais Olavo de Carvalho e seguidores – cuja lógica o investidor considera precária.

A segunda, denominada “saco de gatos”, é constituída pela base de apoio ao governo no Congresso, cujo preparo considera fraco e sem o sentido de uma coligação real.

“Cada parlamentar tem indicado que vai trilhar o caminho que acha melhor”, observa. E a terceira, no seu raciocínio, se resume ao núcleo familiar de Bolsonaro, que certamente “nunca tentou fazer uma DR efetiva”.

A mesa fica de pé só com 3 perna? “Por ora sim,mas para dar passos mínimos,precisará das outras”.

19 de fevereiro de 2019

“SOBRE A IDENTIDADE INTERNACIONAL DO BRASIL”!

(Celso Lafer – Estado de S.Paulo, 17) O tema da identidade é parte da pauta da política externa dos países. Diz respeito à relação de continuidade e mudança, seja por razões internas ou externas, da sua ação diplomática. Busca esclarecer, como observa Karl W. Deutsch, em que medida as transformações da conduta externa mantêm o fio da continuidade que permite falar em identidade internacional.

No trato da identidade internacional do Brasil, tenho utilizado a lógica organizadora do que Renouvin e Duroselle denominam “forças profundas”. São explicativas dos elementos históricos da continuidade de nossa política externa desde a independência que mantêm uma coerência, de duração longa, não obstante as mudanças compreensíveis e as incoerências conjunturais, provenientes das contradições da vida e das ações políticas. É essa dimensão de coerência que esclarece, como mostrou Rubens Ricupero, o relevante papel da diplomacia na construção do Brasil, incluída a constituição mais pacífica da nossa escala continental, uma singularidade que nos diferencia de outros países de escala continental, como EUA e Rússia.

A política externa e a atividade diplomática têm como item permanente da agenda defender os interesses de um país no plano internacional. Identificar esses interesses para traduzir necessidades internas em possibilidades externas, diferenciando-os dos interesses e perspectivas dos demais atores que operam na vida internacional, é um exercício diário de representação da identidade internacional de um país.

Ortega y Gasset realçava que a perspectiva organiza a realidade. Nesse contexto, numa acepção mais abrangente, a política externa articula a expressão de um ponto de vista de um país sobre o mundo e seu funcionamento. No caso do Brasil, os fatores de persistência esclarecem a dimensão da continuidade deste ponto de vista que resulta da memória de uma tradição diplomática que o Itamaraty preserva.

San Tiago Dantas esclarecia que a continuidade é um requisito da política externa, observando que isto não acontece da mesma maneira em relação aos problemas administrativos do país, no âmbito dos quais mudanças de rumo não têm os mesmos inconvenientes do que ocorre em matéria de ação exterior do Estado: é fundamental “que a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos”.

Essa dimensão de continuidade, estabilidade e coerência está sendo posta em questão pelas manifestações diplomáticas do governo Bolsonaro e do seu chanceler, com impacto na credibilidade internacional do nosso país.

Observo, em primeiro lugar, a inserção da religião e seus desdobramentos na pauta da agenda diplomática. O Brasil não é um Estado confessional. É, desde a República, um Estado laico. A Constituição veda à União estabelecer cultos religiosos ou igrejas e manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política externa suscitar, de maneira inédita, o tema da religião na vida internacional, posto que contribui para as tensões da intolerância da geografia das paixões religiosas, inserindo o nosso país numa problemática em que não precisa se envolver. É uma visão equivocada do papel do campo dos valores na ação diplomática.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva do povo brasileiro, e cabe ao poder público defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, nos termos da Constituição (artigo 225). Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta todos os que vivem na Terra. A sustentabilidade é uma exigência de uma economia internacionalmente competitiva, necessária para o comércio internacional dos produtos, incluídos os agrícolas, já que o acesso a mercado de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental.

O Brasil tem desde a Rio-92 uma construtiva e ativa participação na agenda internacional do meio ambiente, que se tornou um ingrediente de continuidade e coerência da política externa brasileira. As manifestações de recuo nessa matéria do governo Bolsonaro comprometem a projeção do Brasil na sociedade internacional e põem em questão compromissos assumidos. Isso não atende aos interesses nacionais.

Vivemos num mundo interdependente, que se globaliza no ciberespaço da era digital, que acentua a porosidade das fronteiras e propaga tensões difusas em todas as esferas. Para lidar com os desafios inerentes a essas tensões pelo caminho da efetivação dos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil – entre eles a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (Constituição, artigo 4, IX) – é preciso participar do mundo e de suas instâncias intergovernamentais, no âmbito das quais o Brasil sempre atuou, atento à relevância do multilateralismo para os interesses da ação diplomática brasileira. Recuar dessa participação a partir da rejeição autocentrada do “globalismo” ignora, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo e não apenas estamos no mundo, mesmo em matéria de atualidade dos problemas dos refugiados e de correntes migratórias. Isso, aliás, contrasta com o princípio da prevalência dos direitos humanos e da abertura à concessão de asilo político, diretrizes constitucionais da política externa.

Em síntese, esses exemplos, entre muitos outros, são indicações de que as manifestações iniciais do governo Bolsonaro e do seu chanceler revelam uma dificuldade na capacidade de orientar o Brasil no mundo. É de esperar que no confronto com a realidade interna e externa essas manifestações sejam ajustadas para, sem rupturas inadequadas, levar em conta a coerência da política externa brasileira em linha com a sua identidade internacional.

Manifestações iniciais do governo Bolsonaro revelam dificuldade em orientar o País no mundo.

18 de fevereiro de 2019

“PALAVRAS DE SALVADOR ALLENDE PARA MADURO”!

(Ariel Dorfman foi assessor de imprensa e cultura do secretário-geral de Governo de Salvador Allende em 1973 – Folha de S.Paulo, 17)

Nicolás Maduro evoca frequentemente a figura incomparável de Salvador Allende, morto em Santiago do Chile em 1973 em um golpe apadrinhado pelos EUA.

Como alguém que trabalhou com o presidente socialista chileno nos últimos meses de seu governo, imagino assim os conselhos que Allende daria desde o outro lado da morte a seu colega venezuelano rebelde:

Senhor presidente Nicolás Maduro,

O senhor jurou que nunca será derrubado, como aconteceu comigo quando o general Pinochet liquidou a democracia em meu país e estabeleceu uma longa ditadura de 17 anos que deixou uma sequela de sangue, dor e injustiça.

Entendo seu desejo de enfatizar as semelhanças entre sua situação e a minha. Embora existam diferenças incômodas e constrangedoras entre nós, também há paralelos alarmantes.

Como na Venezuela hoje, o Chile revolucionário de 1973 estava fortemente dividido em dois campos beligerantes, com os líderes do Congresso chamando sediciosamente os militares a intervirem contra o governo constitucional, instigados pelos setores mais poderosos da sociedade, que não aceitavam que tentássemos construir uma sociedade que beneficiava a grande maioria dos cidadãos da pátria, em vez de interesses minoritários.

O experimento chileno —chegar ao socialismo por meios pacíficos— estava sob ataque por todos os lados, enfrentando problemas econômicos tremendos, se bem que nada que se compare ao desastre humanitário que assola a Venezuela hoje.

E, do mesmo modo como Nixon, Kissinger e as multinacionais ianques conspiraram contra o Chile em 1973, Trump, Pence, Pompeo e os consórcios petrolíferos insuflam a campanha contra a Venezuela, uma arrogante repetição das inúmeras intervenções de Washington promovidas incessantemente nos assuntos internos de países de todo o mundo.

Não obstante essas semelhanças entre o Chile em 1973 e a Venezuela em 2019, sinto que o senhor presta um desserviço à causa revolucionária ao equiparar-se comigo.

Durante toda minha vida fui defensor ardente da democracia: meu governo nunca restringiu a liberdade de reunião e de imprensa nem encarcerou opositores, se bem que alguns deles tivessem abusado dessa liberdade com atentados terroristas e mentiras descomunais, ajudados por milhões de dólares da CIA. E eu aceitei o resultado de cada eleição realizada durante meu mandato, sem levar em conta se me era favorável.

Uma disparidade adicional: o senhor conta com o apoio pródigo da Rússia e da China, enquanto eu, quando pedi ajuda à então União Soviética, ela não me emprestou um peso sequer (possivelmente uma revanche por eu ter condenado as invasões soviéticas da Hungria em 1956 e da Tchecoslováquia em 1968). Quanto à China, ela tinha reservas em relação a nossa revolução libertária, a ponto de Mao ter se recusado a romper relações com o regime de Pinochet.

Sua crise é complicada: ao mesmo tempo em que enfrenta a ameaça de uma revolta militar financiada e coordenada a partir do exterior, o senhor exibe tendências fortemente autoritárias com as quais eu definitivamente não me identifico.

O senhor tem razão ao rechaçar a interferência externa na Venezuela e tem razão ao denunciar as consequências funestas de as Forças Armadas se alçarem contra um governo constitucional. Mas erra ao subverter, com suas ações repressivas, a democracia que afirma estar protegendo e erra quando persegue cidadãos cujo patriotismo e amor pelos direitos humanos são indiscutíveis.

E quem pode questionar que seu governo exibe níveis preocupantes de corrupção e ineficiência? Preciso acrescentar que, para meus compatriotas que sofreram um exílio em massa sob Pinochet, é angustiante observar os vastos contingentes de seus próprios cidadãos que se sentem compelidos a deixar sua terra natal.

Como o senhor declara que sou seu herói e modelo, permita que lhe ofereça um conselho sobre como salvar a Venezuela de uma guerra civil e, ao mesmo tempo, conservar algumas das reformas bolivarianas que beneficiaram os setores miseráveis de seu país.

Cabe observar que muitos dos que hoje incitam um motim contra seu governo em nome do povo sofrido demonstraram no passado pouca preocupação com a situação de penúria e sofrimento dos venezuelanos mais carentes.

Quando o Chile estava paralisado por uma oposição disposta a tudo para me derrubar do poder, tomei a decisão de anunciar, em 11 de setembro de 1973, a convocação para um plebiscito para que o povo decidisse o rumo futuro da pátria. Se eu perdesse, renunciaria à Presidência e seriam realizadas novas eleições. Quando os golpistas tomaram conhecimento de minhas intenções —que surpresa!—, adiantaram o dia de seu golpe, provando que, longe de quererem proteger a democracia, desejavam destruí-la.

Não sei se o senhor está disposto a convocar um referendo como o que eu ia propor mais de 45 anos atrás no Chile, uma consulta que teria preservado tanto a democracia quanto a soberania nacional.

Além de poupar tanto sofrimento e sangue ao povo venezuelano, esse tipo de solução teria um efeito benéfico no resto da América Latina. Embora seja verdade que muitos dos problemas que assolam seu país se devam aos EUA, que vem boicotando e sabotando sua economia, como fez com a nossa, é inegável que sua má gestão do governo está prejudicando as forças progressistas do continente, onde o senhor é retratado como um bicho-papão, o homem do saco e do saque.

Vários movimentos de direita, incluindo na Colômbia, Argentina, Brasil e Chile, vêm conseguindo projetar-se como os únicos capazes de salvar suas pátrias de tornar-se “outra Venezuela”.

No Chile, essa campanha de terror chegou ao absurdo de a direita de origem pinochetista ter acusado a centro-esquerda que acabou com a ditadura de querer converter o país numa “Chilezuela”. Até Trump já afirmou, de modo ridículo e mal-intencionado, que apenas ele pode impedir que seu país caia no “socialismo” de Maduro.

Tais intrigas contribuíram para a ascensão de um populismo conservador e ultranacionalista que demoniza aqueles que lutam pelas transformações profundas das quais a nossa América continua a necessitar.

Não me surpreenderia ver que minha crença nas negociações e em uma revolução que valorizava os direitos de meus adversários levaram à minha morte e à queda do “caminho chileno ao socialismo”. Minha resposta desafiadora é que, agora, tantas décadas mais tarde, minha decisão de sacrificar minha vida pela democracia e por uma revolução pacífica é um exemplo leal e luminoso para os povos sedentos de liberdade e justiça social.

Tenho a esperança de que o senhor, ao refletir sobre minhas palavras, saiba encontrar uma saída desta crise que, além de prevenir uma conflagração fratricida, facilite a luta dos homens e mulheres de nossa Terra que buscam uma existência digna e decente, livre de miséria, opressão e mentiras, as grandes alamedas das quais falei quando me despedi deste mundo.

Desde o outro lado da morte e da história, eu o saúdo,

Salvador Allende

15 de fevereiro de 2019

COMO A CLEPTOCRACIA RUSSA CHEGOU À AMÉRICA (DEPOIS DA EUROPA)! E SEU INTERESSE NAS ELEIÇÕES DOS EUA! 

(Artigo na revista “THE ATLANTIC”) Por dois anos, no início dos anos 90, Richard Palmer serviu como chefe da CIA na embaixada dos Estados Unidos em Moscou. Os acontecimentos que se desenrolavam à sua volta – a dissolução da União Soviética e a ascensão da Rússia – eram tão caóticos, tão traumáticos e estimulantes que, em geral, escapavam à uma análise lúcida. Mas, com toda informação que passava por suas mãos, Palmer adquiriu uma compreensão cristalina da narrativa mais profunda daqueles tempos.

O resto do mundo queria gritar de alegria sobre a trajetória da história e como esta apontava na direção dos mercados livres e da democracia liberal. O relato de Palmer sobre os acontecimentos na Rússia, no entanto, não eram tão alegres. No outono de 1999, ele testemunhou perante um comitê do Congresso para dissuadir os membros do Congresso de seu otimismo e para avisá-los do que estava por vir.

O oficialismo americano, acreditava Palmer, julgara mal a Rússia. Washington depositou sua fé nas elites do novo regime; acreditou em suas palavras quando professaram seus compromissos com o capitalismo democrático. Mas Palmer tinha visto de perto como a crescente interconexão do mundo – e as finanças globais em particular – poderiam ser implantadas para o mal. Durante a Guerra Fria, a KGB havia desenvolvido uma compreensão especializada dos atalhos bancários do Ocidente, e seus chefes tornaram-se adeptos da distribuição de dinheiro a agentes no exterior. Essa proficiência facilitou a acumulação de novas fortunas. Nos últimos dias da URSS, Palmer observara seus antigos adversários na inteligência soviética despejar bilhões do tesouro em contas privadas em toda a Europa e nos EUA. Era um dos maiores assaltos da história.

Washington contou a si mesmo uma história reconfortante que minimizava a importância desse surto de cleptomania: Esses eram criminosos atípicos e aproveitadores desonestos correndo para explorar a fraqueza do novo Estado.

Os Estados Unidos, Palmer deixou claro, permitiram que se tornassem cúmplices dessa pilhagem. Sua avaliação foi implacável. O Ocidente poderia ter recusado esse dinheiro roubado; poderia ter estancado a saída para empresas-fantasma e paraísos fiscais. Em vez disso, os bancos ocidentais acenaram à pilhagem russa para seus cofres. A raiva de Palmer pretendia provocar um surto de introspecção – e alimentar a ansiedade pelo risco que a crescente cleptocracia representava para o próprio Ocidente. Afinal, os russos teriam um forte interesse em proteger seus ativos realocados. Eles iriam querer proteger essa riqueza de políticos americanos moralizadores que poderiam querer tomá-la. Dezoito anos antes do procurador especial Robert Mueller iniciar sua investigação sobre a interferência estrangeira nas eleições dos EUA, Palmer advertiu o Congresso sobre “doações políticas russas a políticos e partidos políticos dos EUA para obter influência”. O que estava em jogo poderia muito bem ser um contágio sistêmico: valores russos poderiam infectar e enfraquecer os sistemas de defesa moral da política e dos negócios americanos.

O colapso do comunismo nos outros estados pós-soviéticos, juntamente com a virada chinesa em direção ao capitalismo, só aumentaram as fortunas cleptocráticas que foram enviadas ao exterior por segurança e sigilo. Autoridades em todo o mundo sempre saquearam os cofres de seus países e acumularam subornos. Mas a globalização dos bancos fez com que a exportação de seu dinheiro ilícito fosse muito mais conveniente do que antes – o que, é claro, inspirou mais roubos. Segundo uma estimativa, mais de US $ 1 trilhão, agora, sai dos países em desenvolvimento a cada ano sob a forma de dinheiro lavado e impostos evadidos.

Como no caso russo, grande parte dessa riqueza saqueada chega aos Estados Unidos. Nova York, Los Angeles e Miami se juntaram a Londres como os destinos mais desejados do mundo para lavagem de dinheiro. Esse boom enriqueceu as elites americanas que o permitiram – e isso degradou os costumes políticos e sociais do país no processo. Enquanto todos os outros estavam anunciando um mundo globalista emergente que assumiria os melhores valores da América, Palmer vislumbrou o terrível risco do oposto: que os valores dos cleptocratas se tornariam próprios da América. Essa visão sombria está se tornando realidade.

O contágio se espalhou rapidamente, até de forma estável, em um país assombrado desde a sua fundação pelos perigos da corrupção. Nos meses seguintes ao testemunho de Palmer, o zeitgeist apontou na direção que ele pedia, pelo menos momentaneamente.

Nos dias após o colapso das Torres Gêmeas, o governo de George W. Bush vasculhou furiosamente Washington por ideias para serem colocadas no documento de 342 páginas que se tornaria o Ato Patriota. Se um banco se deparasse com dinheiro suspeito transferido do exterior, agora seria necessário relatar a transferência para o governo. Um banco poderia enfrentar acusações criminais por falhar em estabelecer salvaguardas suficientes contra o fluxo de dinheiro corrupto.

Muito do que Palmer insistiu virou, de repente, lei. Mas aninhado no Ato Patriota estava a obra de lobistas de outra indústria. Todos os distritos do Congresso no país têm propriedades imobiliárias, e os lobistas da área pediram isenção do monitoramento do Ato Patriota sobre transações internacionais duvidosas. E persuadiram o Congresso a conceder à indústria uma isenção temporária de ter que seguir a nova lei.

A isenção era uma brecha – e uma extraordinária oportunidade de crescimento para o mercado imobiliário de luxo. Apesar de toda a nova meticulosidade do sistema financeiro, estrangeiros ainda podiam comprar apartamentos de cobertura ou mansões anonimamente e com facilidade, escondendo-se atrás de empresas-fantasmas instaladas em estados como Delaware e Nevada. Grande parte do dinheiro que chegaram aos bancos antes do Ato Patriota se tornar lei agora era usado para comprar propriedades.

Com o tempo, a diferença entre as nobres intenções do Ato Patriota e a realidade suja do mercado imobiliário tornou-se ampla demais para ser ignorada. Em 2016, a administração de Barack Obama testou um programa para alinhar a indústria imobiliária com os bancos, obrigando os corretores a informar os compradores estrangeiros também. Mas então a presidência americana se revirou e um senhorio chegou ao poder. O sucessor de Obama gosta de vender condomínios para compradores estrangeiros anônimos – e pode ter se tornado dependente de seu dinheiro.

Em 2017, a Reuters examinou a venda das propriedades da Trump Organization na Flórida. Constatou-se que 77 das 2.044 unidades dos empreendimentos eram de propriedade de russos. Mas este é provavelmente um retrato incompleto. Mais de um terço das unidades foram vendidas para veículos corporativos, o que pode facilmente ocultar a identidade do verdadeiro proprietário.

O comportamento da elite americana também mudou com o tempo. Os membros das classes profissionais passaram competir para vender seus serviços aos cleptocratas. No curso dessa competição, eles atropelaram velhas proibições éticas, e a pressão aumentou para testar os limites da lei. Uma profissão como o Direito desenvolveu códigos éticos altamente desenvolvidos, mas esses códigos parecem ter recuado nos últimos anos. Mesmo as empresas de maior prestígio ficam preocupadas com a sobrevivência de seu modelo de negócios caro, que foi profundamente abalado pela crise financeira de 2008 e pelo corte de custos corporativo que se seguiu. Os impulsos gananciosos certamente sempre existiram no mundo dos “sapatos brancos”, mas o sentido da luta darwiniana e as normas de uma elite global corroeram os limites.

O conluio americano com a cleptocracia tem um custo terrível para o resto do mundo. Todo o dinheiro roubado, todos os impostos evadidos afundados em coberturas do Central Park e companhias de fachada de Nevada, poderiam de outra forma financiar a saúde e a infraestrutura. A roubalheira atropela as possibilidades de mercados viáveis e a democracia crível. Isso alimenta as suspeitas de que toda a ideia do capitalismo liberal é uma farsa hipócrita: enquanto o mundo é saqueado, os americanos hipócritas enriquecem com sua cumplicidade com os vigaristas.

Os Fundadores estavam preocupados que a venalidade se tornasse um procedimento padrão, e isso aconteceu. Muito antes de as suspeitas se acumularem sobre as lealdades de Donald Trump, grandes setores da elite americana – advogados, lobistas, corretores de imóveis, políticos em capitais estaduais que permitiram a criação de empresas-fantasmas – já haviam se provado servidores confiáveis de uma voraz plutocracia global. Richard Palmer estava certo: as elites saqueadoras da ex-União Soviética estavam longe de serem aproveitadoras desonestas. Elas auguraram um hábito cleptocrata que logo se tornaria generalizado. Uma amarga verdade sobre o escândalo da Rússia é que enquanto Vladimir Putin tentava influenciar a América, esta já se encontrava apontada na direção dele.

14 de fevereiro de 2019

“NÃO EXISTE MAIS UM RISCO À INTEGRIDADE TERRITORIAL DAS NAÇÕES ONDE O EI SE INSTALOU E GANHOU CORPO”!

(Editorial – Folha de SP, 13) Geram justificada celebração os relatos de que o último bastião do Estado Islâmico está prestes a capitular. Aproxima-se do fim um regime que impôs de forma brutal sua visão distorcida de islamismo após os insurgentes derrotarem forças sírias e iraquianas e autoproclamarem um califado, em 2014.

Segundo reportagem do jornal The New York Times, os combatentes restantes da facção terrorista concentram-se em uma pequena faixa de terra, equivalente a um bairro, no povoado sírio de Baghuz, na fronteira com o Iraque. Estão encurralados por tropas dos dois países e por uma milícia curda e árabe apoiada pelos EUA.

Não existe mais, portanto, um risco à integridade territorial das nações onde o EI se instalou e ganhou corpo. No auge de sua sinistra expansão, uma área do tamanho do estado de São Paulo ficou sob comando da organização, incluindo importantes cidades como Mossul, a segunda maior do Iraque.

A aniquilação em termos militares do infame califado traz alívio a milhares de pessoas forçadas a viver em um reino de terror, mas não elimina os tentáculos criados pela facção em várias partes do mundo. Não se pode desprezar seu poder de influência sobre muçulmanos radicais dispostos a praticar atentados no Ocidente.

Uma prova dessa capacidade de atração são as diversas nacionalidades de cidadãos que aderiram à milícia e agora fogem do cerco para tentar se salvar. Há alemães, franceses, britânicos, suecos, entre outros. Estima-se que no ápice até 40 mil homens, de cerca de cem países, juntaram-se ao EI.

Outro desafio é garantir a estabilidade local, uma vez consumada a rendição por completo dos militantes. Isso dependerá, em boa medida, de quando o governo americano vai retirar suas tropas da Síria, uma promessa de campanha de Donald Trump reforçada por ele no fim do ano passado.

A desmobilização está em suspenso, porém, por causa do conflito histórico entre as milícias curdas —aliadas dos americanos em solo sírio— e a vizinha Turquia, que as vê como grupo terrorista. A Casa Branca quer garantias de que os turcos não atacarão os curdos.

Como se nota, o Estado Islâmico, a despeito da iminente queda no front, ainda representa um considerável potencial de ameaça.

13 de fevereiro de 2019

ROMPEU-SE O ELO ENTRE GOVERNANTES E GOVERNADOS!

(The WorldPost, uma parceria entre o Instituto Berggruen e o Washington Post, 9 de fevereiro, 2019, por Nathan Gardels, Editor-Chefe)

Na semana passada o Instituto Berggruen recebeu o sociólogo espanhol Manuel Castells para um debate sobre o seu novo livro Ruptura: A Crise da Democracia Liberal. Castells argumenta que aquilo que testemunhamos hoje no mundo ocidental não é uma mudança normal de ciclos políticos, mas uma ruptura histórica da relação institucional entre governantes e governados. Por ora ele não consegue vislumbrar no horizonte nenhuma relação que possa substituir as antigas formas de representação, apenas fragmentos dos antigos partidos convencionais e populistas emergentes que lutam para colocar seu time no poder através do exaurido mecanismo de disputas eleitorais, cada vez mais desacreditado.

“Onde estão as novas instituições merecedoras de nossa confiança?”, perguntou o famoso acadêmico da sociedade em rede. Em vez disso, ele constata que os cidadãos estão agindo de maneira autônoma por meio das novas tecnologias. “Eles estão usando a capacidade de comunicação entre si, de deliberação e tomada de decisão em conjunto que hoje está à nossa disposição graças à ‘Galáxia da Internet’ e colocando a enorme riqueza de informações e conhecimento em práticas que auxiliam a gerir os nossos problemas”.

No entanto, como o neurocientista Antonio Damásio mencionou em uma pergunta, essas mesmas redes de participação social que desempenharam um papel fundamental na superação da antiga ordem e são agora a plataforma-padrão de autogovernança não são conduzidas primariamente pelo discurso racional, mas pelos mesmos impulsos emocionais que atuam nas redes neurais da mente, às quais elas estão agora conectadas. Elas são, de fato, extensões protéticas e amplificadoras da natureza humana. Onde reinam as emoções sem a mediação da razão, proliferam o medo, o preconceito, o ódio, a desinformação e o pensamento mágico.

Essa observação levou, por sua vez, a perguntas sobre bots e sobre se a interferência russa por meio das redes sociais teve realmente impacto nas eleições americanas de 2016. Castells considera que não. Se a antenna do receptor já estivesse aberta e fosse simpática à mensagem que se transmitia – quer fosse verdadeira, quer falsa – essas intervenções teriam impacto. Mas, se não, elas não teriam efeito. Poucas cabeças teriam mudado de ideia de um jeito ou de outro.

A influência sobre corações e mentes não vem tanto do conteúdo da informação, mas daquilo em que as pessoas estão dispostas a acreditar com base em seu aspecto meta-informacional. Sem o ressentimento acumulado contra as elites, as quais percebiam como afrontosas à sua dignidade, aqueles a quem Hillary Clinton chamou de “deploráveis” não teriam sido, logo de início, receptivos às mensagens negativas.

Por essa razão, Castells vê a histeria quanto à intromissão russa como distração em relação ao âmago da questão, como pode ser o caso com as próprias fake news. Nenhuma quantidade de policiamento da internet pode reparar o problema fundamental. Não são os fatos, mas a imagem que as pessoas têm do mundo e do lugar que nele ocupam que determina aquilo em que estão dispostas a acreditar. Não são ideias superiores ou informações melhores que irão sobrepujar os trolls. A disputa que interessa se dá em torno do poder das metáforas e das imagens, que são fortes o suficiente para manter as comunidades unidas – ou dilacerá-las.

Muitas pessoas tendem a apreender a realidade pelo que nos afeta metaforicamente. Compramos uma narrativa não tanto por contrabalançar argumentos, mas pela conexão emocional à imagem com a qual queremos ser associados, que confere prestígio, dignidade e identidade às nossas vidas e faz reluzir algum prestígio em nossa história. Como escreveu o filósofo Régis Debray: “É o simbólico que cria o vínculo social, não o inverso”.

O poder da associação metafórica através dos símbolos é óbvio na vida cotidiana: da loucura por iPhones na China (até recentemente) aos modismos dos adolescentes e às tatuagens. É evidente na maneira como os automóveis são comercializados. O Subaru é para famílias amáveis e calorosas ou para casais em contato com a natureza. O Tesla é para o “double green” – o rico com consciência ambiental. Uma picape “robusta” da Ford é para pessoas austeras, que não pertencem à elite e têm de trabalhar com suas próprias mãos.

As guerras culturais pela custódia das percepções na América contemporânea estão sendo travadas no nível da metáfora.

Numa época anterior, a visão vaga de Barack Obama sobre a “esperança” capturou a imagem de uma América diversificada que finalmente reconciliava-se consigo mesma. Mas isso serviu para consolidar um eleitorado de oposição que se sentia excluído dessa repactuação e alienado de sua narrativa. Como símbolo, o “muro” de Donald Trump, erguendo-se acima do turbilhão dos fatos, aponta para uma série de associações, de racismo e xenofobia, passando por incertezas físicas e econômicas até uma profunda aversão à classe cosmopolita que cultiva sentimentos liberais. Essa é a razão por que grande parte da oposição ao “muro” que fala razoavelmente sobre túneis, drones e procedimentos de asilo, embora esteja substancialmente correta, não toca no ponto principal.

É claro que, ao fim e ao cabo, as associações simbólicas só podem continuar a unir as comunidades se sua promessa não se desviar excessivamente da realidade. Se a lacuna for muito grande, o elo se rompe. Para conseguir entregar algo do que prometeu, uma governança sólida deve estar por trás do vínculo simbólico. Essa é a razão por que os fatos fidedignos e as instituições imparciais exigidos pelo discurso público racional são, em última instância, essenciais para alcançar o consenso de governo e evitar o suicídio de repúblicas.

Castells duvida que possamos retornar a essa possibilidade de consenso, pois o elo institucional entre governante e governado está terminantemente rompido. Somente a vasta estrutura de transmissão emocional das redes sociais permanece como espaço público relevante.

Ao final do seu livro, Castells sugere que abandonemos a tentativa de construir uma nova ordem e, em vez disso, nos dediquemos a “configurar um caos criativo em que aprendemos a fluir conforme a corrente da vida em vez de forçá-la a se moldar às burocracias e programá-la em algoritmos”. Em sua última linha: “Talvez aprender a viver no caos seja menos prejudicial do que se conformar à disciplina de mais uma ordem”.

Ruptura: a crise da democracia liberal

Manuel Castells, professor e catedrático de Tecnologia e Sociedade da Informação da Universidade da Carolina do Sul, professor emérito de sociologia na Universidade da Califórnia, Berkeley, e membro do St. John’s College, Cambridge – novembro de 2018, Polity, 176 páginas.

Descrição

A maioria dos cidadãos no mundo de hoje não confia em seus representantes políticos, nos partidos políticos tradicionais, nas instituições políticas estabelecidas nem em seus governos. Essa crise generalizada de legitimidade está por trás de uma série de mudanças dramáticas que ocorreram nos últimos tempos no cenário político global, como a inesperada eleição de Donald Trump, o Brexit, a extinção de partidos políticos tradicionais e a eleição de um outsider político na França, a transformação do sistema político na Espanha (incluindo o movimento de secessão na Catalunha), a ascensão da extrema direita na Europa e os desafios nacionalistas que ameaçam a União Europeia.

Neste livro curto, mas abrangente, Manuel Castells analisa cada um desses processos e examina algumas das causas potenciais da insatisfação das pessoas em relação às instituições da democracia liberal, incluindo os efeitos da globalização, o impacto da política midiática e da internet, o aumento da corrupção de políticos, o isolamento da classe política profissional em relação à sociedade civil e a crítica da ordem existente por novos movimentos sociais.

Também examina o impacto do terrorismo global e da guerra sobre a xenofobia e o racismo, que estimulam a irrupção de extremismo numa proporção crescente da população. O fato de que muitas dessas tendências estão presentes em contextos muito diferentes sugere que estamos testemunhando uma crise profunda do modelo de democracia que foi a pedra fundamental de estabilidade e civilidade no último meio século.

12 de fevereiro de 2019

PROSPERIDADE DE CIDADES ALEMÃS COM MENOS DE 50 MIL HABITANTES IMPEDE SURGIMENTO DE MOVIMENTOS POPULISTAS E RADICAIS, COMO OCORRE NA FRANÇA COM OS “COLETES AMARELOS”!

(The Economist/Estado de S.Paulo, 10) “É importante entender a mente de porcos e galinhas”, diz Bernd Meerpohl, enquanto exibe os produtos da sua empresa. A Big Dutchman projeta máquinas, software e equipamentos com nomes como EggFlorMaster e BigFarmNet para auxiliar os fazendeiros a extrair mais de seus animais. Essas inovações aumentaram suas vendas 27 vezes desde 1985 em valores reais, que chegaram a US$ 1,1 bilhão no ano passado.

O sucesso sugere que os moradores de Vechta, pequena cidade no noroeste da Alemanha, sede da empresa, encontram satisfação profissional sem sair de casa. Na vizinha Lohne, Tanja Sprehe, diretora de vendas digitais na Pöppelman, manufatura de plásticos, achava que não voltaria mais à região depois de construir uma carreira em Hamburgo. Mas as demandas da família a trouxeram de volta. Agora, ela tem um bom emprego em uma cidade pequena.

Enquanto as democracias no Ocidente se inquietam com áreas decadentes, queda da população e políticos radicais, Vechta, com 33 mil habitantes, oferece uma lição diferente. “Nosso problema é que não temos problemas”, diz o prefeito Helmut Gels.

A taxa de nascimento é alta para os padrões alemães e a cidade vem crescendo há décadas. Empresas familiares bem sucedidas, como a Big Dutchman e a Pöppelman, empregam gerações de moradores, formam centenas de aprendizes e outros milhares de trabalhadores são contratados por fornecedores.

A Pöppelman, com 2.100 empregados, e a Big Dutchman, com 900, são duas das “campeãs ocultas” da Alemanha, termo cunhado na década de 90 pelo acadêmico Hermann Simon para as várias e minúsculas empresas bem sucedidas.

Ao contrário de companhias de serviços de primeira linha, que se beneficiam da rede e dos talentos encontrados nas grandes cidades, as empresas de manufatura especializadas com frequência são encontradas em lugares dos quais jamais alguém ouviu falar: pelo menos dois terços delas estão em localidades com menos de 50 mil habitantes espalhadas pela Alemanha.

Seu sucesso explica o número alto e o lento declínio da mão de obra no setor de manufatura alemão. A Alemanha também é um país politicamente descentralizado, o que mantém a desigualdade regional sob controle, segundo Philip McCann, da Universidade de Sheffield. E, embora as pessoas criativas se aglomerem nas cidades, cientistas e engenheiros mantêm vivas as pequenas cidades em áreas ricas. “Posso ficar aqui minha vida toda”, diz Michael Fabich, jovem que trabalha em um supermercado.

A descentralização ameniza o descontentamento que tem perturbado alguns países vizinhos. Na França, a revolta dos “coletes amarelos” tem a ver com queixas das pequenas cidades contra as grandes, onde as oportunidades econômicas ficaram mais concentradas. Os coletes amarelos se sentem desprezados pelos vitoriosos da globalização, representados pela figura altiva e distante do presidente Emmanuel Macron.

A Alemanha ganhou mais do que perdeu com a globalização. Isso pode ser observado no espaço de logística da Big Dutchman, repleto de embalagens para serem enviadas para Senegal ou Chile. No entanto, regiões especializadas em produtos como cerâmica ou têxteis foram engolidas pelas importações baratas nos anos 90.

Em geral, é difícil fazer um paralelo da Alemanha com a França. Campeões ocultos criam empregos longe das cidades, limitando a fuga de cérebros. Os políticos locais se comprometem mais a responder às demandas dos eleitores do que presidentes “jupiterianos” (alcunha dada a Macron) em capitais distantes. Em áreas com dificuldade, o sistema contemplado na Constituição alemã, de transferências fiscais para os Estados, abranda os aspectos mais severos da globalização.

Jens Südekum, economista da Universidade Heinrich Heine, de Dusseldorf, calcula que, em 2010, tais pagamentos foram equivalentes a 12,4% da receita fiscal agregada da Alemanha. Cidades como Duisburg e Essen, no Vale do Ruhr, foram poupadas dos estragos que a desindustrialização causou em regiões do Meio-Oeste, nos EUA ou Pas-de-Calais, na França, hoje reduto do partido extremista de Marine Le Pen.

Áreas comparáveis da Alemanha não tiveram essa virada populista. Na verdade, os pesquisadores não encontram nenhuma correlação clara entre o apoio ao partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) e dificuldades econômicas.

O problema maior está na antiga Alemanha Oriental. Apesar do sucesso em setores isolados, como o de ótica, somente uma fração das chamadas “campeãs ocultas” se encontra no leste alemão. Depois da reunificação, a liquidação de indústrias, na maior parte para investidores ocidentais, deixou os alemães orientais com a sensação de que foram saqueados, sentimento que persiste até hoje. Por isso, partidos extremistas se saem melhor nos cinco Estados da parte oriental da Alemanha. Em Dresden e Chemnitz, por exemplo, ocorreram protestos violentos recentemente.

Além disso, as tendências que distinguem a Alemanha de outros países industrializados não são imutáveis. A automação vai produzir uma redução da mão de obra no setor de manufatura e as poderosas montadoras alemãs estão mal preparadas para a ruptura provocada pelos veículos elétricos e autônomos.

Apesar do sucesso das campeãs ocultas, a urbanização continua em ritmo acelerado, como indicam os preços altíssimos dos imóveis nas grandes cidades. Por isto, Vechta está mantendo sua população nativa, mas atrair novos talentos fica difícil quando sua concorrente é Berlim.

11 de fevereiro de 2019

ENTREVISTA DO PRESIDENTE DA CÂMARA, DEPUTADO RODRIGO MAIA, AO ESTADO DE S.PAULO, 10!

ESP: A saúde do presidente Jair Bolsonaro pode atrasar a reforma da Previdência?
RM: Não acho, porque, pelo prazo do encaminhamento da reforma, pelas previsões, o presidente já não vai estar mais no hospital. Então, ele pode tomar a decisão final sobre qual texto ele vai querer encaminhar.

ESP: A articulação política para aprovar a reforma fica prejudicada?
RM: Ninguém vai votar nada de Previdência daqui a duas semanas. Então, é importante que o Onyx (Lorenzoni, ministro da Casa Civil) vá organizando a base e, quando o presidente tiver condições, pelo menos dê o sinal de que aquilo que o Onyx organizou está “ok” para ele. Claro que a presença do presidente ajuda, mas não atrapalha nem atrasa.

ESP: Os líderes estão reclamando da falta de diálogo com os ministros.
RM: Não acho que a política esteja sendo surpreendida pela forma como o presidente organizou o primeiro escalão do governo. Não era isso que ele falava na campanha? Ele dizia que ia escolher quadros técnicos. Ninguém se surpreendeu com isso.

ESP: Na sua primeira entrevista, após a sua eleição, o senhor colocou em dúvida a capacidade do governo de reunir 308 votos para aprovar emenda constitucional com essa nova postura.
RM: Sempre me perguntavam se eu achava que ia ter voto ou não. Falei que eu não sei porque é uma forma nova de governar. Não quer dizer que não vai dar certo. Agora, tem de organizar. Até porque o presidente foi eleito, mas o Parlamento também foi eleito.

ESP: Até agora não deu certo…
RM: Não sei, ainda não teve nenhuma votação.

ESP: Mas tentaram influenciar na eleição para o comando da Câmara e não conseguiram…
RM: É. De alguma forma, o Onyx tentou influenciar. Criar uma candidatura que tivesse um alinhamento maior com a questão dos costumes, com ele. Não conseguiu. Mas nunca vi digital do presidente nesse processo. Só dos filhos dele (Bolsonaro) e publicamente.

ESP: O senhor vai ignorar Onyx como interlocutor do governo?
RM: Quem escolhe o interlocutor é o governo, e é o Onyx. Não quer dizer que eu não possa dialogar com o (Gustavo) Bebianno (ministro da SecretariaGeral da Presidência), com quem tenho uma relação hoje de muita confiança. Eu não vou ficar trabalhando da presidência da Câmara para derrubar ninguém. Agora, (eu e Onyx) vamos ter de reconstruir nossa relação de amizade de muitos anos.

ESP: O governo escolheu mal o líder na Câmara Major Vitor Hugo (PSL-GO)? Ele está sendo boicotado pelos partidos.
RM: “Sempre me perguntavam se eu achava que ia ter voto ou não (para aprovar uma emenda constitucional). Não sei, porque é uma forma nova de governar. Não quer dizer que não vai dar certo. Agora, tem de organizar.” “Acho que tem um quadro montado para 2022 em que eu não tenho espaço (para concorrer à Presidência). O próprio presidente da República, governadores (…) Então, cada um tem de saber o seu espaço.” Eu ouvi muita reclamação dos líderes sobre a forma como eles foram convidados para uma reunião (pelo WhatsApp). Porque a política não é uma relação de comando. Quando você convida líderes para uma reunião, você está convidando iguais. Eu só vi o convite, me pareceu minimamente polêmico.

ESP: Quando as comissões temáticas estarão instaladas?
RM: Em duas semanas. Não tem como atrasar. A Comissão de Constituição e Justiça já está consolidada que é do PSL. A Comissão de Finanças e Tributação, o PSL e o MDB querem. Tudo o que tem conflito tem de ser negociado. Tem 25 comissões, não é possível que a gente não consiga atender a todo mundo.

ESP: O ex-deputado Carlos Manato (PSL-ES), da equipe de Onyx, pediu ao senhor uma sala para despachar da Câmara.
RM: O Executivo fica no Executivo e o Legislativo fica no Legislativo. Já disse a ele que não vou dar. Eu vou ligar agora para o Onyx e falar: ‘Põe uma sala aí para o Parlamento que a gente quer ir comandar daí de dentro, discutindo com vocês suas decisões’. É uma coisa boba, não faz sentido isso.

ESP: O ministro Paulo Guedes (Economia) disse que o senhor vai ser o articulador político da reforma da Previdência. Como o senhor vê essa declaração?
RM: Acho que eu posso ajudar. Já tenho uma certa experiência no comando da Câmara, que me faz ter condições de ajudar, não estou preocupado com o título. Paulo Guedes é nosso líder na área econômica.

ESP: O senhor tem procurado governadores em busca de votos?
RM: Não é só arregimentar votos, você precisa organizar com os governadores qual é a pauta deles. Porque nenhum governador vai votar a Previdência só porque ela é importante. Quando você cria uma pauta de cinco itens, incluindo a Previdência, você vai dando condições para que esses governadores comecem a ajudar para a votação da reforma.

ESP: A Lei Kandir é um assunto de interesse dos Estados e o Tribunal de Contas da União pode dizer que o governo não precisa mais ressarcir os Estados.
RM: Se o TCU legislar, vai entrar em guerra com o Congresso. Vamos acabar com o poder do TCU, se eles fizerem uma lambança dessas. Isso não será aceito de forma alguma pelo Legislativo. Eles vão levar um troco grande. A gente tira o orçamento deles. Vão ficar sem orçamento até 2020. Vai ser coisa pesada, não tem brincadeira com esse negócio, não.

ESP: Que projeto o senhor vai colocar para votar para testar o tamanho da base do governo? O pacote do ministro Sérgio Moro pode ser esse termômetro?
RM: O próprio Moro já me disse que sabe que a Previdência é prioridade. O dele vai andar, e vamos votar a Previdência antes. O pacote anticrime do Moro não é econômico e não dá para testar com ele.

ESP: O senhor acha que as redes sociais vão influenciar as votações na Câmara?
RM: Os movimentos têm força quando eles têm apelo na sociedade. Acho que a questão do Renan (Calheiros) tinha esse apelo (o movimento Fora, Renan influenciou a derrota do emedebista na eleição para a presidência do Senado). Depende do tema.

ESP: Mas os deputados youtubers vão estar no plenário…
RM: Quando o youtuber vira deputado, ele começa a ser cobrado daqui a algum tempo sobre soluções. O seguidor dele vai querer saber como é que ele ajudou o Brasil a sair da crise e como fez para que esses temas fossem resolvidos.

ESP: Quando o senhor se emocionou ali no fim da eleição, foi exatamente por qual motivo?
RM: Essa pareceu a eleição mais fácil, mas foi a mais difícil. Foi uma construção que precisou ser feita com muito cuidado. Havia um movimento de mudança. Podia ter havido um movimento dos novos de não votar em quem estava renovando mandato. Não sabíamos.

ESP: Muita gente se sentiu traída pelo senhor neste processo, o PT, o PSB…
RM: O PT fez o acordo comigo de que eu traria primeiro o PSL e, depois, o PT. Na verdade, se alguém ali foi traído, fui eu. Eles vieram aqui em casa. Mas eu disse que eu ia trazer o PSL antes, porque não podia ser candidato de oposição. Eles falaram que não tinha problema nenhum. ‘Você traz o PSL e depois a gente vem.’ Então, se alguém traiu ali, foi o PT.

ESP: O senhor vai concorrer ao Planalto em 2022?
RM: Acho que tem um quadro montado para 2022 em que não tenho espaço para isso. O próprio presidente, governadores que são candidatos naturais e alguns dos meus aliados. Cada um tem de saber o seu espaço.

08 de fevereiro de 2019

E O DAY AFTER NA VENEZUELA? 

(Matias Spektor, professor de Relações Internacionais na FGV – Folha de S. Paulo, 07) Avança exitosa a coalizão internacional para isolar o chavismo e acelerar a mudança de regime na Venezuela, condição necessária para reverter a crise humanitária que consome o país.

Tal sucesso, entretanto, cria seus próprios problemas: no afã justificado de livrar o país da tirania, voltam à superfície velhos instintos intervencionistas.

Não me refiro a uma intervenção militar, hoje improvável. Antes, trata-se de algo mais sutil, mas não menos perverso.

É a ilusão segundo a qual, sem Nicolás Maduro, ficará desimpedido o caminho da restauração democrática. Essa fantasia mantém a ideia de que, trocando o grupo que comanda o Estado, se resolve a questão, de que, montando um pacote possante de ajuda externa, a população convergirá para um consenso nacional com celeridade.

Esse tipo de raciocínio desconta os problemas do “day after” e, por isso, deixa de planejar direito a sequência que se aproxima.

Ocorre que a população venezuelana rechaçará qualquer processo transitório bem-intencionado que seja ou pareça ser corrupto, manipulado ou imposto de fora. E é importante não se enganar: no dia que Maduro deixar o cargo não faltarão atores nacionais e estrangeiros querendo corromper, manipular e impor as suas preferências.

Por isso, planejar o “day after” é urgente, mesmo que seja impossível prever com precisão os desdobramentos da queda de Maduro.

O Brasil pode e deve contribuir com essa “ética da prudência”. Foi o que fizemos há 20 anos, quando forçamos a mão para preservar a democracia no Paraguai.

É o que defendemos há poucos anos quando a intervenção humanitária virou moda e alertamos para a necessidade de mitigar os danos embutidos em qualquer processo de ingerência externa na vida de um país.

Além disso, temos na Venezuela responsabilidades especiais. Não só o Estado brasileiro ajudou a consolidar a força da máfia chavista no poder mas também a crise venezuelana afeta a paz e a estabilidade de nosso entorno e dá vazão ao crime organizado que opera para criar um narcoestado em nossa fronteira.

A melhor maneira de honrar essa responsabilidade especial é zelar pelo bom planejamento do que acontecerá no dia após a queda.

A participação brasileira em qualquer mudança de regime somente será justa se contribuir para ajudar a população afetada e, no processo, conseguir evitar um novo ciclo de violência. Apostar todas as fichas em derrubar Maduro sem pensar no passo seguinte pode deixar um rastro de destruição.

Se vamos embarcar na empreitada valiosa de restaurar a Venezuela, temos de imaginar a sequência às claras, com os pés bem plantados no chão.

07 de fevereiro de 2019

A PRESENÇA AFIRMATIVA DO PAÍS NÃO DEVE E NÃO PODE SE COMPROMETER POR POLÍTICAS DE OCASIÃO!

(Luiz Werneck Vianna – O Estado de S.Paulo, 03) Tempos sombrios os que vivemos, as portas do inferno se abrem diante do nosso olhar descuidado para os perigos a que estamos expostos com uma guerra civil rondando nossa vizinha Venezuela. A dualidade de poder, como registram os clássicos da teoria política, dificilmente suporta situações de equilíbrio e tende a desatar conflitos em que um dos polos envolvidos procura eliminar o seu rival, ou por uma solução de guerra civil, ou induzindo a erosão completa das suas bases de sustentação, favorecendo, no melhor dos casos, a intervenção da política em favor dos setores sociais que se demonstrarem hegemônicos.

O caso venezuelano, em que um grupo opositor ao governo consagrou nas ruas um presidente da República, negando legitimidade ao que está no exercício do poder, conhece a particularidade de que o poder rejeitado de Nicolás Maduro por movimentos sociais e vários partidos políticos em grandes manifestações conta com o apoio de instituições estatais, fundamentalmente do aparato militar, até então coeso na defesa do atual governo. Das duas, uma: ou a oposição – hoje amparada por governos poderosos da região, como, entre outros, o americano, o brasileiro, o argentino, e até de países poderosos europeus, num revival dos tempos coloniais – tem sucesso em abalar de tal forma o governo Maduro que o leve à renúncia; ou, alternativamente, apela ao recurso de uma intervenção armada dos seus aliados internacionais, entre os quais o Brasil, a fim de resolver suas questões internas.

Na hipótese de o governo brasileiro optar pela via tresloucada da intervenção militar, diante de uma cerrada defesa militar da Venezuela do seu governo e seu território, vai para a lata do lixo uma tradição centenária da nossa política externa, inaugurada pelo barão do Rio Branco – não por acaso, nome de avenidas urbanas nas principais capitais do País –, de conduzir as relações internacionais em paz, por meio de soluções negociadas, empenhada historicamente, nas palavras de Rubens Ricupero em seu monumental A Diplomacia na Construção do Brasil, em ver nosso país “reconhecido como força construtiva de moderação e equilíbrio a serviço da criação de um sistema internacional mais democrático e igualitário, mais equilibrado e pacífico” (Versal, 2017, página 31).

Tradições nacionais enraizadas como as da nossa política externa não se deixam cancelar por atos de vontade, elas conformam a nossa segunda pele, embora estejam em risco sob a condução do atual chanceler, que pretende conduzi-la com o espírito de cruzada do que entende, por questões metafísicas, ser uma luta do bem contra o mal. Não se pode afastar a possibilidade de que nuestra America, este extremo Ocidente, nas palavras do cientista político francês Alain Rouquié, seja arrastada, à falta da presença de paz e de uma política de negociação nos conflitos da região que o Brasil sempre representou, seja deslocada para o Oriente político por políticas desastradas que nos conduzam à guerra.

Nesse caso infeliz, a ressurgência da guerra fria dos anos 1950, já em curso, encontraria seu novo ponto quente na América Latina, como se faz indicar na forte contraposição entre Estados Unidos, Rússia e China e seus aliados sobre a questão da Venezuela.

A entrada em cena de países europeus, como Espanha, Alemanha, Reino Unido, França e Portugal, ao apresentarem um ultimato ao governo de Maduro para que convoque novas eleições presidenciais no prazo de oito dias, sob pena de reconhecerem o governo do seu opositor Juan Guaidó, dramatiza ainda mais o conflito venezuelano, que assim escala definitivamente da dimensão regional para a mundial. Ignorado esse ultimato, uma guerra civil com participação de forças externas pode escapar de cálculos de gabinete para se tornar possível.

Uma vez que ainda estamos no terreno das especulações, digamos que Nicolás Maduro queira emular – e tenha estofo pessoal para tanto – o destino trágico de Salvador Allende, e, se for o caso, defender seu governo de armas na mão, vindo a ser eliminado fisicamente. Sua remoção do governo, distante de uma operação de precisão cirúrgica, pode precipitar uma guerra civil com evidente potencial para se expandir ao longo das suas fronteiras nacionais, entre as quais a brasileira.

Essa possibilidade terrificante, que não é de laboratório, ainda pode ser afastada com o pronto retorno da política externa brasileira ao seu leito historicamente comprovado pela experiência acumulada dos seus estadistas. Se as palavras ainda valem, o fato de a advertência de que devemos ser fiéis às nossas tradições de não intervenção na política dos países vizinhos ter vindo do vice-presidente da República, o general Hamilton Mourão, e não dos próceres da nossa política externa, acende um ponto de luz a ser estimulado.

Quando vista comparativamente no cenário do subcontinente, a formação do nosso Estado e da sua política é a mais robusta confirmação do gênio político dos próceres que estabeleceram seus fundamentos. O caudilhismo, tão presente na política dos nossos vizinhos, não encontrou aqui lugar propício e, sobretudo, realizamos a obra-prima da unidade territorial, ao contrário da balcanização dos países hispano-americanos. Soubemos ainda preservar as instituições políticas comprometidas com os ideais civilizatórios declarados pela nossa primeira Constituição, sob inspiração do estadista José Bonifácio.

Com essas credenciais fomos reconhecidos como capazes de mediação nos conflitos regionais, com ênfase nas negociações políticas em favor de soluções pacíficas. A presença afirmativa do Brasil, garante de equilíbrio no subcontinente, não deve e não pode se comprometer por políticas de ocasião que transfiram sua soberania a potências externas a nós, sejam quais forem, em suas disputas geopolíticas e econômicas. Para ficar com palavras da moda, o Brasil acima de tudo.

 

06 de fevereiro de 2019

A ASCENSÃO IMPREVISÍVEL DA CHINA!

(Artigo de Daniel Blumenthal, diretor de Estudos Asiáticos no American Enterprise Institute. Entre 2001 e 2004 foi o diretor sênior para China, Taiwan e Mongólia do Departamento de Estado Americano)

Desde o fim da Guerra Fria, Pequim vê os Estados Unidos como seu principal rival geopolítico, mas o governo de Washington só recentemente despertou para essa competição estratégica. Mas à medida que os observadores americanos começam a ver as ambições da China com mais clareza, eles também começaram a diagnosticar erroneamente os desafios que representam. Cientistas políticos estão discutindo a “teoria da transição de poder” e a “armadilha de Tucídides”, como se a China estivesse prestes a eclipsar os Estados Unidos em riqueza e poder, deslocando-os no cenário mundial. Existem dois problemas contraditórios com essa visão.

A primeira é que não é assim que os próprios chineses entendem sua ascensão. Quando o presidente chinês, Xi Jinping, pede que os chineses realizem o “sonho chinês de rejuvenescimento nacional”, ele está articulando a crença de que a China está simplesmente reivindicando sua importância política e cultural natural. A China não está, como já foi dito da Alemanha Imperial depois de sua unificação, “buscando seu lugar ao sol”. Em vez disso, está retomando seu lugar de direito como o sol.

A segunda é que é a questão em aberto se a China alcançará o rejuvenescimento diante de uma economia aparentemente estagnando e de um facciosismo partidário. Xi é mais poderoso que seus antecessores, mas seu domínio também é mais frágil. O Partido Comunista Chinês (PCC) enfrenta há tempos uma crise de legitimidade, mas a transformação da China em um estado policial de alta tecnologia pode acelerar essa crise. Esses fatores se combinam para tornar a China mais perigosa no curto prazo, mas também menos competitiva a longo prazo. Isso significa que a República Popular da China percebe uma oportunidade de “grande renovação”, mesmo que seja menos poderosa do que se esperava.

Xi pode desacelerar ainda mais o crescimento da China. Ele acelerou uma mudança política na China que focou mais na “Manutenção da Estabilidade” (“WeiWen”) e menos no crescimento. A mudança de “reforma e abertura” para “manutenção da estabilidade” é anterior a Xi. Tudo começou quando Jiang Zemin e Zhu Rongji, sucessores de Deng Xiaoping, terminaram o trabalho de reformar a economia e garantir a adesão da China à Organização Mundial do Comércio em 2001. Seus sucessores, Hu Jintao e Wen Jiabao, não suportaram os ataques à reforma e à abertura da Nova Esquerda – uma coalizão de marxistas não reconstruídos e conservadores do PCC – e Hu começou a reverter reformas econômicas chave. Isso permitiu que o setor estatal reafirmasse seu domínio sobre a economia chinesa.

O boom no início dos anos 2000 fez parecer que a China estava inexoravelmente ascendente. Ela contava com uma força de trabalho massiva, um substancial investimento de capital e grandes empresas estatais vasculhando a terra em busca de recursos e inundando os mercados ocidentais com produtos chineses. O que muitos observadores não perceberam na época, no entanto, foi o acúmulo substancial de dívidas da China, em grande parte devido a empréstimos ruins e investimentos não lucrativos. Isso tornou a economia mais dependente do crédito interno para financiar o investimento e o consumo estrangeiro para comprar os bens produzidos pelo investimento excessivo e mal alocado.

O novo modelo econômico da China de superinvestimento financiado pela dívida foi agravado pela crise financeira de 2008. Na época, a maioria dos analistas americanos acreditava que a China estava pronta para ultrapassar os EUA. Mas esses não perceberam quão em pânico a China estava durante a crise: seus mercados externos secaram, então se voltaram para o crédito interno para estimular o crescimento. A China acumulou ainda mais dívidas através de um pacote de estímulo massivo. A experiência parece ter convencido os líderes chineses de que o tempo não estava mais do lado deles e de que eles precisavam obter ganhos rápidos. A partir da crise financeira, a assertividade da China refletiu não uma confiança em seu destino, mas sim uma insegurança básica. A vigorosa afirmação da China das reivindicações territoriais cresceu a partir de seus problemas econômicos, da desintegração política e da implementação do amplo regime de manutenção da estabilidade.

Xi não apenas herdou uma economia enfraquecida, mas também uma elite política fragmentada. Enquanto a sucessão de Hu Jintao estava se desdobrando em 2012, o PCC enfrentou uma de suas maiores crises políticas. A resposta de Xi à dupla crise econômica e política foi uma feroz campanha anticorrupção destinada a expulsar os quadros de maneira invisível desde Mao Tse-Tung. A organização desta campanha fortalece o WeiWen. Ele transformou sua campanha anticorrupção em uma ferramenta adicional de controle social e político. Ele foi muito além de apenas mirar em quadros e empresários corruptos e pediu a “limpeza completa de três estilos de trabalho indesejáveis – formalismo, burocratismo e extravagância”.

Os novos arranjos políticos e institucionais tornam muito difícil para a China retornar às reformas através do mercado. Reformas exigem menos controle sobre o fluxo de informações, ideias, pessoas e capital. Mudanças no sistema de avaliação de quadros também são fundamentais; se os quadros são avaliados com base na manutenção da estabilidade, em detrimento das metas de alto crescimento, há menos incentivos para a reforma do mercado.

Essas políticas não são o trabalho de um florescente Partido Comunista Chinês. Muito pelo contrário. O partido parece se sentir mais sitiado e ameaçado do que em qualquer outro momento desde o episódia da Praça Tiananmen. Xi efetivamente assumiu os tribunais, a polícia e todos os para-militares internos e secretos e outras agências de controle interno. Não há dúvida de que ele fez inimigos poderosos entre as elites que estão prontos para derrubá-lo caso a oportunidade apareça.

Apesar do enfraquecimento da economia chinesa e dos crescentes problemas políticos, em 2012 Xi afirmou que o país estava entrando em um “novo horizonte para a grande renovação da nação chinesa”. O discurso de Xi colocou o PCC firmemente na história da civilização chinesa de 5.000 anos e estabeleceu seu objetivo é continuar a luta pela grande renovação da China após a queda do Império Qing. O PCC sempre teve problemas para lidar com o passado imperial da China, que geralmente era governado por uma ordem ética e política confucionista. Mao, por exemplo, liderou uma revolução em parte contra o feudalismo dessa ordem passada. Enquanto Xi não abandonou as táticas maoístas, ele descartou essa interpretação da história. Em vez disso, ele apresentou o PCC não como revolucionário, mas sim como parte da longa e contínua história de uma China que fez “contribuições indeléveis para o progresso da civilização humana”. Xi está, portanto, mais disposto do que seus antecessores a destacar a centralidade geopolítica natural da China.

A aspiração principal de Xi a esse respeito é a Iniciativa “Um Cinturão, Uma Rota (ICR). O principal objetivo do ICR é expandir as redes políticas e econômicas globais chinesas e assegurar uma posição mais ativa na “governança global” sem esperar que o Ocidente dê à China mais papéis e responsabilidades nas instituições existentes.

Como parte de seu esforço para vender a renovação, Xi tem se esforçado para recuperar as posses anteriores da dinastia Qing e expandir suas reivindicações marítimas para garantir as principais linhas de fornecimento. Xi construiu ilhotas, militarizou o Mar do Sul da China e manteve a pressão sobre o Japão no Mar da China Oriental.

O grande legado geopolítico de Xi e Hu será o de que eles dirigiram a China, um império continental, cujos mapas atuais parecem muito semelhantes aos dos Qing, para se voltarem para o mar. A China tem uma área de 3.700.000 milhas quadradas e tem 14 fronteiras terrestres – mais do que qualquer outro país – inclusive com a Rússia, Índia, Vietnã e Coréia, todos inimigos militares no século XX. Dada a manutenção de seus problemas no oeste, a virada da China para o mar pode vir a ser tão devastadora para o mundo quanto a decisão da Alemanha imperial de entrar em uma competição naval com a Inglaterra. Uma China decadente poderia apressar este processo por várias razões, incluindo seu desejo de reconstruir a legitimidade nacional.

À medida que a economia da China desacelera e suas políticas se consolidam em torno de um novo estado policial de alta tecnologia, o partido não pode sustentar todas essas ambições. Os esforços do WeiWen e do combate à corrupção esgotarão a burocracia à medida que o partido faz o mesmo. E Washington pode tornar muito difícil para um império continental ter sucesso no mar. Além disso, embora a abordagem política de Xi possa ter lidado com a crise de curto prazo, ela agravou os riscos políticos da China no longo prazo. Xi eliminou as reformas institucionais de Deng, que mantiveram alguma estabilidade no sistema de governança do PCC.

Enquanto legisladores e acadêmicos ficam impressionados com o que a China realizou desde 1978, eles também devem continuar a examinar o funcionamento interno do sistema em busca de sinais de problemas à frente.

A China hoje compensa a ausência de princípios ou ideologias políticas atraentes criando um novo império do medo, e mostrando apelos cada vez mais estridentes a um nacionalismo imperialista. Isso não quer dizer que a China entrará em colapso, mas Xi mudou a dinâmica interna da nação. O resultado é um curso muito menos previsível para o Império do Centro do que as teorias materialistas da ciência política poderiam prever.

 

05 de fevereiro de 2019

DEPUTADO RODRIGO MAIA, PRESIDENTE DA CÂMARA, AVALIA O QUADRO POLÍTICO PARLAMENTAR! ENTREVISTA À FOLHA DE S. PAULO – 04/02/2019!

FSP: O DEM ficou com o comando de Câmara e Senado, mesmo não tendo as maiores bancadas. O que significa isso para o partido?
RM: O DEM já tinha a presidência da Câmara, então ficou mais fácil de organizar essa eleição. No Senado, é mais fácil de falar, o que aconteceu é que um sentimento de que não era o melhor momento para o Renan [Calheiros (MDB-AL)] somado a erros de alguns candidatos que tinham potencial em tese maior que o Davi [Alcolumbre (DEM-AP)], acabaram concentrando os votos nele. O Davi construiu isso com apoio do governo e com as próprias energias, porque de fato o DEM não podia trabalhar para duas candidaturas.

FSP: O DEM à frente das duas Casas impõe um ritmo do partido independente do governo ou faz a sigla ser um alicerce do Planalto?
RM: Não somos linha auxiliar do governo nem do partido do governo. O grande desafio do DEM vai ser a capacidade de compreender que a construção da presidência de um partido que não é o majoritário é sempre coletiva. Você não é o presidente que vai defender os interesses do DEM, tem que defender a agenda de todos os partidos. É um momento de mudança, um quadro pulverizado, e ninguém consegue ter a hegemonia que o MDB teve no passado no Senado.

FSP: Com a derrota, o sr. acha que o Renan Calheiros atuará para atrapalhar a votação da reforma da Previdência?
RM: Eu não acredito que um político com a experiência e história do Renan vá fazer algum movimento no curto prazo que sinalize uma revanche, não acho que é do estilo dele… Mas o governo vai ter que saber construir pontes com ele.

FSP: O sr. defendeu o voto secreto nas eleições do Senado. Acha que o fato de os senadores terem aberto o voto cria precedente perigoso?
RM: A gente tem que tomar muito cuidado, porque o voto secreto é a garantia do eleitor. O voto secreto não defende o conchavo, como muitos acham.

FSP: O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), articulou contra o sr., mas a favor do Davi. O governo venceu ou perdeu na eleição do Congresso?
RM: Eu acho que o Onyx tinha uma outra formatação, eu de fato não apoiei o Bolsonaro e acho que no primeiro momento o governo queria a construção de um nome que tivesse apoiado. Era legítimo isso, mas o governo não interveio como poderia porque senão tinha viabilizado a candidatura do João Campos [PRB-GO], do Alceu [Moreira (MDB-RS)] ou do Capitão Augusto [PR-SP].

FSP: Não interveio porque não quis ou por inabilidade da articulação do Onyx?
RM: O Bolsonaro não quis dar os instrumentos [a ele] para isso. Quando o Bolsonaro pega um ministério e entrega a chave para o ministro nomear os auxiliares, ele tira as condições de construir uma maioria no formato antigo.

FSP: Mas dado que o chefe da Casa Civil atuou contra o sr., como fica a relação com o Planalto?
RM: Não tem problema nenhum a relação com o Planalto, nem com o Onyx nem com ninguém.

FSP: O sr. não tem boa relação com o Onyx.
RM: Tive a vida inteira. Tive um conflito que eu nem considero conflito nas [votação das] 10 Medidas [Contra a Corrupção, em 2016], em que o relatório dele acabou sendo derrotado, não por um comando meu para derrotá-lo, porque eu não tinha 310 votos. Fora isso, sempre tive relação boa, sempre foi meu amigo.

FSP: Mas quem será o seu canal de diálogo?
RM: Quem escolhe o canal de dialogo é o presidente da República, não eu.

FSP: É possível votar a reforma da Previdência nas duas Casas até julho, como o governo quer?
RM: É, até julho é. Assim, tem que construir [a maioria]… eu não conheço ainda o ambiente do plenário.

FSP: O sr. fala em construção coletiva para o texto da reforma. Onyx diz que já está pronto. Vai haver muita mudança da proposta original para a que chegar ao plenário?
RM: Isso é matemática, não deve ter muita equação diferente do que os governadores estão pensando. Mas, se você não incluí-los nesse debate, vai ter mais dificuldade para aprovar. Eles estão vivendo o mesmo drama que o governo federal, até pior.

FSP: O governo pensava na possibilidade de fazer uma emenda e colocar o texto para votação direto no plenário. Como o sr. enxerga isso?
RM: Eu acho que uma PEC ser apensada sem passar pela CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] me parece próximo do impossível. Depois, ou a gente vai construir coisa pactuada com governadores ou não será uma votação fácil, ter os 308 votos. Estamos em um momento que todos compreenderam que vai ter uma ruptura definitiva da política se esse país não voltar a crescer. Então não dá para errar o tiro da Previdência.

FSP: O sr. foi eleito com apoio de parte da esquerda —PDT e PC do B. Como vai tratar a agenda conservadora de costumes do governo?
RM: Depois que superarmos a agenda econômica, vamos discutir o que fazer com essa agenda de costumes. Tem deputados que foram eleitos para essa agenda de costumes [conservadora], como alguns deputados de esquerda também foram eleitos para uma agenda mais liberal nos costumes, mas acho que a Câmara não deve ser um ambiente de radicalismo, a gente tem que tentar ter uma pauta que construa com equilíbrio as agendas prioritárias do Brasil e eu enxergo, a curto prazo, que a agenda prioritária é a reforma do Estado.

FSP: O sr. vai barrar o projeto da Escola sem Partido?
RM: Quem vai barrar é o STF [Supremo Tribunal Federal], não eu. Quem é a favor da Escola sem Partido tem que tomar cuidado porque, na hora que começar a tramitar no Congresso, o Supremo vai derrubar, vai declarar a inconstitucionalidade.

FSP: O sr. vai evitar que essas votações polêmicas cheguem ao plenário?
RM: Não sou contra que a Câmara faça debate. Uma coisa é o debate em comissão, outra é plenário. Não sei se jogar esses temas dentro do plenário ajuda um país que precisa, com urgência, ser reformado. Você acaba gerando relações de atrito entre base e oposição que vai dificultar votar as matérias econômicas no plenário. Você não pode ficar gerando um ambiente de campo de guerra no plenário porque precisa de um ambiente mais distensionado para que tenha as condições de trazer governadores do Nordeste, de oposição, para ajudar nesse diálogo [das pautas econômicas]. Se ficar estressando o plenário antes da Previdência, o ambiente para votá-la vai ser muito precário.

FSP: O sr. acha que polarização da política e sociedade que vimos na eleição continua ainda hoje?
RM: Hoje, antes de o Congresso começar a trabalhar, está mais calmo. Mas a gente não sabe como será o plenário.

FSP: Técnicos da Câmara dizem que os deputados novos da base devem usar mais tempo de fala do que as anteriores, o que poderia atrasar as votações.
RM: É como se fosse um jogo de futebol, né? Se o Flamengo vai jogar contra o meu time, eu vou jogar também. Alguns como são pessoas que vêm desses movimentos de redes sociais e precisam estar lá sempre vão ter o embate com a Maria do Rosário [PT-RS], com a [Erika] Kokay [PT-DF], ou o Jean Wyllys [PSOL-RJ] —que agora saiu.

FSP: Como o sr. viu a renúncia do deputado Jean Wyllys?
RM: Momento ruim da política, né? O Jean Wyllys representava uma parte da sociedade que precisa de voz no Parlamento. E a partir do momento que ele considera que o Estado não tem condição de garantir a preservação da vida dele e da família, eu acho que é uma sinalização perigosa para a democracia brasileira.

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04 de fevereiro de 2019

“O RIO ENTRE A BELEZA E O CAOS”!

(Luiz Fernando Janot – Globo, 02) As cidades costumam refletir em seu território as sociedades estratificadas ao longo da sua história. A qualidade do espaço urbano está intimamente ligada aos interesses do poder público e da sociedade. Na verdade, nas cidades brasileiras essa relação nunca foi harmoniosa. Ainda hoje se vê presente em nossas cidades o estigma da “casagrande e senzala”.

As favelas que se espalham pelos morros e outras áreas devolutas revelam o abismo que distingue e separa as nossas classes sociais. Os barracões de madeira com tetos de zinco, conhecidos como tradição do nosso país, não passavam de uma visão romantizada da perversa divisão social e da falta de recursos de uma parte significativa da população.

Há que se reconhecer que os espaços urbanos são extensões naturais da moradia, e, como tal, acolhem formas diversificadas de expressão cultural. Quando a habitação não oferece, de fato, condições adequadas para abrigar com dignidade os seus moradores, certamente, o conjunto delas formará um quadro de pobreza no contexto urbano.

É verdade que algumas políticas habitacionais foram criadas ao longo do tempo para atender às camadas mais pobres da população. No entanto, os conjuntos habitacionais correspondentes, em sua grande maioria, foram construídos em áreas periféricas desprovidas de infraestrutura urbana. Em decorrência, os moradores se viram obrigados a enfrentar, diariamente e por horas a fio, longos trajetos até os seus locais de trabalho. Para muitos, esse sacrifício deixou de valer a pena e, aos poucos, uma parte deles voltou a ocupar os morros e outras áreas disponíveis. O Rio é paradigma neste tipo de ocupação informal do solo. O desinteresse do poder público em atuar urbanisticamente nas favelas e dotá-las de equipamentos sociais e de infraestrutura vem facilitando o domínio desses territórios pelas facções do tráfico de drogas e pelas poderosas milícias. Aos poucos, essas forças paramilitares passaram a controlar o comércio ilegal de gás, água, luz, internet, mototáxis, vans piratas e outros serviços comunitários. Hoje, os seus negócios se expandem através da construção irregular de prédios nas próprias comunidades e em terrenos grilados nas áreas de expansão da cidade. Enquanto isso, o poder público permanece impassível frente ao crescimento das favelas e da expansão informal do tecido urbano. Diante desse quadro preocupante, indaga-se por que nenhum projeto de urbanização foi apresentado pela prefeitura para minimizar o sacrifício dessa população espoliada por bandidos? E o que levou o novo governador a não incluir entre as suas metas um plano para impedir a atuação dessas milícias? Felizmente, o Ministério Público tomou a iniciativa de investigar a ação criminosa dos milicianos. Vamos acompanhar os desdobramentos para ver o alcance desse processo.

De qualquer forma, cabe um alerta: a permanecer do jeito que está, teremos em breve uma cidade sitiada pela violência, pela miséria e por guetos de pobreza. O poder público não pode continuar indiferente à vida nas favelas e muito menos ao crescimento e ocupação descontrolada da cidade. Estejam certos de que, para o Rio continuar sendo admirado por todos, será preciso recuperar a urbanidade perdida. Entre a beleza e o caos, não há como fazer a escolha errada. Como os mais ricos podem se mudar para o exterior e parte da classe média já se enclausura em condomínio fechados, chegou a hora de o conjunto da população rejeitar a demagogia, a incompetência e a prevaricação das nossas autoridades.

Se não houver melhores condições de vida, dificilmente veremos a harmonia voltar a prevalecer na cidade. Ainda há tempo para o Rio enfrentar os seus complexos desafios e cobrar soluções de curto, médio e longo prazo para reverter essa situação desabonadora da imagem da cidade. Não dá mais para protelar uma ação efetiva que reverta a anomia que predomina no cotidiano da cidade. É agora ou nunca.

01 de fevereiro de 2019

“VENEZUELA NÃO SERÁ A NOVA SÍRIA”!

(Guga Chacra – Globo, 31) A chance de uma transição democrática na Venezuela é mais fácil do que na Síria porque existe uma oposição forte e popular em Caracas e um histórico de democracia no passado, interrompido com Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Em Damasco, embora haja, sim, figuras pró-democracia, os principais grupos opositores são jihadistas e não democráticos. Querem substituir uma ditadura laica por uma ditadura extremista religiosa e intolerante.

Vale o teste que sempre faço — cite o nome de um líder opositor democrático da Síria. Consigo citar opositores pró-democracia, como Michel Kilo. Ele e outras figuras democráticas, no entanto, não são as maiores forças da oposição. O grupo mais poderoso anti-Assad é o Hayet Tahrir al-Sham, antiga Frente Nusra, que vem a ser o braço da al-Qaeda na Síria.

No caso da Venezuela, podemos citar uma série de opositores democráticos e civis. Primeiro, claro, Juan Guaidó. Temos também Henrique Capriles, Leopoldo López, Maria Corina e diferentes figuras do espectro político da direita à esquerda.

A Síria nunca teve uma democracia sólida. O regime dos Assad dura quase cinco décadas. Não há instituições democráticas no país. Uma transição para o fim da ditadura seria bem mais complicada inclusive do que na Tunísia, único caso de sucesso da Primavera Árabe. Embora também vivessem em uma ditadura nos tempos de Ben Ali, os tunisianos tinham instituições mais sólidas do que os sírios. A Venezuela, apesar de problemas similares a outros países da América Latina, tem um histórico democrático incomparavelmente superior ao sírio, apesar de hoje ter se distanciado da democracia.

Um dos motivos de apoio a Assad foi o temor do jihadismo da oposição, controlada por sunitas. Minorias religiosas sírias, como os cristãos, os alauitas e os drusos, embora em muitos casos discordassem do regime, temiam que a queda do líder sírio levasse à chegada da al-Qaeda ou do Estado Islâmico ao poder em Damasco e risco de genocídio contra seguidores daquelas religiões.

Vários sunitas pró-Assad compartilham do mesmo medo. Na Venezuela, não existe este sectarismo. Há homogeneidade religiosa e não há conflitos étnicos. Guaidó ou outro líder opositor não perseguirá ninguém que siga determinada religião. São democratas.

O regime de Assad também contou com apoio militar da Rússia, segunda maior potência militar do planeta; do Irã, uma das potências do Oriente Médio; e do Hezbollah, um grupo que já travou guerra contra Israel. Moscou até apoia Maduro, mas não há a menor possibilidade de levar adiante uma ofensiva similar à que realizou na Síria. Cuba apoia o regime de Caracas, mas a força militar de Havana não chega aos pés da de Teerã.

Existe, portanto, muito mais chance de transição para a democracia na Venezuela do que havia na Síria. Há risco de guerra civil, mas em um modelo similar aos da América Central nos anos 1980, não aos do Oriente Médio. Os outros cenários, além de guerra civil, possíveis, conforme escrevi aqui, são: 1) transição para a democracia; 2) militares no poder; 3) Maduro sobrevive; e 4) governos paralelos, que é o atual, mas insustentável.

Existe, portanto, muito mais chance de transição para a democracia na Venezuela do que havia na Síria.