29 de outubro de 2021

A EXPANSÃO DO IMPÉRIO DO PÓ!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 19) “O‘Narcosul’, o cartel do PCC, é a organização criminosa que mais cresce hoje no mundo”, constatou o procurador Márcio Sérgio Christino. É mais um recorde infame para um país cronicamente devastado pela violência e a corrupção.

Como mostrou reportagem do Estado, a Bolívia – em razão de sua localização e das dificuldades de colaboração internacional com a polícia local, em grande parte corrompida pelos criminosos – é o santuário desse “Narcosul” (corruptela de Mercosul), que lá mantém empresas de fachada e frotas de aeronaves e caminhões.

Em uma década, o Brasil, historicamente o maior mercado consumidor na América do Sul, se transformou em um dos principais fornecedores para o mundo. Segundo a ONU, o País responde por 7% das apreensões globais, atrás apenas da Colômbia (34%) e dos EUA (18%).

Entre 1995 e 2004 eram apreendidas em média 6 toneladas de cocaína por ano no Brasil. Em pouco tempo as suas principais quadrilhas – o PCC, o Comando Vermelho e a Família do Norte – passaram a orquestrar o transporte transatlântico de cocaína, distribuída pelas máfias do Marrocos, Leste Europeu e Itália. Nos últimos seis anos a média anual de apreensões no Brasil foi de mais de 50 toneladas.

Somando-se à coca da Colômbia, a produção peruana e boliviana explodiu. Trafegando a cocaína pela rota amazônica até os portos de Suape e Natal, ou pelo Sudeste até Santos, o Brasil está se tornando para a Europa o que o México é para os EUA. Hoje o Brasil oscila entre a primeira e a segunda principal origem nos entrepostos europeus.

Entre 2015 e 2019 a cocaína apreendida na África (de onde vai para a Europa e outras regiões) saltou de 1,2 tonelada para 12,9 toneladas. A principal origem é o Brasil, respondendo por quase 50% do total. O País também é a principal origem para a Ásia e a quarta para a Oceania.

A expansão do narcotráfico brasileiro tem graves efeitos colaterais, como as chacinas em presídios resultantes das disputas das facções, ou os cada vez mais frequentes mega-assaltos (o “novo cangaço”), com toda probabilidade financiados pelo PCC. As facções estão ampliando suas estruturas de lavagem de dinheiro (facilitadas pelo mercado de criptomoedas), cooptando negócios e se infiltrando na máquina pública.

O mais surreal é que essas organizações foram gestadas justamente nos locais projetados para erradicálas: as penitenciárias. Os governos estaduais têm investido contra as finanças das facções e isolado seus líderes em presídios de segurança máxima. Mas claramente sua nacionalização e sua internacionalização estão superando a repressão. O Sistema

Único de Segurança Pública, criado há três anos para promover uma repactuação federativa, foi totalmente negligenciado pelo governo.

Já nem é mais o caso de cobrar providências para evitar que a situação saia do controle, pois aparentemente já saiu; agora, urge uma enérgica e inteligente ação concertada, dentro e fora do País, para impedir que o “Narcosul” se estabeleça definitivamente como um Estado transnacional, a ditar os termos da paz no continente. 

28 de outubro de 2021

A ESPERANÇA DA DIREITA DA ESPANHA!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 24) Quando os donos de bares e cafés de Madri quiseram homenagear a líder regional, Isabel Díaz Ayuso, depois de passados os piores meses da pandemia, muitos ofereceram pratos “a lo Ayuso, con dos huevos”, ou com um par de ovos, uma referência à coragem atribuída a ela.

Isabel está na crista de uma onda. Em 2019 foi eleita presidente da região de Madri (incluindo a cidade e os municípios vizinhos, com uma população total de 6,6 milhões de pessoas), representando o Partido Popular, de centro-direita.

Um ano depois ela enfrentou uma brutal primeira onda do coronavírus, e foi muito criticada pelo impacto da doença em Madri. Independentemente disso, no decorrer do ano seguinte, ela lutou para manter abertos os estabelecimentos da cidade, ganhando a gratidão de madrilenhos como os donos desses bares. Hoje, o rosto dela é visto em cartazes nas lojas (“Somos todos Ayuso”), e até em pares de meias que a retratam como santa católica.

Mais importante, em uma eleição inesperada em maio (depois de romper com o parceiro de coalizão), ela obteve uma segunda vitória. Os socialistas, que comandam o governo nacional, ficaram em terceiro. Pablo Iglesias, líder do Podemos, partido de esquerda radical que governa o país em parceria com os socialistas, optou pelo risco de abandonar o gabinete para disputar a eleição de Madri. Quinto colocado, o resultado o fez abandonar a política.

A vitória de Isabel veio com um slogan simples a ponto de beirar o tosco: “Liberdade ou comunismo”. Mas a liberdade é um tema em que ela insiste repetidamente. “Madri é liberdade, ou então não seria Madri”, diz ela à reportagem, retomando este ponto independentemente da pergunta feita. Madri prospera quando as pessoas são deixadas em paz para cuidar de seus negócios, fazer o que quiserem com sua propriedade e viver como quiserem. Indagada a respeito do que o governo pode fazer além de sair do caminho, sua resposta foi dar à população mais liberdade de escolha, por exemplo, com relação ao horário de trabalho.

Isso se reflete na política econômica dela. Seu principal assessor econômico, Javier Fernández-Lasquetty, atribui a cortes nos impostos da ordem de 53 bilhões de euros (R$ 348 bilhões) desde 2004 o crédito por ajudar a impulsionar o crescimento de Madri, antes lento, para acima da média nacional. Madri tem agora a maior economia regional da Espanha, à frente da Catalunha. No início de setembro, ela aboliu o último imposto independente da região, tornando-a a única área no arranjo fiscal habitual da Espanha a abrir mão de cobrar tais taxas. Ela elogia a rivalidade econômica entre as regiões espanholas: “Quando é que a concorrência foi algo ruim?”

Isso atraiu críticas. O socialista Ximo Puig, presidente de Valência, queixou-se recentemente que a posição de Madri como capital trazia à cidade empregos que pouco teriam a ver com as iniciativas do governo local, permitindo a prática de um “dumping fiscal”. Isabel retruca que “este é o discurso dos políticos que cruzam os braços e nada fazem”. Observadores neutros destacam que Madri é a capital desde o século 16, enquanto sua ascensão econômica é muito mais recente.

O partido parecia não saber ao certo como lidar com sua estrela em ascensão. Quando ela disse que se candidataria à presidência do PP em Madri, a liderança pareceu surpresa, dizendo que o partido deveria ser liderado por alguém que não tivesse um governo para administrar. Isabel respondeu: “Sou mulher, consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo” (em todas as outras regiões governadas pelo PP, os cargos são desempenhados pela mesma pessoa). A imprensa a colocou contra Pablo Casado, líder nacional do PP, em uma briga trivial que durou semanas.

Os ataques de Casado ao primeiro-ministro, Pedro Sánchez, estão se tornando previsíveis. O partido dele lidera em muitas pesquisas de opinião, mas o próprio Casado tem resultado ruim. Em comparação, Isabel é espontânea e autêntica, o que significa que ganha as manchetes, nem que seja cometendo ocasionais gafes.

Indagada a respeito da proposta de Sánchez para proibir a prostituição, sua crítica ao governo incluiu a frase “Tudo que eles querem é destruir empregos”. Mas seu momento sob os holofotes levou a especulações quanto ao seu futuro nacional.

Durante algum tempo, ela pouco fez para abafá-las. Abriu um escritório em Madri cuja missão era explorar a difusão global do espanhol para estimular os negócios, algo mais apropriado para o governo nacional. Suas constantes incursões em âmbitos que escapam à alçada de uma liderança regional, e uma viagem a Washington e Nova York para se reunir com políticos e representantes de centros de estudos estratégicos no auge da briga interna do PP, estimularam aos comentários a respeito de suas ambições.

Mas, na recente conferência do partido realizada em Valência, ela fez questão de agradecer a Casado por ajudá-la na carreira, dizendo: “Meu lugar é Madri”. Isso não deve por fim à especulação. Diferentemente de alguns dos barões do partido, ela vem da classe média e chegou muito longe.

Os críticos que apontam para o fato de ela não ser uma intelectual reconhecem mesmo assim sua astúcia. Outros dizem que não foi brilhantismo, e sim sorte o fato de ela partilhar do desejo dos madrilenhos de recusar as ordens de distanciamento em casa na pandemia. De apenas 43 anos, sem filhos, sem filiação religiosa, solteira (o que mostra “a falta de interessados no mercado”, brincou ela) e mostrando até uma tatuagem no antebraço, ela está longe de ser uma liderança óbvia para o tradicional partido conservador da Espanha.

Mas ela se declara orgulhosamente uma liberal, e não uma conservadora, dizendo que o PP tem espaço para ambos. Madri é o lugar dela por hora, mas os espanhóis estão acompanhando para ver se o seu estilo pode fazê-la crescer ainda mais.

27 de outubro de 2021

CENTRO TEM DE MIRAR BOLSONARO POR VAGA NO 2º TURNO, DIZ RODRIGO MAIA!

(Folha de SP, 22) Ex-presidente da Câmara dos Deputados e atualmente secretário do governo João Doria (PSDB), Rodrigo Maia, 51, diz que o alvo prioritário da terceira via por uma vaga no segundo turno tem de ser o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mais do que Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

“O adversário é o Bolsonaro, que entrou no nosso eleitor”, diz Maia, que se licenciou do mandato parlamentar e atualmente é responsável pela pasta de Projetos e Ações Estratégicas em São Paulo.

Segundo ele, a “orgia fiscal” do atual governo, representada pela tentativa de furar o teto de gastos, vai causar inflação e aumento de juros, anulando qualquer efeito político da elevação do Bolsa Família.
“Quem está na Crefisa [empresa de crédito pessoal] e no agiota não é o rico. Quem está no mercado paralelo de crédito é o pobre. Ele que vai acabar sentindo o aumento da inflação e dos juros”, afirma.

Para o secretário, isso vai derrubar a popularidade de Bolsonaro, abrindo caminho para uma candidatura de centro-direita, que ele crê será a de Doria.

No governo paulista, Maia participa da elaboração de projetos como a privatização da Sabesp e o novo trem de passageiros ligando a capital a Campinas.

Expulso do DEM, ele ainda define para qual partido irá, mas já decidiu que disputará novo mandato de deputado federal pelo Rio.

Para Maia, o eleitor fluminense não vai estranhar sua temporada paulista. “Vim para São Paulo fazer política nacional. É óbvio que o carioca, que sempre teve uma visão importante de Brasil, vai compreender.”

• Como o sr. vê o novo Bolsa Família, e a possibilidade de que fure o teto de gastos?

RODRIGO MAIA – O teto já acabou. Isso é a pá de cal. O que não estão entendendo é que o limite de gasto tem relação direta com a vontade da sociedade de não pagar mais impostos. Se você continuar a aumentar despesa acima da inflação, vai ter que arrecadar dinheiro.

• E o efeito na popularidade do Bolsonaro, qual vai ser?

RM – A aliança do [Paulo] Guedes com o Arthur Lira [presidente da Câmara] está copiando a mesma equação da Dilma [Rousseff] em 2014. É uma orgia fiscal. Quando fizemos o auxílio emergencial em 2020, com valor muito alto, e com o governo ampliando para mais gente do que em tese seria necessário, tínhamos inflação de 1%, 2%, 3%. Estamos agora com 10%.

Se você amplia o cenário de desorganização fiscal, está dizendo que vamos perder o controle da inflação. Quem vai pagar essa conta é o próprio beneficiário do Bolsa Família. O câmbio desvaloriza mais, o botijão de gás fica mais caro, o diesel, o alimento. Está dando com uma mão e tirando com a outra.

• Como o sr. vê o futuro da agenda de reformas no Congresso?

RM – Ele [Bolsonaro] fez a emenda de relator de R$ 15 bi. Aprovou a PEC [emenda] Emergencial sem nenhum corte de despesas. Aprovou a MP da Eletrobras com o maior jabuti da história, R$ 83 bilhões que a sociedade terá de pagar para a construção de termelétricas.

O projeto do Imposto de Renda é um desastre. Que projeto o governo aprovou até agora que foi positivo para a sociedade? O presidente da Câmara não entende a importância do teto de gastos e da Lei de Responsabilidade Fiscal. A sociedade não quer pagar mais impostos.

• O sr. não vê a possibilidade de aprovação de nenhuma nova reforma nesse governo?

RM – Os textos que estou vendo ir para a Câmara na área econômica estão gerando mais insegurança, e do ponto de vista institucional estão desorganizando a sociedade. Aquela PEC que foi votada logo depois da prisão do [deputado] Daniel Silveira não foi aprovada, mas era para enfraquecer o Supremo. O novo Código Eleitoral era para enfraquecer o TSE. Há uma nítida linha de ação de orgia fiscal de um lado e enfraquecimento de instituições de outro.

• A proposta da mudança na composição do CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] o sr. coloca na mesma linha?

RM – Não conheço o texto. Tirar a autonomia do Ministério Público pode ser grave. Mas da forma como trabalham hoje, são os únicos servidores públicos do Brasil que ninguém controla. Não sou contra que se crie uma regra em que o Ministério Público seja efetivamente fiscalizado. O Ministério Público surfa de forma paralela ao resto dos servidores. Se essa PEC é o melhor caminho não sei, porque não conheço a redação.

• As últimas manifestações de rua contra Bolsonaro foram pequenas, e a eleição está a menos de um ano. É o caso de desistir do impeachment e focar em tirar o presidente pelo voto?

RM – Quando eu era presidente da Câmara, não havia voto para o impeachment. Acho que hoje também não temos. Os deputados estão olhando suas eleições, então as emendas passam a ter um peso cada vez maior.

O governo não consegue viabilizar a execução de todos os recursos, gera insatisfação. Mas não acho que haja clima majoritário, de 342 votos, para se avançar no impeachment. Não acho que o presidente Arthur vá encaminhar um tema desses, pelas condições em que foi eleito, com apoio do presidente.

• A oposição deveria continuar fazendo manifestações, ou melhor virar essa página?

RM – É importante que os partidos continuem mobilizados. Mas mais grave é a posição dos que se dizem da terceira via, porque estão 100% na base do governo. O Bruno Araújo [presidente do PSDB] diz que os deputados são oposição, mas continuam votando com o Bolsonaro. O discurso de que a pauta econômica é a nossa pauta não é mais verdadeiro. A pauta econômica deixou de ser aquilo que a gente historicamente vem defendendo desde o governo Fernando Henrique.

• A fragmentação do campo entre Lula e Bolsonaro é a morte da terceira via?

RM – Não, estou convencido que haverá um nome, que eu acho que é o Doria. A terceira via tem uma chance, que é viabilizar um nome no Sudeste. O Sul e o Centro-Oeste estão contaminados pelo bolsonarismo, e o Nordeste pelo lulismo.

O Sudeste é a região em que você tem menos contaminação pela polarização. A polarização comanda a agenda nacional ainda, e o Doria não é visto como candidato a presidente, apesar de a avaliação dele estar melhorando muito de janeiro para cá. Janeiro era sofrível, hoje é intermediária.

• Se o candidato for Eduardo Leite é mais difícil?

RM – Muito mais difícil. São dois grandes governadores. Claro que o tempo de vida, experiência, para um cargo como presidente conta muito. Não que um jovem não posso ser presidente, até porque ele [Leite] tem experiência. Mas ele vai sair de um estado bolsonarista, e quem não é bolsonarista lá é petista.

O Doria está num estado que nunca foi bolsonarista, aqui Bolsonaro foi uma opção [em 2018]. Nas pesquisas, hoje São Paulo é um estado aberto. Claro que tendo um governo bem avaliado em São Paulo, e o governo Doria vem melhorando, a probabilidade de se viabilizar no Sudeste é muito maior do que a do Eduardo Leite.

• Quem na sua avaliação é mais fácil de desalojar do segundo turno, Lula ou Bolsonaro?

RM – Só tem um para sair do segundo turno, que é o Bolsonaro. O candidato que está no nosso campo da centro-direita bate no Lula para mostrar que é diferente, mas o adversário é o Bolsonaro, que entrou no nosso eleitor.

• Lula vai tentar fazer incursões nesse eleitorado de centro-direita, não?

RM – Claro. A eleição está montada hoje para o Lula ganhar. Se você desorganizar o processo, acontece o que eu imagino, que é essa orgia fiscal inviabilizar o Bolsonaro. Quem está na Crefisa e no agiota não é o rico. Quem está no mercado paralelo de crédito é o pobre. Ele que vai acabar sentindo o aumento da inflação e dos juros.

• No governo Lula, o sr. presidia o DEM, era um dos principais líderes da oposição. O sr. acha que ele vai se apresentar com qual figurino na campanha?

RM – A gente vai ter que esperar, porque na hora que o [ex-ministro da Fazenda] Nelson Barbosa fala em tese pelo PT, você está olhando uma política mais parecida com a Dilma, mais intervencionista no Estado, na economia. O Lula dá sinais de que vai montar uma aliança parecida com 2002.

No primeiro governo foi muito difícil combater, porque ele montou com o [Antonio] Palocci uma equipe econômica muito mais convergente com o que a gente pensava do que o Paulo Guedes. Marcos Lisboa, Bernard Appy, Joaquim Levy [integrantes da equipe econômica de Lula] têm muito mais convergência com a gente. Ali tem uma cabeça do papel do Estado em relação à parte social, que no caso dos radicais liberais não tem. O Guedes não tem pensamento, a gente foi enganado. Ele não é liberal, não é nada, é um animador de auditório.

• Se o Lula vier com essa roupagem centrista, amigo do mercado, não fica mais complicado para o Doria se diferenciar?

RM – Claro que quanto mais forte a terceira via vier, mais o Lula vai ter que caminhar para o centro. Se o Bolsonaro seguir sendo o adversário dele, Lula vai poder jogar parado, não precisa se comprometer com ninguém.

Se o Bolsonaro começa a se enfraquecer, como eu acho que vai acontecer, e caminhar para menos de 20% das intenções de voto, naturalmente alguém vai ocupar o espaço, porque existe o antipetismo ainda.

• E qual espaço o Ciro Gomes pode ter?

RM – O Ciro é um candidato forte. Eu tentei levar o DEM a apoiá-lo. Quando empresários me perguntavam se eu estava maluco, eu dizia que precisávamos construir uma agenda com o Ciro na economia, porque no social não ia ter muita diferença.

O crescimento do Lula gera um desafio para o Ciro. O problema dele é por onde entra nesse jogo. Está numa estratégia de enfrentamento ao Lula. Como ele fica com o voto da esquerda? Não acho que ele vá ter muito espaço nos eleitores que deixaram Bolsonaro. Se tivesse, já tinha entrado em 2018. Vai ter que entrar num espaço mais à esquerda, e num campo nosso que respeita ele, como é o meu caso. Acho que a grande aliança para o Brasil seria do PSDB com o PDT.

• Mas realisticamente é muito difícil. 

RM – Muito. Esse Brasil dividido vai precisar de um pacto nacional em 2023, porque quem ganhar a eleição vai receber o país numa situação desastrosa, uma catástrofe de indicadores econômicos, sociais, que vão estar piores do que estão hoje. A pobreza vai estar pior, o desemprego, a taxa de juros vai estar mais alta, contaminando milhões de brasileiros endividados.

• Qual seu projeto para 2022?

RM – Deputado federal pelo Rio de Janeiro. Sobre o partido ainda vou aguardar para decidir.

• O seu eleitor vai entender essa sua fase paulistanizada?

RM – Não vejo nenhum problema em ser convidado para ser secretário num tema que sempre gostei, que é a parte de concessões, privatizações, na principal economia do Brasil. Para o Rio de Janeiro, é uma demonstração de que sou um quadro importante da política nacional. É óbvio que o carioca, que sempre teve uma visão importante de Brasil, vai compreender.

26 de outubro de 2021

UMA MULHER PRESIDENTE!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo, 25/12/2010) Em 2010, cumpriram-se os 250 anos do nascimento da primeira mulher presidente no Brasil, Bárbara de Alencar.

Ela nasceu em Exu (PE), em 1760. Mudou-se para o Crato (CE) depois do casamento, em 1782, com José Gonçalves dos Santos, comerciante de tecidos naquela vila, com quem teve quatro filhos.

Foi a primeira mulher a se envolver, para valer, em política no Brasil -durante a revolução pernambucana de 1817, com vistas à independência e à República. O Ceará e outras províncias limítrofes aderiram -no Ceará, especialmente na região do Cariri.

Bárbara de Alencar liderou esse movimento no Crato, ampliando a revolução em Pernambuco. Ela declara a independência e proclama a República do Crato, assumindo a presidência. Com a derrota em Pernambuco, a rebeldia nas demais províncias foi sendo desmontada pelas forças do Conde dos Arcos, governador da Bahia, a mando de dom João 6º.

Bárbara foi presa em Fortaleza. Por quatro anos, foi mantida presa em Fortaleza, Recife e Salvador. Ganha a liberdade no ato de anistia geral de novembro de 1821. Teve quatro filhos, três homens.

Em 1824, outra revolução em Pernambuco: a Confederação do Equador, liderada por Frei Caneca. No âmbito desse movimento, no Ceará, Crato, Icó e Quixeramobim aderiram.

Seus três filhos homens se envolveram. Em 26 de agosto de 1824, foi declarada a República do Ceará e designado presidente Tristão de Alencar, um dos filhos de Bárbara.

A repressão das forças imperiais culminou com a morte de dois de seus filhos: Tristão e Carlos. José Martiniano de Alencar sobreviveu e, mais tarde, terminou se credenciando como deputado às cortes constitucionais de Lisboa.

Foi governador do Ceará e senador. Seu filho José de Alencar foi escritor, poeta e fundador do indianismo com seu “O Guarani”.

A força da memória de Bárbara de Alencar ressurgiu em 1869, na escolha de senador em uma lista tríplice. Os conselheiros de dom Pedro 2º sugeriram o veto a José de Alencar, apesar de ele ter sido ministro da Justiça pouco tempo antes. O temor era que as ideias republicanas que começavam a ser reativadas pudessem coincidir com o DNA de José de Alencar.

Neste ano de 2010, em que o Brasil registra e comemora a assunção de uma mulher ao cargo de presidente da República, faltaram as comemorações em memória de Bárbara de Alencar, primeira mulher política brasileira, primeira presidente de República, do Crato, e mãe de outro presidente de República, do Ceará.

E, quem sabe, ancestral de outro cearense Alencar presidente: Humberto. A conferir.

20 de outubro de 2021

VOTAR ‘BEM’ E VOTAR ‘MAL’!

(Mario Vargas Llosa – El País/O Estado de S. Paulo, 17) Os votos foram inventados nas eleições livres, para defender a democracia; os ditadores não precisam de eleições, já que as fabricam conforme seu gosto. De uma declaração sobre o “bem” votar, um comentarista da televisão deduziu que eu me referia à eleição que perdi em 1990: os que votaram “bem” votaram em mim e os que votaram “mal”, não.

Não havia pensado nisso, mas, por essas e outras críticas – muitas, na verdade –, deduzi que me havia equivocado. Tinha de explicar isso melhor, não para evitar as críticas, mas dar-lhes fundamento, se tivessem.

A coisa me parece muito simples: votar “bem” é votar pela democracia; votar “mal” é votar contra ela. Isso é sempre tão claro e evidente? Não, com certeza. Às vezes, sabê-lo não é tão fácil a princípio; somente com o passar do tempo fica claro quando se votou bem ou mal. Por exemplo, os ingleses – um povo que raras vezes se equivoca neste assunto – agora estão descobrindo que votar a favor do Brexit, contra a União Europeia, foi um erro e a democracia mais antiga do mundo poderá pagar caro por isso.

Eu pensava, quando falei isso, sobretudo no caso da Venezuela. Ainda estava vivo o comandante Chávez. Eu ia com frequência a Caracas, onde tinha muitos amigos. Fiquei assustado que houvesse tantos – entre eles, vários empresários – que, entusiasmados, se preparavam para votar nele. Este os subornava com suas promessas de não alterar em nada o sistema que imperava no país e, além disso, melhorar as relações do Estado com os empresários.

Estes pareciam acreditar nele. “Havia muita corrupção com Carlos Andrés Pérez”, ouvi dizerem. “Mas com o comandante Chávez haverá dez vezes mais corrupção, a imprensa será censurada e ninguém poderá dizer isso. Ademais, só haverá eleições manipuladas”. “Já se verá.” E se viu, pois foi esta a última vez que os venezuelanos tiveram eleições livres.

Votar “mal” é fechar as portas para a democracia, como foi feito no Peru nas últimas eleições, isso se for verdade que elas foram limpas, o que muitos colocamos em dúvida. Enquanto isso, o dólar sobe e quem pode saca suas economias ou investimentos e os leva para o estrangeiro; os cofres públicos se veem cada dia mais órfãos de recursos. Talvez não se chegue ao que pretendeu o partido Perú Libre (que apresentou Castillo como candidato à presidência, pois seu líder, Vladimir Cerrón, foi condenado pelo Judiciário por acusações de roubar o Estado), que o Peru integre o grupo que reúne Venezuela, Cuba e Nicarágua. Mas, em todo caso, a situação do país é crítica e poderia ocorrer um golpe de Estado em que a ditadura militar ficasse no poder 10 ou 20 anos, como ocorreu outras vezes.

Isso não é votar “mal”, contra a liberdade e o progresso? Não seria melhor que os alemães não tivessem se entregado de corpo e alma a Hitler nas eleições de 1932, com os milhões de mortos da 2.ª Guerra que derivaram da convicção que tinha o líder nazista de derrotar a URSS, dominar a Europa e firmar um tratado de paz com a Inglaterra? Votavam bem os italianos que o faziam por Mussolini, e os espanhóis por Franco na Espanha?

O resultado de eleições pode ser trágico para um país se os cidadãos que votam não preveem as consequências que o resultado eleitoral poderia ter. Isso não desqualifica as eleições nem o voto popular, que costumam ser, sobretudo nos países ocidentais, responsáveis e democráticos, mas isso não funciona assim no mundo subdesenvolvido, onde a cada dia vemos casos como o da Nicarágua, onde o comandante Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, metem na cadeia todos os candidatos que poderiam fazer frente às suas intenções de se reeleger. Que valor podem ter semelhantes eleições em que a vitória dos atuais governantes está garantida de antemão e com porcentagens precisas?

Em Cuba, na China, na URSS e nos antigos países satélites celebravam-se eleições pontuais, em que ninguém acreditava, pois só serviam para os governantes se inteirarem secretamente do estado das coisas em seu país. Eleições só têm sentido nas democracias, enquanto o grande leque de partidos de centro e de direita – que vão desde os socialistas até os conservadores, passando pelos democratas cristãos e os verdes – expressam suas proximidades e diferenças, para estabelecer alianças mais ou menos sólidas que lhes permitam formar um governo.

Essas eleições são úteis, com certeza, e ninguém gostaria de suprimi-las. Mas eleições em países em que acaba de ocorrer um golpe de Estado, como agora na Guiné, onde a arrasadora maioria que está por trás dos golpistas se apressa para celebrá-lo manifestando sua adesão, têm um sentido democrático? Tenho dúvidas a respeito e me parece, após o sucedido no Peru nas últimas eleições, que semelhante entusiasmo deveria ser considerado com apreensão. Ficaria feliz se a ONU, a OEA e seus organismos representativos fossem obrigados a inspecionar aquelas eleições antes de legitimá-las. Creio que o ocorrido no Peru e em outros países da América Latina levanta dúvidas demais sobre a validade daquelas missões de vigilância eleitoral, que, com frequência, só servem para conceder um ar de suposta validade a eleições de natureza suspeita.

Nada disso significa que eleições sejam inúteis. Aqui sim, faz sentido falar em votar “bem” ou “mal”, me parece: não tem a ver com os candidatos, mas com os eleitores, pois são estes últimos os que legitimam eleições ou as convertem em um circo, se votam, como fizeram os eleitores do PRI no México por cerca de 80 anos, em uma farsa que servia aos governantes beneficiados com os resultados para aceder ao poder e aproveitar-se dele.

A única maneira de assumir uma responsabilidade eleitoral digna desse termo é criando uma sociedade democrática. A solução parece coisa de louco e pode ser que seja. Como pode existir uma sociedade democrática se as eleições não são verdadeiramente representativas e não nos dizem nada sobre a seriedade e a consciência dos eleitores?

O voto útil pressupõe sociedades bem constituídas e convencidas de que a democracia, com seus riscos e perigos, é o melhor de todos os pactos possíveis, da qual resultarão o progresso e a justiça para a imensa maioria da população. E nem sequer nessas circunstâncias o voto é sempre válido e legítimo. Em outras sociedades, onde essa opção não está definida, ou está somente em parte, o voto pode ser extremamente precário, uma maneira de questionar ou até mesmo atentar contra as bases da sociedade, pela qual se pretende mudar radicalmente de sistema.

Isto é o que costuma acontecer quando se vota “mal”, para destruir as bases democráticas sobre as quais a própria sociedade se sustenta, transtornando-a e subvertendo-a, a fim de que ela mude ou se altere essencialmente. Votar “mal” ou votar “bem” não é algo casual; é uma maneira de decidir se optou-se por uma forma de sociedade – a democrática – ou se isso não está claro; ou melhor, como ocorre na América Latina ou na África – mas não na Ásia, por exemplo, onde tudo parecia indefinido até pouco tempo atrás.

O voto bem intencionado ou mal intencionado não é anterior à eleição; é, antes disso, uma confirmação dos passos prévios da assunção da validez segura ou escassa da razão eleitoral. Os países que não estão convencidos da razão de sua sociedade ser “democrática” costumam votar “mal”. Só os que estão convencidos da democracia e são favoráveis a ela votam “bem”. Mas isso não vale para todos os casos, e dúvidas a respeito disso sempre emergirão. Elas só serão resolvidas quando for tarde demais e já não haja mais nada a se fazer.

19 de outubro de 2021

CANDIDATOS RADICAIS NA AMÉRICA LATINA CRESCEM NA PANDEMIA!

(AP e Reuters/O Estado de S. Paulo, 17) A pandemia vem passando uma rasteira nos governos latino-americanos, sem distinção ideológica. No México e na Argentina, partidos de esquerda perderam espaço nas últimas eleições legislativas. No Chile e na Colômbia, os conservadores estão a ponto de serem escorraçados nas urnas. Da desordem trazida pela covid, porém, surgem alguns vencedores: os candidatos radicais, que vêm conseguindo canalizar a insatisfação popular.

Com 600 milhões de habitantes, a América Latina desafia generalizações, mas segue alguns padrões. Os países da região têm o crescimento econômico mais lento do mundo, são os mais violentos e mais desiguais. Agora, enfrentam o fenômeno comum da radicalização política.

No Chile, o favorito na eleição presidencial de novembro é Gabriel Boric, jovem de 35 anos, torcedor fanático da Universidad Católica. Esquerdista moderado, apesar da aliança com o Partido Comunista, sua vitória seria um movimento natural do pêndulo da política chilena, se afastando do conservadorismo do presidente, Sebastián Piñera, de volta ao campo da centro-esquerda – como antes o poder escorregou das mãos da socialista Michelle Bachelet na direção oposta.

A novidade, porém, é o crescimento da extrema direita. José Antonio Kast, de 55 anos, conhecido por defender a ditadura de Augusto Pinochet, aparece em segundo lugar – à frente do candidato de Piñera, Sebastián Sichel, que corre risco de nem sequer chegar ao segundo turno. “Dizem que sou radical. Mas radical em quê?”, disse Kast, que não esconde sua admiração por Donald Trump e costuma elogiar Jair Bolsonaro.

Na Colômbia, o cenário também favorece um voto radical. O país é um ponto fora da curva na América Latina: nunca teve um governo de esquerda. Mas, na eleição presidencial de março de 2022, todas as apostas são em Gustavo Petro, um ex-guerrilheiro do Movimento 19 de Abril (M-19), que perdeu a última eleição para Iván Duque, em 2018.

A birra dos colombianos com a esquerda vinha de anos da desastrosa campanha militar das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), da proximidade com os EUA – durante a Guerra Fria e na luta contra o narcotráfico – e do antagonismo com a vizinha Venezuela. Todos esses obstáculos se foram. As Farc se desmobilizaram, a União Soviética caiu junto com o império dos cartéis de Cali e Medellín e a crise destruiu toda influência que tinha o chavismo na Colômbia.

Em meio à pandemia e ao fluxo de 2 milhões de refugiados venezuelanos, Duque trocou os pés pelas mãos. Ele passou seu primeiro ano de mandato tentando desfazer o acordo de paz com as Farc, o segundo enviando tropas para reprimir protestos, o terceiro em lockdown e finalmente virou uma carta fora do baralho depois de propor um aumento de impostos, que provocou nova revolta popular e a renúncia de seu ministro das Finanças, Alberto Barrera.

“Petro é favorito”, disse Raúl Gallegos, consultor da Control Risks, em Bogotá. “Ele traz uma coalizão que mistura o antiestablishment, os pobres e a classe média progressista que se preocupa com questões ambientais e com os direitos das minorias.”

A pandemia também chamuscou governos de esquerda na América Latina. As eleições legislativas de junho enfraqueceram o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, e seu partido, o Morena, que perdeu a maioria absoluta que tinha no Congresso. Na Argentina, o presidente Alberto Fernández também saiu derrotado das primárias de setembro, votação que consagrou o ultradireitista Javier Milei, que obteve mais de 13% dos votos pela primeira vez.

A pandemia atingiu a América Latina com mais força do que qualquer outra parte do mundo. Mais de 25 milhões foram infectados e quase 1 milhão morreram. No entanto, analistas dizem que a covid não está na origem do problema, ela apenas exacerbou a insatisfação em uma região que já estava de cabeça para baixo nos últimos meses de 2019 – como nos protestos no Chile, que impulsionaram o plebiscito que aprovou a convocação de uma Assembleia Constituinte, no ano passado.

“A covid enfraqueceu as já frágeis estruturas institucionais democráticas da região. Ela multiplicou as fontes já abundantes de desilusão com os governos latino-americanos, incluindo as queixas com relação à incapacidade dos sistemas públicos de saúde”, escreveu Evan Ellis, em artigo para o Center for Strategic and International Studies. Para ele, a vitória de Pedro Castillo, candidato de extrema esquerda nas eleições presidenciais do Peru, foi impulsionada pela radicalização da política, impulsionada pela pandemia na América Latina.

Cynthia Arnson, analista do Wilson Center, não acredita que a pandemia tenha favorecido um ou outro campo ideológico. “Por conta do impacto econômico e de saúde devastador da pandemia – e da corrupção que a acompanha –, o sentimento geral é de se livrar dos políticos tradicionais. Ela criou um ambiente volátil”, disse. “A expectativa é que mais outsiders ganhem eleições.”

18 de outubro de 2021

DEVASTADORAMENTE CAPAZ!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo, 06/05/2007) “Blowback” é uma expressão usada por alguns politólogos para definir uma ação política que aponta numa direção e produz um resultado inesperado e contrário ao objetivo inicial.

Em grande medida, foi o que ocorreu com Carlos Lacerda a partir de sua candidatura a governador da Guanabara, em 1960. Jogava tudo, mesmo antes, na desestabilização dos governos do PSD e do PTB. E olhava para a sua meta: a eleição presidencial de 1965.

Assumiu o governo da Guanabara promovendo reformas inaugurais na administração pública brasileira, na área fiscal e na área administrativa. Com o auxílio de Aliomar Baleeiro [1905-78], deputado constituinte na Guanabara, jurista especializado em finanças públicas, estruturou um sistema orçamentário, tanto nas relações entre o Executivo e o Legislativo como na implantação, pela primeira vez no Brasil, do orçamento-programa.

Essas inovações construíram a base do que se chama hoje de responsabilidade e transparência fiscais, que pautaram as reformas durante o regime militar até a Constituição de 1988, à qual foram incorporadas.

Lacerda implantou o acesso geral ao serviço público por concurso. Construiu um amplo arco de fundações, autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, na busca da descentralização, agilidade e eficiência na administração pública, que terminaram sendo a referência do governo Geisel e de outros até recentemente.

Introduziu um plano de metas nos moldes de Juscelino Kubitschek, enfatizando a infraestrutura urbana, econômica e social.

Abriu a discussão sobre a questão das favelas e, quando governo, mudou de posição, saindo de temas como urbanização e acesso a serviços sociais em direção à remoção. São esses dados e fatos que Maurício Dominguez Perez nos traz na melhor biografia sobre Carlos Lacerda (“Lacerda na Guanabara”).

Melhor por não ser fundamentalista -nem de um lado nem de outro- em relação a um político que tinha uma fronteira nítida entre os que o amavam e os que o odiavam. Melhor porque permite aos admiradores de Lacerda sublinhar suas opiniões. Melhor porque também permite aos críticos dele sublinhar suas opiniões, apesar da diagonal favorável do livro.

Melhor porque o governo Lacerda não caiu do céu, mas surgiu da dinâmica anterior das prefeituras do então Distrito Federal.

Se o quadro político anterior mostrava uma prefeitura manipulada pelos interesses da menor política de clientela, devido à volatilidade dos períodos de governo dos prefeitos escolhidos pelos presidentes, não se pode omitir que a condição de capital e a presença de talentos em todas as áreas, fora e dentro da prefeitura, encheu as gavetas de projetos dos mais diversos campos, muitos deles de excepcional qualidade.

Entravam, mas não saíam das gavetas pela inoperância da máquina municipal a partir da República de 1946. Um governo estadual eleito para a Guanabara dispunha de um mandato de cinco anos e, com isso, previsibilidade e possibilidade de uma programação de governo em médio prazo.

Para Lacerda, a equação era simples: apenas uma questão de construir uma máquina eficiente, tirar os projetos da gaveta e selecionar os mais adequados à sua visão de governo. As restrições eram a falta de recursos para isso e o tumultuado ambiente político daquele período.

Lacerda conviveu com quatro presidentes: Jânio Quadros, os primeiros-ministros [Tancredo Neves, Francisco de Paula Brochado da Rocha e Hermes Lima], João Goulart e Castello Branco. Seus conflitos maiores concentraram-se entre o início de 1963, quando o plebiscito restabeleceu o presidencialismo, e março de 1964, quando veio o golpe militar.

Com Jânio, o desgaste das relações ocorre em um período curto. Talvez porque Lacerda, em seu íntimo, não se imaginava como candidato dele em 1965 ou porque realmente temesse que um golpe de Jânio eliminasse aquela eleição.

O risco político que cercou o Brasil a partir da renúncia de Jânio, visto pelas lentes norte-americanas, aproximou Lacerda de John Kennedy e o transformou em seu interlocutor. A partir daí vêm os recursos da AID, da Aliança para o Progresso, do Bird, do BID e do Fundo do Trigo.

Perez demonstra que, embora importantes, eles não explicam a amplitude das realizações do governo Lacerda.

Uma restrição a mais é a força centrípeta do temperamento de Lacerda, que terminou por agregar obstáculos aos que já existiam, em ambiente político polarizado entre trabalhistas-comunistas e udenistas-lacerdistas.

Um comunicador como Lacerda, fundador ainda nos anos 1940 do discurso coloquial, sem fortes entonações, em que a série de sinonímias substituía com muito maior força o tom da voz, terminou perdendo a batalha da comunicação e terminou carregando, ao longo do tempo, a imagem de repressor dos pobres -mendigos e favelados- que lhe lançava a oposição.

15 de outubro de 2021

A ERA DA ECONOMIA DA ESCASSEZ!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 10) Durante uma década, após a crise financeira, o problema da economia mundial foi a redução de gastos. Famílias preocupadas pagaram suas dívidas, governos impuseram austeridade e empresas restringiram os investimentos, enquanto contratavam funcionários de um aparente infinito conjunto de trabalhadores. Agora, os gastos voltaram com força, conforme os governos estimulavam a economia.

O aumento repentino na demanda é tão intenso que os estoques têm dificuldade em dar conta. Os motoristas de caminhão ganham bônus ao assinar contratos, uma frota de navios porta-contêineres ancorada ao longo da Califórnia espera os portos serem liberados, e os preços da energia sobem vertiginosamente. À medida que a inflação assombra os investidores, a abundância da década de 2010 dá lugar à economia da escassez.

A causa imediata é a covid19. Cerca de US$ 10,4 trilhões em estímulo global à economia desencadearam uma forte recuperação, porém desigual, na qual os consumidores estão gastando mais do que o normal com bens, aquecendo cadeias de suprimentos globais famintas. A demanda por produtos eletrônicos disparou durante a pandemia, mas a escassez dos microchips necessários para a fabricação deles atingiu a produção industrial em algumas economias exportadoras, como Taiwan.

A propagação da variante Delta fechou fábricas de roupas em partes da Ásia.

No mundo rico, a mudança de emprego está baixa, as ajudas financeiras rechearam as contas bancárias, e poucos trabalhadores têm vontade de deixar empregos menos populares, como vender sanduíches nas cidades, para outros com demanda, em armazéns, por exemplo. Do Brooklyn a Brisbane, os empregadores estão em uma disputa louca por mãos extras.

A economia da escassez também é resultado de duas forças mais profundas. Primeiro, a descarbonização. A mudança do carvão para a energia renovável deixou a Europa vulnerável ao pânico do fornecimento de gás natural que, em um momento desta semana, fez os preços à vista subirem em mais de 60%.

Um aumento no preço do carbono no esquema de comércio de emissões da União Europeia dificultou a mudança para outras formas mais poluentes de energia. Regiões da China enfrentaram cortes no fornecimento de energia enquanto algumas das províncias do país lutavam para cumprir rígidas metas ambientais. Os preços altos do transporte de mercadorias e de componentes de tecnologia estão elevando as despesas de capital para expandir a capacidade. Enquanto o mundo tenta se desabituar da energia “suja”, o incentivo para investimentos de longa duração na indústria de combustíveis fósseis é fraco.

A segunda força é o protecionismo. A política comercial não é mais elaborada com a eficiência econômica em mente.

Esta semana, o governo de Joe Biden confirmou que manteria as tarifas de Donald Trump sobre a China, em média em 19%, prometendo apenas que as empresas poderiam solicitar isenções (boa sorte na batalha com a burocracia federal). Em todo o mundo, o nacionalismo econômico está contribuindo para a economia da escassez. A falta de motoristas de caminhão na Grã-Bretanha foi exacerbada pelo Brexit. Após anos de tensões comerciais, o fluxo de investimentos entre países por empresas caiu para mais da metade em relação ao PIB mundial desde 2015.

Tudo isso pode parecer uma reminiscência dos anos 1970, quando muitos lugares enfrentavam filas nos postos de gasolina, aumentos de preços de dois dígitos e crescimento lento. Há cinquenta anos, os políticos cometeram um grave erro com a política econômica, lutando contra a inflação com medidas fúteis, como controle de preços e a campanha Whip Inflation Now (algo como “Derrote a Inflação Já”) de Gerald Ford, que incentivava as pessoas a plantar seus próprios vegetais. Hoje, o Federal Reserve (Fed) está debatendo como prever a inflação, mas é consenso que os bancos centrais têm o poder e o dever de mantê-la sob controle.

Por enquanto, uma inflação fora de controle parece improvável. Os preços da energia devem diminuir depois do inverno no hemisfério norte. No próximo ano, o avanço com vacinas e novos tratamento para a covid-19 devem reduzir os transtornos. Os estímulos fiscais serão encerrados em 2020:

Biden está tendo dificuldades em passar sua proposta de orçamento gigante pelo Congresso, e a Grã-Bretanha planeja aumentar impostos. O risco de quebra no setor de habitação da China significa que a demanda poderia até cair, trazendo de volta as condições fracas da década de 2010. E um aumento nos investimentos em algumas indústrias acabará se traduzindo em mais capacidade e maior produtividade.

As forças mais profundas por trás da economia da escassez não vão desaparecer, e os políticos podem facilmente acabar adotando medidas arbitrárias. Um dia, tecnologias como o hidrogênio devem ajudar a tornar a energia verde mais confiável. À medida que os custos com combustível e eletricidade aumentam, poderia haver uma reação negativa. Se os governos não garantem alternativas verdes adequadas aos combustíveis fósseis, eles podem ter de suprir a escassez flexibilizando voltando a usar fontes mais poluentes. Os governos, portanto, terão de planejar como lidar com os custos mais altos de energia e o crescimento mais lento que resultarão da eliminação de emissões. Fingir que a descarbonização resultará em um milagroso boom econômico certamente levará à decepção.

A economia da escassez também pode reforçar o apelo do protecionismo e da intervenção estatal. Os transtornos muitas vezes levam as pessoas a questionar dogmas da economia. O trauma da década de 1970 causou uma rejeição bem-vinda do “grande governo” intervencionista e keynesianismo rudimentar. O risco agora é que certas tensões na economia provoquem a rejeição da descarbonização e da globalização, com consequências devastadoras a longo prazo. Essa é a real ameaça apresentada pela economia da escassez.

14 de outubro de 2021

TRÊS DEMÔNIOS NO CAMINHO!

(Bolívar Lamounier – O Estado de S. Paulo, 09) Todos temos o direito de especular sobre o futuro; e podemos fazê-lo como os adivinhos da antiguidade romana, que examinavam as entranhas de certas aves, ou como os economistas de hoje em dia, que recorrem a projeções estatísticas dificilmente compreensíveis por mortais comuns.

Nos dias que correm, dezenas de estudiosos nos têm alertado para a gravidade e a ubiquidade das ameaças que pairam sobre o convívio social, a democracia e a própria humanidade. Alguns discorrem sobre tragédias de alcance mundial, como as epidemiológicas e as climáticas, outros sobre reles práticas criminosas, como o hackerismo – que de uma hora para outra podem paralisar engrenagens essenciais da atividade econômica. Mas não percamos tempo tentando prever o final dos tempos, como fez Auguste Comte, imaginando um mundo inteiramente regido pela ciência, ou como Karl Marx, que julgou haver antevisto o fim das desigualdades sociais.

Atenhamo-nos ao Brasil e a um horizonte temporal de duas décadas – um pouco mais ou um pouco menos.

Estabelecida a regra de jogo, peço vênia para expor minha avaliação. O Brasil atual não está meramente estagnado, está retrocedendo, resvalando para uma crise séria, antevéspera de um possível abismo. O que temos à nossa frente não é apenas uma pedra no meio do caminho, como escreveu o poeta Drummond. São ao menos três pedras, grandes e aterradoras.

Três demônios. Ei-los: 1) a estúpida polarização política que se configurou a partir da eleição presidencial de 2018; 2) a corrupção sistêmica, que os sapientes constituintes de 1988 tornaram quase impossível de ser combatida; e 3) a lerdeza de nossas elites no tocante ao imperativo de efetivar reformas que todos sabemos serem essenciais para o desenvolvimento econômico e social.

A polarização e suas consequências são o óbvio ululante. No pleito presidencial de 2018, o antipetismo atingiu uma altura estratosférica, condensando a repulsa de milhões de cidadãos à corrupção sistêmica, cujas dimensões ficaram escancaradas nas inquirições sobre a Petrobras. Tal repulsa, como a Física ensina, haveria de produzir um movimento de sentido contrário, no caso aquele que catapultou à mesma altitude um capitão excluído das Forças Armadas por indisciplina e notabilizado durante 29 anos por sua irrelevância como deputado federal. Só os muito obtusos não percebem que a reedição desse enredo em 2022 poderá perpetuar ainda por muitos anos a situação catastrófica em que nos encontramos.

Claro, há dois fatores novos a considerar. De um lado, a inflação e a sucessão de descalabros do atual governo no combate à pandemia sugerem que Jair Bolsonaro dificilmente terá gás para a disputa de 2022. Do outro, há uma penca de hipóteses (o PMDB lançando o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco; o governador João Doria tentando ressuscitar o PSDB; uma “terceira via”; etc.) que me abstenho de comentar porque, até o momento, não sei se vamos ouvir aprazíveis harmonias ou a insuportável cacofonia que nos atormenta ano após ano.

De concreto, o que há é mais uma tentativa de pintar Lula como o xodó dos empresários, quem sabe até como um estadista-pacificador: um Juscelino Kubitschek. O problema é que essa fantasia nem de longe corresponde ao que a situação brasileira está a exigir: um presidenciável cujo perfil público seja em si mesmo uma indicação de que estaremos retornando à normalidade. O Lula-estadista já começou mal, convocando a “militância” para rediscutir a questão do “controle democrático da mídia”, vale dizer, da censura. Resumindo: num cenário ideal, em vez da polarização Lula x Bolsonaro, veríamos os dois gozando de suas merecidas aposentadorias numa ilhota qualquer do Pacífico Sul.

O segundo demônio, igualmente visível, é o fato de que nossas instituições políticas hoje parecem mortos-vivos, assassinadas pela corrupção, esta, sim, “imorrível”, eis que realimentada continuamente pelo desatino de uma “cláusula pétrea” conhecida como “trânsito em julgado” (Constituição federal de 1988, inciso LVII). Mercê deste inciso, como ninguém ignora, divide a justiça brasileira em duas partes, a dos ricos e a dos pobres, e, de quebra, solapa a credibilidade das instituições e de toda a classe política, cujos integrantes podem facilmente contratar advogados que os livrem da condenação em quarta instância.

E, assim, a justiça dos ricos permanecerá lépida e fagueira, salvo na remota hipótese de um triunfal reaparecimento do chamado “poder constituinte originário”.

Sem presidenciáveis, instituições, partidos e parlamentares à altura da encomenda, é lógico que tão cedo não veremos as reformas de que o País necessita. Este singelo bico de pena basta para delinear o terceiro demônio pétreo. Mesmo nas trevas brasilienses, qualquer alma penada entende que o gigantismo e a voracidade tributária de sucessivos governos nada mais são que o fruto teratológico de décadas e décadas de patrimonialismo e corporativismo. Fadado ad aeternum a enxugar gelo, nosso Estado é a mais ridícula versão de Sísifo que jamais se concebeu.

13 de outubro de 2021

FELIPE GONZALEZ, EX-PRIMEIRO-MINISTRO ESPANHOL – EM SEMINÁRIO EM SP EM 2004!

(Resumo de Cesar Maia) O espaço público que compartilhamos é a política, mas a que se faz com P maiúsculo, ou seja, a arte de governar as diferentes ideias, as diversas identidades e os interesses opostos. E governar não só para que as diferenças convivam entre si pacificamente, mas sim para, dessa pluralidade de ideias, dessas diferentes identidades e dessa contraposição de interesses, tirar um projeto para o país.

Não creio em nenhum modelo econômico que diz que antes é preciso crescer para depois atender ao problema ético ou moral da equidade social. E não é apenas um problema de igualdade, mas de eficiência econômica. É impossível ter empresas fortes num país em que há miséria, que tem uma sociedade marginalizada. Não pode haver ao mesmo tempo pobreza e grandes empresas.

Há sempre um ponto de inflexão que permite diferenciar o que significa país emergente e país central. As vezes fala em país desenvolvido e subdesenvolvido, mas essa é uma linguagem ofensiva. Há 25 anos éramos um país qualificado como receptor de ajuda para o desenvolvimento. Agora é um país obrigado a prestar ajuda ao desenvolvimento de outros países. Portanto passamos a ser um país central. Nem um só país conseguiu passar de emergente para central sem uma área de consenso muito séria.

No autoritarismo se nacionalizava como instrumento de poder. A esquerda proclama a nacionalização como instrumento ideológico de igualdade de oportunidade, o que nunca foi. Isso nunca se demonstrou em nenhuma parte. Havia um matrimonio raro com essa ideia, que me leva a dizer com frequência que nos casamos com os instrumentos e esquecemos que as vezes os instrumentos nos alijam dos objetivos. Há de ser flexível com os instrumentos e tenazmente comprometido com os objetivos.

Eu disse que não acreditava que a Europa seja um motor alternativo do crescimento mundial. Hoje a Europa tem uma moeda única para um conjunto de países. Mas não tem uma política econômica suficientemente coordenada que acompanhe a política monetária. Portanto, não tem flexibilidade suficiente para fazer política econômica pragmática. Não tem margem de flexibilidade.

Gastos na Educação, é a única estratégia que nunca falha para o desenvolvimento de um país. A única que nunca falha. Essa é uma variável estratégica fantástica, um recurso natural como o petróleo, com a vantagem que a melhor variável estratégica é o capital humano.

O que faltava em nosso país, era um pouco mais de confiança em nós mesmos, que não tínhamos, e um pouco mais, ou muito mais na formação dos jovens de meu país. Portanto a Educação é a grande variável estratégica. Mas um projeto educativo tem que ser para 20 anos. Não pode ser um projeto que mude quando o governo é trocado. Portanto é preciso que haja um consenso básico do que se deve fazer com a educação.

Nosso país teve de suportar um processo de olhar para si mesmo, de autoconhecimento, de parar de pensar que seus inimigos estavam fora. Que ora era o Reino Unido, ora a França, ora os Estados Unidos.

Em política exterior o consenso é fundamental. Os países centrais, os países respeitados, são países que não variam substancialmente sua orientação de política exterior. Porque as variações dramáticas em política exterior têm um impacto diferente do que as mudanças na política interna, porque afetam os outros.

Mas nunca se pode confundir descentralização do poder com centrifugação do poder. Para poder descentralizar é preciso manter a coesão interna. Tivemos problemas de confusão entre descentralização e centrifugação do poder. A má divisão do poder, rompendo a coesão, debilita as partes e debilita o todo. E isso não aconteceu apenas aqui.  

O Estado também tem de redimensionar suas funções. Nunca defendi um Estado cheio de gordura. Nunca defendi o clientelismo que absorve porcentagens inaceitáveis do PIB. Mas nunca me inclinei por um Estado raquítico, anêmico, sem capacidade de resposta ante sua responsabilidade. O ideal seria ter um Estado como esses corpos fortes como os vistos em Ipanema, que não tem nem uma grama de gordura, mas também nunca se veem esqueléticos, porque esses não passeiam pelas praias. Esse é o Estado ideal.

11 de outubro de 2021

VERDES E LIBERAIS PAVIMENTAM O CAMINHO PARA UM GOVERNO LIDERADO POR SCHOLZ NA ALEMANHA!

(El País, 06) Dez dias depois das eleições alemãs, o social-democrata Olaf Scholz se dirige à chancelaria. Os Verdes e os Liberais do FDP, as duas formações com as quais ele precisa contar para formar um governo, anunciaram na manhã de quarta-feira sua intenção de iniciar negociações com o Partido Social-Democrata (SPD) imediatamente. Nada é definitivo. Mas a partir de quinta-feira começam as negociações que, se não descarrilarem, devem ser concluídas com a formação do primeiro tripartite no governo federal da história do país.

Os primeiros a dizer sim para iniciar as negociações com o SPD foram os Verdes. Os dois líderes do partido, Annalena Baerbock e Robert Habeck, indicaram, em uma coletiva de imprensa, que fariam uma proposta a esse respeito aos liberais. O presidente do FDP, Christian Lindner, esteve presente. Apesar de reconhecer que seu partido tem mais afinidades com os democratas-cristãos da CDU, ele pegou o desafio lançado pelos Verdes e anunciou que nesta quinta-feira terão início as conversações tripartidas: sociais-democratas, verdes e liberais. “Acabo de propor a Scholz, de acordo com os Verdes, que se reúna amanhã para uma discussão entre os três”, disse Lindner.

Nem um nem outro afastam a possibilidade de que as reaproximações terminem sem sucesso e acabem cedendo a chancelaria à União Democrática Cristã (CDU), mas tudo parece voltado para a chamada coalizão de semáforos (pelas cores de cada um partido: vermelho para os sociais-democratas, verde e amarelo para os liberais). “O FDP e os Verdes realizaram consultas intensas e discretas nos últimos dias. Apesar de todas as nossas divergências, nas conversas ficou claro que no centro pode ser formado um governo favorável ao progresso”, acrescentou Lindner, que esclareceu que o que começa quinta-feira não são negociações formais, mas apenas “uma exploração”.

Habeck assinalou que a proposta de conversações exploratórias com o SPD e o FDP não representa uma rejeição total da coalizão que reuniria os dois pequenos partidos sob a liderança dos democratas-cristãos de Armin Laschet. O dirigente dos Verdes explicou que as maiores coincidências de conteúdo, especialmente na política social, são entre o SPD e o FDP.

As eleições de 26 de setembro deixaram um cenário político confuso no país mais populoso da UE e com a economia mais poderosa. O SPD de Scholz venceu por uma vantagem mínima, com 25,7% dos votos, ante 24,1% da CDU e seus aliados bávaros na CSU. Dados os resultados iguais, qualquer um dos partidos tem que obter o apoio de outros para obter a maioria parlamentar. Os Verdes – dispostos a conspirar com uns e com outros, mas mais inclinados a Scholz – obtiveram 14,8%. Os liberais melhoraram ligeiramente seus resultados com 11,5%.

A opção mais provável desde o início foi a coalizão semáforo sob a liderança de Scholz, mas ninguém descarta a chamada coalizão Jamaica 100%: um governo liderado pela CDU com o apoio de Verdes e Liberais. Aritmeticamente, também seria possível reeditar a grande coalizão de democratas-cristãos e social-democratas que governou a Alemanha por 12 dos 16 anos de Angela Merkel à frente da chancelaria. Mas nenhum dos protagonistas quer relançar essa coalizão.

As negociações que estão para começar esbarram nos esforços que vêm sendo feitos na CDU para obter o sim de verdes e liberais para chegar à chancelaria. Baerbock deixou claro que o resultado das negociações agora deve ser traduzido em ação política. Habeck está confiante de que as conversas exploratórias não se arrastam muito. “Não se trata de elaborar um acordo de coalizão detalhado. A questão é estabelecer um consenso político ou não”, disse nesta quarta-feira.

08 de outubro de 2021

VOLVER LA VISTA ATRÁS’!

(Mario Vargas Llosa – O Estado de S. Paulo, 05) O romance do colombiano Juan Gabriel Vásquez, Volver la Vista Atrás, que acaba de receber um prêmio literário importante no México, terá muitos leitores. É um dos grandes romances já escritos em nossa língua e seu autor nos disse que, ao contrário de outros, tudo que se passa nele aconteceu na vida real, o que lhe deu muito trabalho na hora de escrevê-lo.

Acredito que nem mais nem menos que as histórias inventadas, pois utilizar histórias “reais”, como muitos romances fazem, não aumenta nem diminui o esforço de escrevê-los. O difícil é a forma de contá-las para que pareçam fictícias, algo que os leitores sempre esperam dos romances, e ele encontrou essa forma, relatando seus episódios em crônicas muito próximas, que dão a impressão de confissões e segredos confiados aos leitores, como se divulgassem a intimidade de uma experiência familiar reservada que, de repente, graças a essa magia que acontece nos bons romances, se espalhasse por todo o mundo.

O personagem de Fausto Cabrera, um espanhol filho da guerra civil, que fugiu para a Colômbia, onde se tornou documentarista, teve uma vida dura e difícil, como quase todos os exilados, e foi cineasta, como seu filho Sérgio, um dos personagens principais da história; a outra é sua irmã Marianela. A aventura vivida pelos dois é realmente excepcional. Seu pai foi cineasta, além de militante político, e seu filho Sérgio também, a quem a Cinemateca de Barcelona presta uma homenagem, exibindo vários de seus filmes, além de entrevistá-lo.

É aqui que surgem surpresas incríveis. Pois Sérgio não foi apenas um cineasta de destaque, autor e diretor, entre outros filmes, do muito estimado e discutido A Estratégia do Caracol. A vida dos dois irmãos teve uma reviravolta espetacular quando seu pai descobriu o maoismo, tornou-se um maoista colombiano de ponta e decidiu educar seus filhos, Sérgio e Marianela, na República Popular da China, fazendo dos dois jovens, praticamente duas crianças, dois guardas vermelhos, como os milhões de meninos e meninas que as convicções de Mao Tsé-tung transformaram, naqueles anos, em soldados que transformariam o gigante chinês no instrumento da revolução mundial, substituindo a URSS nesta tarefa.

As páginas que narram as aventuras dessas duas crianças na revolucionária República Popular da China, agitadas pelas ideias e sobressaltos de Mao, são comoventes; as enormes dificuldades que precisam superar para se adaptarem a um ambiente tão diferente daquele em que foram criadas, adotando uma língua muito distante da sua, assim como os costumes rígidos e a formação militar que os converte em pequenos soldados, são angustiantes e exaltantes, precisamente porque tudo está narrado sem dramas, nem misericórdia, de maneira imparcial e com absoluta sobriedade.

A história da família é assim, porque, como o pai, a mãe também milita nessa brigada, e a compreensão e o espírito que reinam entre esses quatro personagens é invejável, sem rebeliões ou protestos, em total obediência. É impossível não admirar as páginas que narram esses dias, meses e anos, em que os pais, de longe, na Colômbia, traduzem suas convicções maoistas em ações, e em que, na China, essas crianças se metamorfoseiam e renascem, instruídas pelas cartas de seus pais e pelos seus novos guias, que os reeducam e transformam, para que sejam, no retorno ao seu país, o exemplo a seguir por todos os jovens e crianças como eles.

São páginas muito bonitas, de uma luta que se adivinha, que está oculta para que seja mais vívida, uma luta íntima e secreta, inclusive entre os próprios irmãos, que raramente falam sobre o que vivem, e esse heroísmo secreto é, para mim, o melhor do livro, mesmo que depois, quando as crianças se tornam jovens, voltam para a Colômbia e se alistam, seguindo as instruções de seus pais, nas guerrilhas maoistas, os acontecimentos sejam mais espetaculares e dramáticos. Mas essas páginas, que narram a aventura secreta daquelas crianças, sua profunda transformação, sua mudança de corpo e alma, estão narradas admiravelmente, com uma frieza deliberada, para que tudo isso se destaque e se converta em um heroísmo secreto e cotidiano.

Até que chega a voz remota do pai – não sei se devo admirá-lo ou odiá-lo –, através de uma carta que leva semanas ou meses para alcançar seu destino, indicando que o período de formação terminou, que agora se trata de colocar em prática o que se aprendeu, voltando para a Colômbia e militando na guerrilha.

Aqui surgem os conflitos, pela primeira vez. As experiências dos dois irmãos prepararam-nos para o heroísmo, não para a rotina diária feita de esperas intermináveis, emboscadas e fraquezas, e até mesmo traições, como a dos comandantes que não apenas descumprem seus papéis, como possuem vícios, se acostumam com esses cargos de poder e tratam seus soldados com desprezo.

Os irmãos, que estão separados, sofrem o indizível com aquela experiência da luta que é uma grande espera, feita de rotinas asfixiantes e da silenciosa suspeita de terem se equivocado. Os tiros são muitos e até os dois jovens, que não renunciam, entretanto, ao compromisso revolucionário, fogem dali, com uma espécie de decepção discreta, recalcitrante, ainda que, para ele, os filmes sejam uma redenção e, para ela, a ação social seja uma forma de se redimir e seguir militando.

As conclusões nem estão claras nem Juan GabrielVásquez se atreve a mostrá-las. Mas elas estão aí, nos anos gastos naquela luta sem fim, em todos os mortos e feridos, na inesgotável guerra em que um país se desgasta, enquanto as vítimas crescem e se multiplicam, sempre em vão.

Cada leitor deve tirar suas próprias conclusões, naturalmente. Agora, aqueles dois jovens estão longe de ser quem foram, talvez não arrependidos, já que agora estão diferentes, mais lúcidos e mais independentes de tudo aquilo em que acreditaram e foram se tornando. O romance está aí com seu conjunto de experiências, e cada um deve tirar suas próprias conclusões: Até quando continuar matando? O sangue e os cadáveres resolvem os problemas? Há os que acreditam apaixonadamente que sim.

No entanto, não é tão fácil tirar essas conclusões, sobretudo para quem viveu a experiência e levou balas nas costas, como aconteceu com Marianela, que ainda apitam quando ela passa pelos sistemas de segurança dos aeroportos, ou como aconteceu com Sérgio, naquela vez em que duvidou. Essas conclusões não serão fáceis, é preciso refletir sobre elas para conseguir as respostas adequadas, que serão sempre contraditórias.

A obra de um romancista não precisa substituir a visão dos leitores, oferecendo soluções fáceis, libertando-os da tarefa de refletir e decidir por sua própria conta o que teriam feito diante daqueles dilemas com os quais Sérgio e Marianela se debateram. Ambos estão vivos, felizmente, e pelo menos um deles, em seu trabalho como cineasta, deve ter refletido muito profundamente.

Mas o destino de Marianela me deixa em suspenso e aterrorizado, por tudo ao que sobreviveu, educando-se para ser uma guarda vermelha fora do comum. Ela sente que conseguiu? Está contente consigo mesma? Frustrada, mas bem? É impossível saber lendo esse romance excepcional. Mas aí começa o trabalho secreto que suas páginas deixam em nossa memória. O que você teria feito? Arrependerse ou perseverar? E até que ponto? Até converter o mundo inteiro em um bólido flamejante do qual nada nem ninguém pudesse escapar?

Os bons romances não facilitam as respostas, resta aos leitores sensibilizados pela fantasia depositada nessas páginas saber como responder. Fazendo o que fez, o autor dessas páginas excepcionais pode ficar em paz.

07 de outubro de 2021

POLÍTICA AFUNDA NOS EUA!

(Fareed Zakaria – Washington Post/O Estado de S. Paulo, 04) A fraqueza dos EUA é sua política. Seus líderes não conseguem pagar as contas nacionais sem fazer um drama.

Os problemas de uma empresa da qual ninguém nunca tinha ouvido falar agora fazem as pessoas se preocuparem com mais uma crise econômica global. A Evergrande é a incorporadora chinesa com a duvidosa distinção de ser a empresa imobiliária mais endividada do mundo, com mais de US$ 300 bilhões em empréstimos pendentes.

Por enquanto, pelo menos, parece improvável que as dificuldades da empresa tumultuem a economia global. Mas sua crise destaca uma fragilidade crucial na economia chinesa. A dívida privada da China (dinheiro devido por famílias e empresas) está em mais de 260% do produto interno bruto do país, de longe a mais alta do mundo para qualquer nação em desenvolvimento.

A trajetória de crescimento da China está desacelerando. Ficou muito mais difícil sustentar seu modelo voltado para a exportação à medida que os salários aumentaram, tornando o país menos competitivo. Enquanto isso, os gastos internos não estão crescendo rápido o suficiente para substituir o boom das exportações. O ataque do governo ao setor de tecnologia provavelmente desacelerará o crescimento até então explosivo nesse setor.

E ofuscando tudo isso está a demografia. A China vem envelhecendo e seus cidadãos estão tendo menos filhos. A taxa de natalidade caiu impressionantes 20% no ano passado, apesar dos esforços do governo para reverter a política de “filho único” e encorajar as pessoas a terem mais filhos.

Olhando ao redor, vemos problemas na maioria das principais economias. A chanceler alemã, Angela Merkel, está prestes a deixar o cargo depois de 16 anos de liderança estável e sábia. Em uma época de dramas populistas, ódio, emoção e injúrias, ela tem sido um oásis de tranquilidade. Mas deixou muitos dos problemas econômicos da Alemanha se agravarem. O país vem passando fome de investimento público, o que ocasionou a deterioração de sua infraestrutura em quase todas as áreas.

O sistema de pensões da Alemanha não foi reformado e corre o risco de passar por uma crise grave. Suas políticas de energia são uma estranha colcha de retalhos de novas e velhas tecnologias. O país baniu a energia nuclear e, por isso, vem obtendo 44% de sua eletricidade de combustíveis fósseis – uma das taxas mais altas da União Europeia.

De forma mais ampla, a Alemanha continua sendo uma retardatária da era digital. Sua tão alardeada indústria data da Segunda Revolução Industrial: carros, produtos químicos e maquinário. No mundo digital, a Alemanha possui apenas uma grande empresa, a SAP, que já tem quase 50 anos. E, assim como a chinesa, a demografia alemã enfrenta uma perspectiva sombria. Em 2020, pela primeira vez em uma década, sua população encolheu de fato.
Regra.

Não se trata de exemplos isolados. Se você olhar para as outras grandes economias do mundo – Japão, Grãbretanha, Índia – vai ver fraquezas e fragilidades estruturais semelhantes. O Japão continua crescendo a um ritmo de lesma. Algumas décadas atrás, os indianos sempre falavam de ultrapassar a China. Hoje, a economia chinesa é cinco vezes maior que a indiana. A Grã-bretanha vai passar os próximos anos pagando o preço pelo Brexit, como demonstra sua atual crise de combustível.

Então, chegamos aos EUA. A inequívoca vencedora da última década foi aquela que Ruchir Sharma chamou de “a nação da retomada” em um artigo perspicaz na revista Foreign Affairs. Os EUA foram se recuperando da crise de 2008 e nunca mais olharam para trás – mesmo levando em conta a recessão provocada pela pandemia. Hoje, em meio a conversas sobre declínio, a maioria dos americanos ficaria chocada ao saber que seu país tem quase a mesma parcela do PIB global que tinha 40 anos atrás: 25%. Suas empresas dominam o mundo como nunca antes.

Sete das dez maiores empresas do planeta por capitalização de mercado são americanas. Os EUA continuam a liderar na maioria das indústrias do futuro, da biotecnologia à nanotecnologia passando pela inteligência artificial. O dólar é dominante como moeda de reserva global como nenhuma outra na história, sendo usado em quase 90% das transações internacionais. E o país ainda tem a demografia mais saudável de qualquer uma das cinco maiores economias do mundo, graças à imigração.

Em algum nível instintivo, os americanos parecem sentir tudo isso. O Gallup periodicamente pergunta às pessoas sobre suas vidas, para determinar que parcela da população está “prosperando”. Esse número chegou a 59% neste verão, o maior em 13 anos de pesquisa. Em janeiro de 2020, 90% dos americanos disseram que estavam satisfeitos com suas vidas, outro recorde desde que a pergunta foi feita pela primeira vez, em 1979 (depois o número caiu um pouco, presumivelmente por causa da pandemia).

Mas não é o que parece em Washington. A fraqueza dos EUA é sua política. Apesar de suas extraordinárias vantagens estruturais, seus líderes políticos não conseguem pagar as contas nacionais sem fazer um grande drama. Eles ainda estão se debatendo com gastos de infraestrutura que os três últimos presidentes disseram que eram urgentes e uma grande maioria da população apoia. Centenas de cargos-chave no governo estão vagos, com dezenas nas mãos de senadores, por motivos que não têm nada a ver com a administração pública.

E um dos dois grandes partidos – instigado por seu líder demagógico – está empenhado em romper o conjunto de instituições, leis e normas que garantem eleições livres e justas, preparando o país para uma grande crise política em 2024.

Na mesa do mundo, a América recebeu, de longe, a melhor das mãos. Mas, como qualquer jogador de pôquer está cansado de saber, se você jogar mal, ainda corre o risco de perder tudo.

06 de outubro

COM ELEIÇÃO E CONSTITUINTE, CHILE FLERTA COM A ESQUERDA RADICAL!

(Revista Crusoé, 03) O Chile terá eventos políticos importantes nos próximos meses. O país realizará eleições presidenciais em novembro, com um provável segundo turno em dezembro. Além disso, no primeiro semestre de 2022 haverá um referendo para que a população aprove ou não o texto de uma nova Constituição.

Nessas duas oportunidades, o Chile tende a se inclinar para a esquerda radical. O candidato que está à frente nas pesquisas é Gabriel Boric (foto), que venceu as primárias da esquerda. Boric aparece com 25% das intenções de voto, oito pontos percentuais à frente do segundo colocado, Sebastián Sichel, de centro-direita.

“Boric propõe mudanças profundas em vários sentidos, com uma ideia de refundar o Chile. Se ele for eleito, fará um governo muito mais radical do que foi o de Michelle Bachelet, do Partido Socialista“, diz o sociólogo Aldo Mascareño, pesquisador do Centro de Estudos Públicos, do Chile, em referência à ex-presidente que governou por dois mandatos (2006-2010 e 2014-2018).

Boric quer acabar com os planos de previdência privados e revisar os acordos de livre comércio. Fala ainda em fixar o preço dos remédios e em proibir o lucro nos centros de formação técnica e profissional.

Para reduzir a desigualdade, propõe criar um imposto permanente e progressivo para as pessoas com mais patrimônio, além de fixar uma taxa que seria cobrada uma única vez dos mais ricos.

Se eleito, Boric assumirá o posto em março do ano que vem, às portas da discussão sobre a nova Constituinte, que terá de estabelecer os parâmetros para a ação do Poder Executivo.

“O risco maior é o de que, caso Boric se torne o próximo presidente, a Convenção Constituinte, majoritariamente de esquerda, assuma que chegou a hora de propor mudanças nessa mesma linha, uma vez que o governo será de esquerda radical“, diz Mascareño.

Entre os temas que já foram propostos nas discussões da Convenção Constituinte está o fim da autonomia do Banco Central, que poderá ter uma ação mais politizada.

Nos debates para definir o regulamento da Constituinte, já apareceram ideias típicas da esquerda, como o estado plurinacional ou de poder originário. No quesito ética, os constituintes incluíram punições para o “negacionismo“, termo que inclui a negação do genocídio cultural contra indígenas e afrodescendentes e das violações de direitos humanos nos protestos de 2019.

O que pode frear essas mudanças é o voto obrigatório para aprovar a nova Constituição. Com mais pessoas votando, a população chilena deverá ser melhor representada nessa consulta popular e poderá buscar mais moderação. No plebiscito que aprovou a convocação de uma convenção para reescrever a Constituição, em 2020, o voto foi facultativo. O comparecimento foi de 49,2%.

05 de outubro de 2021

FUNÇÃO DO ESTADO: BEM-ESTAR OU ECONOMIA? ECONOMIA OU BEM-ESTAR?!

(Sonia Rabello, ex-procuradora geral do município do Rio de Janeiro, 24) Qual é a competência preponderante do Estado para agir, por leis e ações executivas, no âmbito da economia ou do bem-estar coletivo?

A União deve relaxar as regras de cuidado ambiental em favor da aceleração da Economia? O Município do Rio de Janeiro deve permitir a ocupação das calçadas públicas para favorecer o comércio de bares afetados economicamente pela Covid-19?

São duas perguntas que expõem o conflito permanente e a prática diária dos legisladores e do Executivo em saber se as ações deles, enquanto agentes do Estado, devem favorecer primeiramente a Economia ou o bem-estar dos cidadãos. Eis uma reflexão, com base apenas nas regras básicas da Constituição Federal:

1. É a Constituição Federal quem estabelece as áreas nas quais o Estado (leia-se Legislativo e Executivo, no caso) devem e podem agir. Compreende-se que, na teoria, se o Estado pode agir, ele tem também o dever de agir. Exemplificando: se o Estado tem competência para proteger o meio ambiente através de regras (leis) e ações (execução), ele não só pode, como deve fazê-lo. Outro exemplo: se o Estado pode estabelecer regras para o bom uso e funcionamento das cidades, através do urbanismo, ele não só pode, como deve fazê-lo. Resumindo; o poder concedido ao Estado em determinada área de competência impõe também um dever de ação com este objetivo.

2. No campo econômico, no entanto, seja em nível federal, estadual ou municipal, a Constituição Federal diz, expressamente, que a ordem econômica é fundada no princípio da livre iniciativa, do livre exercício, da livre concorrência e no princípio da não intervenção do Estado nas atividades econômicas, salvo nos casos previstos em lei para proteção de outros interesses públicos também resguardados e previstos na própria Constituição (arts.170 e segs da CF)*.

Os dois lados do princípio da liberdade econômica

O princípio da liberdade econômica tem a sua garantia de liberdade de ação e não intervenção para todos os efeitos: tanto para que as iniciativas dos cidadãos privados sejam de acordo com os seus desejos, respeitando, obviamente, as regras que garantem que as atividades econômicas privadas não afetem os bens e o interesse coletivo, como também sabendo que esta liberdade tem o outro lado da moeda, ou seja, os riscos inerentes ao negócio, seja por conta de imperícia daquele que o empreende, seja por motivos da “vida”, que em direito são chamados de casos fortuitos ou de força maior, que é o caso da Covid-19.

Assim, o princípio da liberdade econômica tem dois lados que cabe ao Estado resguardar: a liberdade de empreender e os riscos daquele que o faz não conseguir dar certo em seu empreendimento, seja por motivos próprios ou alheios à vontade de quem o faz.

O paradoxo

Se a ação do Estado é obrigatória na proteção de interesses coletivos da sociedade, como a prestação de serviços públicos de Saúde, Educação, Mobilidade, e todos os demais, como também é obrigatória na proteção e fiscalização de interesses coletivos como o Meio Ambiente, o Patrimônio Cultural, o bem-estar e o funcionamento das cidades para todos, a atuação do Estado na Economia é apenas subsidiária, já que esta, a Economia, não está no âmbito de sua função principal. A Economia, ou a ordem econômica, segundo a Constituição, é matéria da livre iniciativa privada!

O discurso de salvar a Economia se apresenta hoje, e desde sempre na história do Brasil, como sendo a grande missão do Estado, seja na dimensão do governo federal, nos grandes negócios e empresas, liberando a fiscalização ambiental para dar celeridade aos negócios, seja no pequeno universo de cada município, quando os vereadores, ao invés de cuidar do bem-estar dos cidadãos que transitam nas calçadas, incorporam a missão de “salvar” a economia dos bares, permitindo que eles ocupem parte do espaço público em frontal detrimento do bem-estar coletivo do sossego e da segurança de mobilidade dos pedestres.

Ou seja, em ambos os casos, os agentes públicos do Legislativo e do Executivo renunciam à competência e a obrigação principal – o interesse coletivo -, para se arvorarem em ações que julgam como melhores para os negócios privados, ainda que tenham que sacrificar interesses coletivos, constitucionalmente protegidos, e a sua obrigação principal de competência.

Então, que fique claro; a principal missão constitucional do Estado são os interesses coletivos.

Implementando-os e protegendo-os será possível garantir o bem-estar social e, por conseguinte, uma boa economia para todos.

04 de outubro de 2021

1870: ONTEM E HOJE!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo, 20/11/2010) Henry Kissinger, em “Diplomacia”, usa todo o capítulo quinto para comparar as características de Napoleão 3º e Bismarck. Ainda vale a abertura de Marx (1852) no capítulo 1 do “18 Brumário”: “Hegel observa que os personagens de grande importância na história ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Napoleão 3º governou a França por mais de 20 anos (1848-1870), e Bismarck a Prússia e em seguida a Alemanha, com a unificação, por quase 30 anos (1862-1890).

Marcaram estilos e políticas que, reproduzidas hoje, dão razão a Marx.

Kissinger afirma que Napoleão 3º não abria mão de nada para ser popular na França. Internamente, fez um governo bem-sucedido, com a reforma de Paris e a economia. Mas a sua política externa se desfez.

“Seu desejo de publicidade o levou a impulsionar uma série de objetivos contraditórios”.

Segue: “As ações empreendidas pelo capricho do momento e sem relação com uma estratégia geral não podem sustentar-se indefinidamente, (…) pois o êxito é tão esquivo que os governantes que o perseguem rara vez puderam avaliar seus próprios castigos”.

Napoleão 3º dirigiu sua política externa como os líderes de hoje, diz Kissinger, que medem seus êxitos pela reação dos noticiários de TV. “Ficou prisioneiro do puramente tático, enfocando objetivos de curto prazo e resultados imediatos”.

Kissinger diz que “Napoleão 3º foi precursor de um fenômeno moderno: a figura política que tenta desesperadamente descobrir o que deseja o público. Seu legado para a França foi uma paralisia estratégica”. E finaliza: A tragédia de Napoleão 3º foi que “sua ambição sobrepassou sua capacidade”.

O contraponto com Bismarck marca a dicotomia entre ambos. Bismarck, na sua Realpolitik, atualiza a “raison d’Etat” de Richelieu. Explica Kissinger que “a ordem estabelecida não é capaz de perceber sua própria vulnerabilidade quando a mudança tem um caráter conservador, pois as instituições não são capazes de defender-se de quem esperam que as defendam”.

Bismarck, diz Kissinger, “representou uma política divorciada de todo o sistema de valores”. Para ele, a utilidade vinha por cima da ideologia, e “a vantagem estratégica justificaria o abandono dos princípios”. Por isso, o “poder leva consigo sua própria legitimidade”. “Aumentar a influência do Estado era seu objetivo”. É dele a conhecida assertiva: “Política é a arte do possível e a ciência do relativo”.

A repetição descontextualizada dos fatos, na forma do texto de Marx, tem risco muito maior quando se dá sem sequer a consciência dos mesmos.

01 de outubro de 2021

ANITA NOVINSKY, A HISTORIADORA QUE REVELOU AS ORIGENS JUDAICAS DO BRASIL!

(Antonio Silvio Lefèvre – O Estado de S. Paulo, 21) Em 20 de julho deste ano, aos 98 anos, faleceu a historiadora Anita Waingort Novinsky, a judia de origem polonesa que foi a primeira a descobrir e a revelar a origem judaica de grande parte dos portugueses que vieram para o Brasil para escapar do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, instituição da Igreja Católica que perseguia, julgava e punia os judeus de Portugal. Muito especialmente aqueles que se converteram em “cristãos novos” para tentar escapar das suas garras.

Anita chegou ao Brasil com seus pais, aos dois anos de idade. Quando ainda estudante de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), foi aconselhada pelo professor Lourival Gomes Machado a pesquisar o papel da Inquisição na história do Brasil – assunto que os livros de História de então simplesmente omitiam ou pouco falavam.

Anita debruçou-se inicialmente sobre os livros dos historiadores que haviam estudado o tema, em especial A História dos Judeus em Portugal, de Meyer Kayserling (1829-1905), em que o autor já revelava o funcionamento do Tribunal da Inquisição, o drama vivido pelos convertidos e o silêncio do mundo ante os festivos autos-de-fé, aonde a população eufórica ia assistir às fogueiras em que os “bons cristãos” queimavam os judeus. E relatava o drama dos judeus que procuravam escapar, migrando para países onde pudessem ser eles mesmos, entre os quais o Brasil.

Porém Anita logo percebeu que quase nada se sabia sobre quem eram estes judeus, convertidos ou não, que haviam escolhido o Brasil como destino. Para saber mais, era necessário ter acesso aos arquivos da Inquisição, mantidos secretos por décadas na Torre do Tombo, em Lisboa.

Pois para lá foi Anita no início dos anos 1960 e, com muita perseverança e com a ajuda de Lourival Machado, então diretor cultural da Unesco em Paris, conseguiu ter acesso aos arquivos inéditos. Em 1965, quando eu estudava Sociologia em Paris, mantive intenso contato com Anita, que se revezava entre Lisboa, onde pesquisava, e Paris, onde se aperfeiçoava em seus estudos com os mestres franceses.

Fui, então, testemunha de seus primeiros relatos sobre as atrocidades da Inquisição, que Anita revelava, com nomes e sobrenomes dos judeus perseguidos, alguns dos quais haviam se refugiado no Brasil e conseguido “driblar” e, em alguns casos, se vingar dos seus algozes.

Essas descobertas foram sendo o tema dos muitos livros de Anita Novinsky, desde Cristãos Novos na Bahia até os mais recentes, como Viver nos tempos da Inquisição e Os judeus que construíram o Brasil. Em seus livros, artigos e entrevistas, Anita revelou as origens judaicas de personagens dos quais nem o mais experiente inquisidor suspeitaria, como a do Padre José de Anchieta, fundador de São Paulo, cuja mãe era judia, “cristã nova”, ou seja, convertida à força ao catolicismo, e cujo tataravô fora queimado pela Inquisição.

Outra revelação de Anita, a de maior impacto histórico, foi a da origem judaica de Raposo Tavares. Anita relatou que Raposo fora criado pela madrasta, Maria da Costa, que foi presa pela Inquisição e confessou, sob tortura, o seu judaísmo secreto. Pois foi este judeu secreto, o bandeirante Raposo Tavares, que em 1647 partiu para a gigantesca expedição que permitiu conhecer, pela primeira vez, a extensão da América do Sul e ampliou várias vezes o território brasileiro. Júlio de Mesquita Filho o caracterizou como “o herói de uma das mais famosas façanhas de que guarda memória a história da humanidade”.

Anita Novinsky contou em detalhes a história dos bandeirantes, que eram quase todos de origem judaica e, por esse motivo, combateram as Missões dos jesuítas, que obedeciam às ordens da Inquisição de Lisboa, algoz dos “cristãos novos” no Brasil. Em todos os seus artigos e entrevistas, Anita sempre defendeu ardorosamente os bandeirantes, que, mais do que perseguidores de índios e de padres – como virou moda acusá-los –, eram eles os perseguidos pela Inquisição, por causa do “pecado” do seu judaísmo secreto.

Muitas famílias brasileiras descobriram suas origens judaicas por intermédio das revelações de Anita. Tanto em razão das “fichas” dos seus antepassados quanto, segundo Anita, pela simples observação dos prenomes adotados nas gerações mais recentes. A família de Julio de Mesquita Filho, do Estadão, foi uma das primeiras a ser reconhecida por Anita como de origem judaica. “Basta ver os nomes das irmãs Mesquita, Esther e Lia, típicos nomes judaicos, para ver com o que se identifica a família”, dizia Anita. E o mesmo raciocínio ela fez ao assegurar que toda a família de Monteiro Lobato é de cristãos-novos, portanto judeus convertidos.

Pelas muitas descobertas de Anita Novinsky sobre o importante papel dos judeus na História do Brasil, antes dela praticamente desconhecido ou propositalmente ignorado, podemos afirmar que esta intelectual judia, nascida na Polônia, foi uma redescobridora do país para onde veio ainda criança, o Brasil.